Lawfare no Brasil: a instrumentalização da lei, a negação dos direitos humanos e a judicialização da política. Entrevista especial com Charlotth Back

"O lawfare é uma forma de desestabilizar os governos, de usar de forma traiçoeira e contrária aos direitos humanos as leis que já existem nos países", adverte a advogada

Foto: Flickr - STF

Por: Edição: Patricia Fachin | 29 Julho 2022

 

A instrumentalização do direito e das leis vigentes com a finalidade de garantir interesses econômicos e políticos de determinados Estados ou grupos sociais internacionais e nacionais tem sido uma prática constante em todo o mundo e é comparada, por alguns pesquisadores, a estratégias de guerras para derrotar e aniquilar inimigos. Essa "tática", conhecida como "lawfare", consiste no "uso traiçoeiro das leis, quer dizer, de uma interpretação que não é a mais respeitosa dos direitos humanos", e na adoção de medidas institucionais que "são possíveis e legitimadas pelo direito e encobertas de uma retórica de legalidade", disse Charlotth Back, membro da Comissão de Direito Internacional da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB/RJ e do Conselho Latino-Americano de Justiça e Democracia - CLAJUD, na conferência virtual intitulada “Lawfare como nova estratégia de guerra à luz dos contextos políticos nacional e internacional”, promovida pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU em 30-06-2022.

 

Segundo ela, no Brasil a prática do lawfare tem ocorrido por intermédio do poder judiciário, que interfere em todas as instâncias da vida social, inclusive na política, gerando processos de judicialização desta. Entre as narrativas que sustentam a instrumentalização do direito, Charlotth destaca o discurso contra a corrupção que, sendo uma mazela da sociedade brasileira, encontra eco e reforça ações autoritárias por parte do Estado. "Quando estamos falando da utilização do direito pelo poder judiciário com a narrativa de combate à corrupção, estamos falando de um discurso autoritário que se reveste da defesa dos bens públicos no sentido de defender o que é de todos nós. Nesse sentido, achamos que essa é uma proposta democrática, que está nos protegendo, mas temos por trás disso um autoritarismo, um disfarce dos mais diferentes interesses políticos, econômicos e sociais de grupos tanto nacionais quanto estrangeiros, que tentam submeter a nossa população e mudar os rumos que traçamos para a nossa democracia e as nossas escolhas políticas".

 

A seguir, publicamos a conferência no formato de entrevista.

 

Charlotth Back (Foto: Centro de Direitos Humanos e Empresas - HOMA)

 

Charlotth Back é doutora em Ciências Jurídicas e Políticas pela Universidad Pablo de Olavide - UPO, da Espanha, e mestre em Relações Internacionais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. É professora de Direito Internacional na Universidade Estácio de Sá e pesquisadora do Centro de Direitos Humanos e Empresas - HOMA, da Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF.

 

Confira a entrevista.

 

IHU – O que significa lawfare?

 

Charlotth Back - O termo lawfare tem sido muito mencionado na mídia, especialmente nas mídias mais alternativas, mas, para começarmos, seria interessante dar uma definição sobre o que é. “Law” significa “direito” e lawfare é uma modificação do termo, que não foi feita pela academia, mas pelo próprio setor de Inteligência americano, pelos estrategistas de guerra que, a partir dos anos 2000, percebem que havia a possibilidade de as guerras serem empreendidas não apenas e não mais somente por meio dos aparelhos aos quais estamos acostumados, como ataques diretos, invasões, violência, ou seja, de tudo aquilo que é chamado de intervenção militar, que pode ser feita por ataques aéreos e navais.

 

O sistema de Inteligência americano percebe que uma das melhores estratégias – e inclusive menos custosa – para fazer um ataque ou fazer com que um inimigo seja debilitado de forma a não conseguir se reerguer rapidamente, é a utilização de outros mecanismos. Um deles é exatamente o que foi chamado de lawfare pela própria Inteligência estadunidense, ou seja, a utilização do direito para fins de prejudicar, aniquilar e deslegitimar o inimigo, seja ele qual for. Trata-se do uso do direito nas mais diversas dimensões. Podemos falar de um uso traiçoeiro das leis, quer dizer, de uma interpretação que não é a mais respeitosa dos direitos humanos, como a imposição de sanções ilegais, tal como tem acontecido em diversos conflitos, como no contexto da Venezuela, contra as empresas e o mercado venezuelano. Todas essas medidas são possíveis e legitimadas pelo direito e encobertas de uma retórica de legalidade. A utilização do direito serve para um fim que é geopolítico, que é o que está por trás de tantas medidas que temos visto por aí.

