Na raiz do Evangelho. Um papa radical. Artigo de Walter Kasper

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20 Fevereiro 2015

"O Papa Francisco não quer revolucionar a fé e a moral; ele quer interpretar fé e moral a partir do evangelho. De acordo com o caráter querigmático do evangelho, ele faz isso não em uma linguagem doutrinal abstrata, mas em uma linguagem simples, mas comunicativa e dialógica não simplificante, que interpela as pessoas e as envolve."

Antecipamos aqui alguns trechos do livro de Walter Kasper, presidente emérito do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, intitulado Papa Francesco. La rivoluzione della tenerezza e dell’amore. Radici teologiche e prospettive pastorali [Papa Francisco. A revolução da ternura e do amor. Raízes teológicas e perspectivas pastorais] (Bréscia: Queriniana, 2015, 134 páginas), lançado no dia 19 de fevereiro.

O texto foi publicado no jornal L'Osservatore Romano, 18-02-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

O Papa Francisco vai ao fundamento das coisas. Ele parte radicalmente, isto é, começa pela raiz (radix), pelo Evangelho. A leitura espiritual e o estudo da Sagrada Escritura (Dei Verbum, 21-26), recomendados pelo Concílio Vaticano II, são, para ele, de fundamental importância, como mostram as suas homilias e os seus discursos (Evangelii gaudium,174s). Por evangelho, porém, Francisco não entende um livro ou os quatro livros que nós indicamos como os quatro Evangelhos.

Por "evangelho", de fato, não se entende originalmente um escrito ou um livro, mas uma mensagem, mais precisamente a entrega de uma mensagem boa e libertadora, que muda a situação radicalmente, coloca o ouvinte em confronto com uma situação nova e o chama à decisão.

No Antigo Testamento, evangelho é a mensagem da iminente libertação do povo de Israel do cativeiro babilônico; no Novo Testamento, é a mensagem, específica de Jesus, do advento do reino de Deus, a mensagem de que Jesus é o Cristo, a mensagem da Sua morte e da Sua ressurreição e do Senhor elevado, eficazmente presente na Igreja e no mundo com o Seu Espírito, a mensagem da esperança na sua vinda definitiva, do início e do dom da nova vida.

Pois bem, para Francisco, trata-se do evangelho de Deus, na Igreja vitalmente pregado, acreditado, celebrado e vivido. Para ele, é um evangelho da alegria, no sentido de uma plenitude superabundante de vida, que só Deus, que é tudo em todos, pode dar (Evangelii gaudium, 4s.; 265).

Os primeiros parágrafos da Evangelii gaudium já mostram que a alegria do evangelho não consiste, em primeiro lugar, na superação de uma injustiça social, por mais que isso, como mostram os parágrafos seguintes, esteja no coração do Papa Francisco.

A abordagem é mais profunda. Trata-se da falta de alegria e de impulso, do vazio interior e da solidão da pessoa fechada em si mesma e do seu coração cômodo e avaro (Evangelii gaudium, 1s.). O coração fechado sobre si mesmo (cor incurvatum), tanto em Agostinho quanto em Martinho Lutero, é um conhecido motivo para descrever a situação do homem ainda não liberto.

Francisco se une a isso com o seu discurso sobre a autorreferencialidade. Em última instância, a sua abordagem à falta de alegria e de entusiasmo remonta ao que, desde os primeiros Padres do deserto e até Tomás de Aquino, é considerado o pecado radical e a tentação original do ser humano: a acídia, a inércia do coração, a força de gravidade que atrai para baixo, o peso, a náusea das coisas espirituais, que leva à tristeza deste mundo (2Coríntios 7, 10; cfr. Evangelii gaudium, 1s.; 81).

Essa análise do tempo presente, na realidade, não é um conjunto de pensamentos bem-intencionados e piedosos, mas pouco convincentes. O Papa Francisco não está sozinho nesse esforço de análise. Análises semelhantes se encontram em muitos pensadores importantes e influentes do século passado.

Søren Kierkegaard e, depois, de modo diferente, Romano Guardini já falaram da melancolia; Martin Heidegger, da angústia como estado de ânimo de fundo; Jean-Paul Sartre, da náusea do homem de hoje.

Friedrich Nietzsche descreveu ironicamente o "último homem", que se contenta com a pequena felicidade banal, para o qual, no entanto, não brilha mais nenhuma estrela: "O que é o amor? E a criação? E o desejo? O que é uma estrela? – assim se pergunta o último homem e pisca o olho".

Lucidamente, com base em muitas citações e observações, quem evidenciou a falta de alegria do homem moderno foi um antecessor meu na cátedra episcopal de Rottenburg, o bispo Paul Wilhelm Keppler (1852-1926), no livro Mehr Freude (Mais alegria), divulgado em muitas edições e traduções.

A Evangelii gaudium aborda o problema da Igreja e do mundo atual na raiz. À urgência do momento e à crise na Igreja, ela responde com o evangelho. O evangelho é a origem, dada de uma vez por todas, a base permanente e a fonte que jorra continuamente toda doutrina cristã e disciplina moral (Dignitatis humanae, 1501).

