''É uma aberração matar em nome de Deus. Mas as religiões não devem ser insultadas.'' Entrevista com o Papa Francisco no voo para as Filipinas

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16 Janeiro 2015

Os atentados de Paris, a liberdade de expressão, a responsabilidade: no voo do Sri Lanka para as Filipinas, o Papa Francisco respondeu à pergunta de um jornalista francês sobre o debate que se desencadeou depois do cruel massacre dos cartunistas do Charlie Hebdo.

A reportagem é de Andrea Tornielli, publicada no sítio Vatican Insider, 14-01-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

O Papa Bergoglio explicou que "não se pode reagir violentamente", ao contrário, é "uma aberração matar em nome de Deus". Mas, no que diz respeito à liberdade de expressão, "há um limite", levando a entender, com o exemplo da ofensa à mãe, que, ao se tocar naquilo que as pessoas têm de mais caro, às vezes, podem-se desencadear reações precipitadas.

Eis alguns trechos da entrevista.

Liberdade de expressão e de religião

"Eu acredito que todas as duas são direitos humanos fundamentais, a liberdade religiosa e a liberdade de expressão. Falemos claro, vamos para Paris! Não se pode esconder uma verdade: cada um tem o direito de praticar a própria religião sem ofender, livremente, e assim queremos fazer, todos. Segundo: não se pode ofender ou fazer a guerra, matar em nome da própria religião, em nome de Deus. A nós, aquilo que acontece agora nos surpreende, mas pensemos na nossa história, quantas guerras religiosas tivemos! Pensemos na noite de São Bartolomeu! [A referência é ao massacre dos huguenotes, mortos pelos católicos] Como se entende, também nós fomos pecadores nisso, mas não se pode matar em nome de Deus, isso é uma aberração. Deve-se fazer com liberdade, sem ofender.

"Sobre a liberdade de expressão: cada um não tem apenas a liberdade e o direito, mas também a obrigação de dizer o que pensa para ajudar o bem comum. Se um deputado não diz aquele que acha que é o caminho verdadeiro a se percorrer, não colabora com o bem comum. Portanto, ter essa liberdade, mas sem ofender, porque é verdade que não se pode reagir violentamente, mas se o Dr. Gasbarri, que é um amigo, diz um palavrão contra a minha mãe, espera-lhe um soco. Não se pode provocar, não se pode insultar a fé dos outros. O Papa Bento XVI, em um discurso [a lectio de Regensburg Regensburg, em 2006] tinha falado dessa mentalidade pós-positivista, da metafísica pós-positivista, que levava a acreditar que as religiões ou as expressões religiosas são uma espécie de subcultura, tolerada, mas são pouca coisa, não fazem parte da cultura iluminista. E essa é uma herança do Iluminismo. Tantas pessoas que caluniam, zombam a religião dos outros. Elas provocam, e pode acontecer e o que aconteceria ao Dr. Gasbarri se ele dissesse algo contra a minha mãe. Há um limite. Toda religião tem dignidade, toda religião que respeite a vida humana, a pessoa humana, eu não posso zombar dela. Tomei esse exemplo do limite para dizer que na liberdade de expressão há limites, como (no exemplo) da minha mãe."

"A minha segurança? Preocupa-me a dos fiéis"

"Sempre a melhor maneira de responder [às ameaças] é a mansidão, ser manso, humilde, como o pão, sem fazer agressões. Preocupam-me os fiéis, de verdade, e sobre isso eu falei com a segurança vaticana: aqui no voo está o Dr. Giani [o chefe da Gendarmeria Vaticana], encarregado disso, ele está atualizado. Isso me preocupa bastante. Mas você sabe que eu tenho um defeito, uma bela dose de inconsciência. Algumas vezes, eu me perguntei: mas e se isso acontecesse comigo? Somente pedi ao Senhor a graça de que não me faça mal, porque eu não sou corajoso diante da dor, sou muito temeroso."