 

 

IHU – Como surgiu a ideia de lawfare?

 

Charlotth Back – Ela surge a partir do que é chamado de guerra híbrida. Esse termo foi popularizado no início dos anos 2000, mas começou a ser mais utilizado a partir das estratégias americanas com relação ao Oriente Médio e suas Revoluções Coloridas, como vimos em relação à Líbia e regiões que sofreram com terremotos políticos e mudanças políticas drásticas. A guerra híbrida coaduna as táticas comuns de guerra, como ataques, fornecimento de armas para determinados grupos, mas também técnicas de desestabilização político-ideológicas do inimigo, que nesse caso seriam os governos que não interessariam mais à lógica norte-americana naquele espaço.

 

 

IHU - Como são aplicadas as técnicas de desestabilização dos governos por meio do lawfare?

 

Charlotth Back – Especialmente por meio do consentimento da população, de grupos jovens através das redes sociais ou de formadores de opinião, o que dá um ar de espontaneidade aos movimentos que acontecem naquele espaço. Portanto, nos parece que – ao analisarmos essa tática de forma pouco profunda – o que está acontecendo é um estopim que vem de dentro da população [de determinado país], de uma insatisfação que vem sendo abafada por algum tempo ou por algum motivo específico, como a alta do preço dos combustíveis ou a morte de algum ativista. No entanto, há uma instrumentalização dessa vontade [da população] ou talvez uma instrumentalização das pequenas revoltas que existem nas sociedades, especialmente naquelas que têm uma vinculação econômica, social e ideológica com os EUA. Nesse sentido, não conseguimos perceber quem de fato deu origem àqueles movimentos que são, aparentemente, espontâneos.

 

Jessé Souza, ao tratar sobre a guerra híbrida e o lawfare, diz que é quase impossível perceber quem são aqueles que integram o exército inimigo porque parece que não há exército inimigo e quem combater. Parece que é algo que foi gestado dentro de cada sociedade. Nesse sentido, o lawfare também é uma forma de desestabilizar os governos, de usar de forma traiçoeira e contrária aos direitos humanos as leis que já existem nos países, ou seja, usar essas leis com a máscara de legalidade para distorcer a vontade da maioria quando estamos falando sobre a necessidade de retirar governos contrários aos interesses hegemônicos ou para impedir que pessoas estejam presentes na disputa eleitoral.

 

 

Manipulação do direito

 

Isso quer dizer que a manipulação do direito e das instituições do Estado democrático de direito consegue viabilizar mudanças institucionais e de regime nas estruturas dos países sem que haja a necessidade de qualquer tipo de custo militar, humano e político, como vemos durante as guerras normais.

 

Para tratar do lawfare, temos que olhar para o espaço geopolítico com o qual estamos lidando. Por exemplo, é impossível lidar com os interesses dos EUA e das empresas estadunidenses sem lidar de forma indissociável com os interesses do Estado estadunidense. Os EUA, portanto, implementam certas táticas – muitas vezes táticas de guerra explícitas, e outras vezes, implícitas – não menos violentas às populações para abrir espaço para as suas empresas e para seus interesses comerciais, financeiros e econômicos. Isso no sentido de controlar e acessar mercados e matérias-primas e ou de destruir concorrentes. Os EUA defendem uma mão invisível do Estado, mas nunca, na sua história, utilizaram dessa mão invisível; a mão do Estado sempre foi visível no sentido de direcionar suas estratégias militares para conseguir e perseguir os interesses das empresas americanas e seus conglomerados.