Somente a partir do evangelho, a fé e a vida cristã podem reconquistar o seu frescor (Evangelii gaudium, 11). A alegria do evangelho pode suscitar de novo a alegria de viver, a alegria pela criação, pela fé e pela Igreja. Só a alegria como dom do Espírito Santo (Romanos 14, 17; 15, 13 e seguintes), a alegria de uma "evangelização com Espírito" (Evangelii gaudium, 259-261) pode levar a um novo início.

Uma vez que Deus é o bem supremo, é tudo em todos e tudo dá, segundo Tomás, a alegria nascerá como plenitude global do homem do amor de Deus. Com essa abordagem, o Papa Francisco se move dentro de uma grande tradição.

Na história da Igreja, o evangelho esteve no pano de fundo de muitos movimentos de renovação, a partir do monaquismo antigo até os movimentos de reforma da Idade Média. O mais conhecido é o movimento evangélico de São Francisco de Assis e de São Domingos.

Francisco, junto com os seus irmãos, quis simplesmente viver o evangelho sine glossa, sem tirar e sem acrescentar nada a ele (cfr. Evangelii gaudium, 271). A partir desse movimento evangélico da época, provêm os dois mais importantes teólogos da Idade Média, Tomás de Aquino (1225-1274) e Boaventura (1221-1274).

Na Summa da teologia de Tomás de Aquino, encontra-se um artigo de surpreendente originalidade sobre a nova lei do evangelho, ao qual o Papa Francisco faz referência explícita na Evangelii gaudium (n. 37, 43). Nele, Tomás defende que o evangelho não é uma lei escrita, não é um código de doutrinas e preceitos, mas sim o dom interior do Espírito Santo, que nos é dado com a fé e que opera no amor.

Apenas secundariamente, documentos e prescrições fazem parte dele; eles devem nos dirigir ao dom da graça ou levá-la a efeito; porém, eles não têm nenhum significado autônomo em relação à comunicação da graça, isto é, nenhum papel justificante.

Com essa teologia do evangelho, Tomás de Aquino e Martinho Lutero estão, entre si, muito mais próximos do que parece à primeira vista. Também para Martinho Lutero, o cristianismo não é uma religião do livro, como muitas vezes se entendeu na história subsequente do protestantismo, apelando à "sola Scriptura". O evangelho é palavra viva da pregação.

A esse respeito, por erros de todas as partes e por causa de enredamentos históricos, infelizmente, chegou-se, no século XVI, à divisão da cristandade. O Concílio de Trento (1545-1563), que se confrontou com a doutrina da Reforma Protestante, não foi cego a respeito da exigência evangélica (entendida no sentido original). Já no primeiro decreto dogmático, ele proclamou que queria conservar e restaurar a pureza do evangelho, entendendo com isso o evangelho pregado, acreditado e vivido na Igreja como fonte viva de toda a verdade salvífica e de toda a moral.

Sobre essa base, Trento introduziu uma renovação da Igreja e, em um de seus primeiros decretos de reforma, indicou a pregação como tarefa principal do bispo. São Carlos Borromeu, considerado o modelo do bispo reformador pós-tridentino, tornou-se nisso, para Angelo Roncalli, o futuro Papa João XXIII, o modelo certamente também da sua ideia de concílio.

Durante o Concílio Vaticano II, em cada sessão, o livro dos evangelhos era entronizado solenemente diante dos padres conciliares reunidos; o evangelho devia ter o primeiro lugar. O Concílio, depois, colocou novamente a palavra de Deus pregada e vivida no centro da vida da Igreja (Dei Verbum 7; 21-26; Lumen gentium, 23-25).

Na Evangelii nuntiandi (1975), Paulo VI indicou a evangelização como a missão essencial da Igreja ou, melhor, como a sua mais profunda identidade (Evangelii nuntiandi, 14) e falou da necessidade da autoevangelização da Igreja (Evangelii nuntiandi, 15).

João Paulo II, em inúmeros discursos e, de modo sintético, na encíclica missionária Redemptoris missio (1990), desenvolveu o programa de uma nova evangelização.

Bento XVI repropôs tal exigência na carta apostólica Porta fidei (2011) e com a carta para o Sínodo dos Bispos de 2012. O fruto desse sínodo foi recebido em muitas passagens da exortação apostólica Evangelii gaudium (1; 14s; 262-283). Assim, a evangelização tornou-se o programa pastoral da Igreja, também e precisamente com o Papa Francisco.

O Papa Francisco se coloca em uma tradição que remonta às origens, especialmente na tradição dos seus imediatos antecessores. Ao mesmo tempo, ele imergiu no presente do nosso tempo. Nas aporias do presente, de fato, a modernidade corre o risco, no Ocidente, de acabar pós-modernamente no nada, enquanto, no Sul do mundo, as consequências econômicas têm efeitos mortais para milhões de pessoas.

Nessa situação, muitos buscam uma alternativa e a encontram cada vez mais nos movimentos evangélicos. Alguns observadores identificaram essa tendência evangélica também na Igreja Católica do século XXI.