Os camicazes e as crianças

"Talvez seja uma falta de respeito, mas eu diria que, por trás de cada atentado suicida, há um elemento de desequilíbrio humano, não sei se mental, mas humano. Algo que não vai bem na pessoa, essa pessoa tem um desequilíbrio na sua vida. Dá a vida, mas não a dá bem. Há muitas pessoas que trabalham, como por exemplo os missionários: dão a vida, mas para construir. Os camicazes, ao contrário, dão a vida para destruir. Há algo que não vai bem. Eu acompanhei a tese de licença de um piloto da Alitalia que a fez sobre os camicazes japoneses. Eu corrigia a parte metodológica. Mas não se entende até o fim o fenômeno, que não é apenas do Oriente, e está ligada aos sistemas totalitários, ditatoriais, que matam a vida ou a possibilidade de futuro. Mas, repito, não é um fenômeno apenas oriental. Quanto ao uso das crianças para os atentados [a referência é às meninas camicazes na Nigéria e no vídeo chocante do menino que mata uma vítima do IS]: elas são usadas em todas as partes para tantas coisas, exploradas no trabalho, como escravos, exploradas sexualmente. Há alguns anos, com alguns membros do Senado na Argentina, quisemos fazer uma campanha nos hotéis mais importantes para dizer que ali não se exploram as crianças para os turistas, mas não conseguimos... Às vezes, quando eu estava na Alemanha, caíram sob os meus olhos artigos que falavam das zonas de turismo erótico no Sudeste Asiático, e lá também se tratava de crianças. As crianças são exploradas até para isso, para os atentados camicazes. Não ouso dizer mais."

Um novo encontro com as religiões em Assis

"Houve a proposta de fazer um novo encontro em Assis com as religiões contra a violência. Sei que alguns estão trabalhando nisso. Falei com o cardeal Tauran, e sei que isso desperta inquietação nas outras religiões."

A visita ao templo budista

"O monge que dirige esse templo conseguiu ser convidado pelo governo ao aeroporto, também é muito amigo do cardeal Ranjith e, quando me cumprimentou, me pediu para visitar o templo. Falei com o cardeal, não havia tempo. Quando cheguei, tive que suspender o encontro com os bispos, porque eu não estava bem, estava cansado, depois dos 29 quilômetros, eu estava um trapo. Ontem [quarta-feira], depois de voltar de Madhu, havia a possibilidade. Telefonei e fui. Lá, estão as relíquias de dois discípulos de Buda, estavam na Inglaterra, e os monges conseguiram obtê-las de volta. Ele veio ao aeroporto, eu fui encontrá-lo na sua casa.

"Depois, ontem [quarta-feira], vi uma coisa que eu nunca pensaria em ver em Madhu: não havia somente católicos, havia budistas, islâmicos, hindus, e todos vão lá para rezar e dizem que recebem graças. Há no povo, que nunca erra, algo que os une. E se eles são tão naturalmente unidos para ir juntos rezar em um templo que é cristão, mas não só cristão, como eu podia não ir ao templo budista? O que aconteceu em Madhu é muito importante, há o sentido de inter-religiosidade que se vive no Sri Lanka. Há pequenos grupos fundamentalistas, mas não estão com o povo, são elites teológicas...

"Uma vez se dizia que os budistas iam ao inferno? Mas os protestantes também, quando eu era criança, indo para o inferno, assim nos ensinavam. E eu lembro a primeira experiência que tive de ecumenismo: eu tinha quatro ou cinco anos, e ia pela rua com a minha avó, que me segurava pela mão, e na outra calçada vinham duas mulheres do Exército de Salvação, com aquele chapéu que hoje não usam mais e com aquele tope. Eu perguntei: 'Diga-me, vovó, elas são irmãs?' E ela me respondeu: 'Não, são protestantes, mas são boas!' Foi a primeira vez que eu ouvi falar bem de pessoas pertencentes às outras confissões. A Igreja cresceu muito no respeito às outras religiões. O Concílio Vaticano II falou do respeito pelos seus valores. Houve tempos sombrios na história da Igreja, devemos dizer isso sem vergonha, porque nós também estamos em um caminho. Essa inter-religiosidade é uma graça."

A nova encíclica

"Não sei se totalmente, mas, em grande parte, é o homem quem dá tapas na natureza, que tem uma responsabilidade nas mudanças climáticas. Nós nos apoderamos um pouco da natureza, da mãe Terra. Um velho agricultor me disse: Deus perdoa sempre; os homens, às vezes; a natureza, nunca. Nós a exploramos demais. Lembro que, em Aparecida [na reunião dos episcopados latino-americanos de 2007], quando ouvi os bispos do Brasil falarem de desmatamento da Amazônia, eu não entendia muito. Depois, há cinco anos, com uma comissão pelos direitos humanos, fiz um recurso para deter, no norte da Argentina, um desmatamento terrível.