 

 

Rafael Valim, Cristiano Zanin e Valeska Teixeira Zanin Martins, que são três advogados proeminentes no tratamento do lawfare, o separam em três dimensões complementares que acontecem de forma simultânea, comparando suas estratégias com as estratégias das guerras tradicionais. Em uma guerra tradicional, primeiro, é fundamental sabermos sobre a geografia do lugar em que estamos entrando. Depois, saber o armamento que vamos utilizar e, em terceiro lugar, quais são as externalidades, ou seja, o que pode vir de fora e ser previsto e que poderá nos ajudar ou atrapalhar na estratégia militar. No caso do lawfare, também se buscam essas três dimensões: o campo de batalha, as armas que podem ser utilizadas e as externalidades. O campo de batalha consiste em buscar os espaços, dentro dos países, que sejam permeáveis ao ataque sistemático contra as instituições.

 

No caso do Brasil e de outros países da América Latina, o espaço do campo de batalha mais utilizado é o poder judiciário, um poder não eleito, que não tem interferência da sociedade, que é elitista e tem uma formação bastante vinculada com as instituições americanas. Nesse sentido, o campo de batalha, de modo amplo, é o Brasil, mas, especialmente, o poder judiciário e, dentro dele, o Ministério Público – embora ele não faça parte do poder judiciário, mas trabalha diretamente com ele. Em segundo lugar, podemos pensar no armamento, em quais seriam as armas e instrumentos utilizados para o lawfare. No caso do Brasil, são estratégias jurídicas, legais, ou seja, a utilização das leis e da Constituição para atingir os fins almejados por essa estratégia. Em terceiro lugar, temos a ideia de externalidades e, no caso do lawfare, a principal delas seria a utilização da informação midiática para gerar um ambiente favorável que contribua para a aceitação dessa estratégia de lawfare. Quer dizer, o uso integrado e inteligente dessas três dimensões é essencial para que o lawfare aconteça e tenha resultados positivos para aqueles que têm interesse em deslegitimar o governo brasileiro e em causar danos à população brasileira.

 

Não há, portanto, uma confrontação explícita entre interesses hegemônicos geopolíticos e os interesses locais. Por isso que quando analisamos o lawfare, se começamos de dentro, perdemos a noção do que ele é de fato, porque parece que não faz sentido o que está acontecendo. Mas na verdade faz, porque temos uma abordagem que gera o caos, o qual legitima a utilização do direito como arma. Esse processo é encoberto por uma retórica de legalidade de que o direito é algo dado, de que o poder judiciário é legítimo para fazer o que faz. Ou seja, há uma compreensão de que o direito não é uma construção jurídica humana; ele é visto como uma construção quase que divina, como se o direito e a Constituição caíssem no nosso colo como os Dez Mandamentos, para fazer uma comparação. Mas sabemos que isso não é verdade; o direito é uma construção eminentemente humana e política. Então, políticas públicas são escolhas e opções públicas de colocar mais dinheiro em uma coisa e menos dinheiro em outra. Ou seja, o direito não é uma realidade dada; ele é construído.

 

 

Retórica da legalidade e instrumentalização da lei

 

O lawfare insiste muito na retórica de legalidade porque é uma forma de não questionarmos o que está acontecendo. Muitas vezes já discutimos sobre a lei, mas a lei precisa ser uma expressão da vontade da maioria. Se a lei não é uma expressão da vontade da maioria, muda-se a lei, faz-se um processo de atualização legislativa porque ela não é inquestionável e imutável. Então, o lawfare é, por meio da instrumentalização do poder judiciário e da legislação brasileira, uma forma de perturbar a ordem. Além de ser legitimado pela ideia de legalidade, ele é legitimado por uma ideia de valores democráticos, como se estivéssemos defendendo o Estado democrático brasileiro. É como se aqueles que se colocam contra o lawfare se colocassem contra o Estado e não contra os métodos utilizados de ataque contra o Estado brasileiro.

 

Lawfare como nova estratégia de guerra à luz dos contextos políticos nacional e internacional

 

 

IHU – Quais são as narrativas que sustentam a prática do lawfare na América Latina e no Brasil?

 

Charlotth Back – No contexto latino-americano, o combate à corrupção é a grande narrativa que dá suporte ao lawfare. A missão autoproclamada do sistema de justiça e da grande mídia brasileira de combate à corrupção está no espectro bélico: a guerra contra a corrupção, contra os corruptos, contra os desvios públicos. O que é uma guerra? É uma terra sem lei, onde não há regras, onde todos os meios são válidos para atingir a vitória, de um lado, e a derrota e do inimigo, de outro. Portanto, a corrupção é a grande narrativa simbólica que ataca a população, os governos que foram eleitos pela população e os direitos sociais conquistados por essa população. Vale lembrar que no Brasil a luta pela corrupção já foi usada mais de uma vez para derrubar ou deslegitimar governos.