O Papa Francisco compreendeu esse batimento do coração da Igreja atual. Ele não defende uma posição liberal, mas uma posição radical, no sentido original da palavra, ou seja, que retorne às raízes (radix). O retorno à origem, porém, não é um encurvamento sobre o ontem e sobre anteontem, mas uma força para um início corajoso voltado ao amanhã.

Com o seu programa evangélico, ele se refere à mensagem original da Igreja justamente como a necessidade fundamental do presente, dando início a uma renovação radical. Portanto, ele não se adéqua nem a um esquema tradicionalista nem a um progressivo. Lançando pontes rumo às origens, ele é um construtor de pontes (pontífice) rumo ao futuro.

O evangelho é uma mensagem boa, mas também uma mensagem de desafio. É um apelo à conversão e a uma nova orientação. Desse modo, ele suscita necessariamente resistências. Assim, o discurso do papa sobre o evangelho também tem inquietado muitos.

O Papa Francisco fala muito do evangelho, mas surpreendentemente pouco da doutrina da Igreja. Por isso, muitos se perguntam: o que ele pensa da doutrina da Igreja? Ele quer até contrapor evangelho e doutrina, como fez a teologia liberal?

Naturalmente o Papa Francisco não quer assumir essa concepção liberal. Ao contrário, o evangelho, como já havia dito o Concílio de Trento, é a fonte da qual brotam as doutrinas. Para Francisco, essa não é apenas uma constatação histórica. Da constatação histórica, ao contrário, segue-se que se deve interpretar a doutrina à luz do evangelho.

O Papa Francisco tira essa consequência. Ele chama de novo à consciência o princípio, reafirmado pelo Concílio Vaticano II, da hierarquia das verdades. Desse modo, ele pede que as muitas e multiformes verdades sejam interpretadas a partir do seu fundamento e do seu centro cristológico (Unitatis redintegratio, 11; Evangelii gaudium, 36).

Essa doutrina não é nova. Tomás de Aquino já havia evidenciado que a fé não é uma suma exterior de uma série de verdades, mas que cada afirmação é parte de um todo articulado (articulus fidei). Ele sabia que os artigos fundamentais da fé envolvem a totalidade do evangelho.

Até mesmo o Concílio Vaticano I tinha pedido que se compreendesse a fé com base no nexo interior dos mistérios e tendo em mente o fim último do homem (Dignitatis humanae, 3016).

Não há uma hierarquia apenas entre as verdades, mas também entre as virtudes. A moral católica não é um catálogo de pecados e de erros. Todas as virtudes estão a serviço da resposta de amor (Evangelii gaudium, 39). Jesus mesmo resume lei e profetas no mandamento principal do amor a Deus e ao próximo (Mateus 22, 34-40; cfr. 5, 43; Romanos 13, 8-10; Gálatas 5, 14).

O Papa Francisco indica isso como o coração do evangelho: "Neste núcleo fundamental, o que sobressai é a beleza do amor salvífico de Deus manifestado em Jesus Cristo morto e ressuscitado" (Evangelii gaudium, 36).

A partir desse modo de ver, ele tira consequências práticas para a pregação. Ele diz que, na pregação, não se deveria reduzir a doutrina a aspectos secundários. Ao contrário, ela deve ser compreendida a partir do nexo com a mensagem de Jesus Cristo ou, melhor, a partir do coração da sua mensagem (Evangelii gaudium, 34-39; 246).

Apenas se se virem as verdades da fé na sua íntima conexão se poderá resplandecê-las na sua beleza original e em toda a sua força de atração. Só assim se pode novamente espalhar o perfume do Evangelho (Dignitatis humanae, 34; 39).

Esse programa querigmático recorda o princípio do Lutero, "aquilo que Cristo põe no centro (was Christum treibet)" e, no entanto, também é muito diferente dele. De fato, para o Concílio e para o Papa Francisco, não se trata de um princípio exclusivo, com base no qual se podem eliminar as chamadas verdades secundárias ou incômodas, ou se pode liquidá-las como menos vinculantes.

Para o Papa Francisco, trata-se de um princípio hermenêutico inclusivo e, de fato, sobretudo, de uma exigência pastoral da pregação; com a ajuda de tal princípio, ele quer compreender de novo o evangelho inteiro, na sua beleza interior, e fazer com que ele volte a resplandecer (Evangelii gaudium, 237).

O Papa Francisco não quer revolucionar a fé e a moral; ele quer interpretar fé e moral a partir do evangelho. De acordo com o caráter querigmático do evangelho, ele faz isso não em uma linguagem doutrinal abstrata, mas em uma linguagem simples, mas comunicativa e dialógica não simplificante, que interpela as pessoas e as envolve.

Assim, ele não renuncia a nada em relação à doutrina; desse modo, ao contrário, ele pode dizer que a fé é sempre uma fonte fresca e refrescante (Evangelii gaudium, 11) e uma verdade que nunca sai de moda (Evangelii gaudium, 265). Ele pode convencer os fiéis da beleza da fé e encorajá-los a uma vida alegre em virtude da fé.

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