"Depois, há a monocultura: os agricultores sabem que, depois de três anos cultivando trigo, você deve mudar de cultivo para um ano para regenerar a terra. Hoje se faz a monocultura da soja até que a terra se esgote. O homem foi longe demais. Graças a Deus, hoje, há muitos que falam disso, e eu gostaria de lembrar o meu amado irmão Bartolomeu [o Patriarca Ecumênico de Constantinopla] que escreveu muito sobre esse tema, e eu li muito para preparar a encíclica. O teólogo Romano Guardini falava de uma segunda 'incultura', que acontece quando você se apodera da criação, e assim a cultura se torna incultura.

"O primeiro esboço da nova encíclica foi preparada pelo cardeal Turkson com a sua equipe. Depois, eu trabalhei nela e agora prepararei o terceiro esboço, e enviei-o para a Congregação para a Doutrina da Fé, para a Secretaria de Estado e para o teólogo da Casa Pontifícia, para que estudassem para que eu não dissesse coisas estúpidas. Agora, vou tomar toda uma semana de março para terminá-la. Depois, irá para a tradução.

"Acho que, se o trabalho for bem, em junho-julho ela poderá ser publicada. O importante é que haja um pouco de tempo entre a publicação e o próximo encontro sobre o clima de Paris. A última conferência do Peru me decepcionou. Esperamos que em Paris sejam um pouco mais corajosos. Acredito que o diálogo com as religiões também é importante nesse ponto e que haja um acordo sobre um sentir comum. Falei com alguns expoentes das outras religiões sobre o assunto e ao menos dois teólogos o fizeram: no entanto, não será uma declaração em comum. Os encontros com as religiões virão depois."

Os temas da viagem às Filipinas

"Eu arrisco simplificar demais, mas o centro, o núcleo da mensagem será os pobres. Os pobres que querem ir em frente, os pobres que sofreram o tufão Yolanda e que ainda sofrem as suas consequências, os pobres que têm fé, esperança. O povo de Deus, os pobres, os pobres explorados por aqueles que determinam tantas injustiças sociais, espirituais, existenciais. No outro dia, na nossa casa, em Santa Marta, os etíopes festejaram e convidaram cerca de  50 empregados. Eu estive com eles e, olhando para os filipinos que deixaram a sua pátria, pai, mãe e filhos, para vir aqui para trabalhar... os pobres. Esse será o núcleo."

Verdade e reconciliação no Sri Lanka

"Eu não sei bem como estão as comissões da verdade no Sri Lanka. Conheci como era a da Argentina e a apoiei, porque estava em um bom caminho. Concretamente, não posso dizer mais. Mas posso dizer que eu apoio todos os esforços equilibrados para se pôr de acordo. Ouvi uma coisa do presidente do Sri Lanka; não gostaria que isto fosse interpretado como um comentário político. Ele me disse que quer ir em frente no trabalho pela paz, pela reconciliação, depois continuou com outra palavra. Ele disse: deve-se criar a harmonia no povo, que é mais do que a paz e a reconciliação, a harmonia também é musical... Depois acrescentou que essa harmonia vai nos dar a felicidade e a alegria. Eu fiquei admirado e disse: 'Eu gosto de ouvir isso, mas não é fácil!' Ele disse: 'Ah sim, deveremos chegar ao coração do povo'. Isso me faz pensar para responder: apenas chegando ao coração do povo, que sabe o que são as injustiças, os sofrimentos infligidos pelas ditaduras. Somente chegando lá podemos encontrar caminhos justos, sem compromissos. As comissões de inquérito sobre a verdade são um dos elementos que podem ajudar, mas há outros elementos para chegar à paz, à reconciliação, à harmonia, ao coração do povo. Tomei emprestadas as palavras do presidente do Sri Lanka."

Padre Vaz e as novas canonizações

"Essas canonizações foram feitas com a metodologia que se chama equipolente: quando, há muito tempo, um homem ou uma mulher são bem-aventurados e se tem a veneração do povo de Deus e, de fato, são venerados como santos, não se faz o processo sobre o milagre. Fiz isso para Angela de Foligno e depois optei por canonizar pessoas que foram grandes evangelizadores e grandes evangelizadoras. O primeiro foi Pedro Fabro, evangelizador da Europa, que morreu na estrada, evangelizando. Depois, houve os evangelizadores do Canadá, fundadores da Igreja naquele país. Depois, o santo brasileiro fundador de São Paulo. E agora José Vaz, evangelizador da antiga Ceilão. Em setembro, nos Estados Unidos, farei a canonização de Junípero Serra. São figuras que fizeram uma forte evangelização e estão em sintonia com a espiritualidade da Evangelii gaudium."

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