 

 

Combate à corrupção

 

O combate à corrupção é levado a cabo por meio do judiciário, que esvazia o que chamamos de limites do exercício do poder econômico e punitivo do Estado. Os direitos humanos foram criados para limitar o poder do soberano, ou seja, limitar o poder do Estado. Depois, esses direitos passam a ser mecanismos de desenvolvimento da dignidade, quando falamos de direitos sociais e trabalhistas. No nosso caso, o lawfare faz exatamente o contrário: em vez de limitar o poder do soberano, utiliza a lei para aumentar o poder punitivo do soberano, do Estado, que deveria ser uma exceção, mas que, nos contextos de lawfare, não são exceções. Podemos também lembrar que o direito no Brasil sempre foi utilizado em contextos de exceção para grupos específicos: negros, pobres e periféricos sempre tiveram acesso ao direito no sentido de exceção. O direito não protege essas pessoas; ele as ataca, assim como as instituições do Estado atacam e legitimam o ataque e a violência do Estado contra essas pessoas. Quando estamos falando da utilização do direito pelo poder judiciário com a narrativa de combate à corrupção, estamos falando de um discurso autoritário que se reveste da defesa dos bens públicos no sentido de defender o que é de todos nós. Nesse sentido, achamos que essa é uma proposta democrática, que está nos protegendo, mas temos por trás disso um autoritarismo, um disfarce dos mais diferentes interesses políticos, econômicos e sociais de grupos tanto nacionais quanto estrangeiros, que tentam submeter a nossa população e mudar os rumos que traçamos para a nossa democracia e as nossas escolhas políticas.

 

 

IHU - Por que isso acontece no Brasil e foi possível de ser posto em prática no país?

 

Charlotth Back – Porque, especialmente depois da Segunda Guerra, e, no Brasil, depois da Constituição de 88, houve um reconhecimento de que a administração pública e os poderes públicos eram falhos e não eram capazes de dar ao cidadão aquilo que este teria direito; as políticas públicas eram ineficientes e ineficazes em muitos casos. Portanto, o que passou a acontecer depois da Emenda Constitucional 45, com a centralização do poder judiciário, foi o que chamamos de judicialização da política, ou seja, a ideia de que o judiciário é legitimado e competente para direcionar os fundos do Estado para políticas públicas específicas, seja no sentido de proteção das minorias, quando o Estado está as atacando, seja no sentido de impor alguma conduta financeira para o Estado, quando ele está sendo omisso, por exemplo, no pagamento de remédios para a população. Quando uma pessoa busca um remédio no Sistema Único de Saúde - SUS, mas o remédio não é dado por este, a pessoa recorre à justiça e o juiz determina que o Estado tem que pagar, durante determinado tempo, o medicamento para o cidadão. Então, judicializamos uma esfera que é eminentemente política, de decisão política de colocar mais dinheiro em um lugar e menos dinheiro em outro lugar. É claro que a judicialização da política ocorre por causa de um Estado falho que não atende às necessidades da população. Não há que se condenar a população que busca o judiciário para ter um direito contemplado. Se precisamos do Estado, e ele não dá o respaldo que precisamos, temos que buscar o judiciário – é isso mesmo que tem que ser feito. Agora, dentro desse contexto, percebemos como o ambiente é cada vez mais propício para a interferência do judiciário nas esferas de decisão política e nos processos políticos eleitorais. Então, passamos dessa judicialização da política, que muitas vezes dizem que é um ativismo judicial, para uma perseguição política.

 

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IHU – Como isso acontece no país?

 

Charlotth Back – A justiça passa a determinar tanto os rumos da política quanto das políticas públicas, como também os rumos da própria eleição. Em muitos países, o poder eleitoral é descolado do poder judiciário e, no nosso caso, não, porque temos a justiça eleitoral, ou seja, o judiciário, no Brasil, é um espaço de supervisão e organização das eleições. Em outros países há um quarto poder, que é o poder eleitoral, o poder de escolha da população. Essa possibilidade de intervenção do judiciário na atividade eleitoral por meio de várias leis, como a Lei da Ficha Limpa, possibilitou uma perseguição direta de certos candidatos e pessoas que gostariam de se candidatar a cargos eletivos.

 

 

Além disso, diversos mecanismos do poder judiciário foram utilizados, como o atropelo completo das garantias e direitos processuais, como prazos que corriam muito rápido ou muito lentamente para prejudicar os réus em processos, acusação sem provas de pessoas que aparentemente tinham cometido crimes, ou acusação sem provas para gerar acusações forçadas, que foi algo que aconteceu muito, especialmente na Lava Jato. Houve também o vazamento de informações pela imprensa. Quem não lembra daquele momento em que foi feito um grampo na presidência da República, quando Dilma era presidente e estava falando com o ex-presidente Lula pelo telefone? Percebemos que o lawfare exacerba uma coisa que já acontece no Brasil, a ideia de processo penal de exceção, em que o outro, o réu, passa a ser um inimigo e, portanto, precisa ser combatido, massacrado e eliminado, seja de forma política, real ou processualmente, impedindo essas pessoas de se defenderem.

 

 

IHU - Por que no Brasil o combate à corrupção foi tão efetivo na implementação do lawfare?

 

Charlotth Back – Jessé Souza diz que a corrupção brasileira, desde sempre, esteve na cabeça dos brasileiros como uma das principais mazelas. Lilia Schwarcz diz que a corrupção é um dos traços permanentes da nossa sociedade e que revela o autoritarismo do nosso próprio Estado, ou seja, ela faz parte do cotidiano de todos nós, em maior ou menor escala, desde quando éramos uma colônia. Portanto, a corrupção demonstra justamente o estigma negativo que carregamos desde a colonização. Além disso, nos salta aos olhos que essa missão anticorrupção foi bastante localizada e direcionada para governos que tinham propostas distintas das propostas neoliberais até então hegemônicas. Com essa ideia de corrupção, se atacou primeiro contra alguns políticos e contra as instituições nacionais que foram ou seriam capazes de dar autonomia ao Brasil. Foram feitos ataques a Petrobras e a Eletrobras, sugerindo que todas as nossas empresas são corruptas.

 

 

Jessé Souza diz que o sistema financeiro internacional é forjado na corrupção e, portanto, essa não é uma exclusividade brasileira. O favorecimento, a troca de favores, as informações privilegiadas, isso acontece em todos os lugares nos países chamados desenvolvidos e nos países do Sul. Atacamos o nosso Estado e as possibilidades autônomas do Brasil em nome da ideia de corrupção, que é uma ideia muito difícil de ser combatida porque é muito difícil enfrentar o combate à corrupção. Se dizemos que esse combate não pode ser feito dessa maneira, as pessoas perguntam se somos a favor da corrupção. Não somos a favor da corrupção. É evidente que as pessoas que estão denunciando os abusos dos processos penais e que estão em volta do tema do lawfare não são a favor da corrupção, mas são a favor do respeito às mínimas garantias processuais e às mínimas garantias humanas dos cidadãos. Ao defender essas garantias, para a grande imprensa e para aqueles que nos escutam, parece que estamos defendendo a corrupção, mas é obvio que isso não é a realidade. O combate à corrupção precisa acontecer, mas não pode acontecer sob qualquer argumento, não pode simplesmente aniquilar o direito de defesa e acabar com as empresas nacionais e setores inteiros da economia em nome dele. Vimos e sabemos que houve um consenso entre o poder judiciário, que era muito ligado à mídia, e muitos grupos políticos, que viram aí uma oportunidade de retirar e de atacar certos modelos de governança. Sabemos que o bolsonarismo é filho do lavajatismo, ou seja, dessa estratégia do lawfare.

 

 

Viralatismo

 

A corrupção coloca em evidência o viralatismo que é intrínseco ao povo brasileiro, à nossa ideia de que todas as nossas coisas são ruins, corruptas e inferiores, como se o problema do brasileiro fosse um problema único e tão ruim que ele sempre vai ser pior. Ele sempre estará olhando para os outros países como se eles fossem os grandes arautos da moralidade e de tudo que há de bom no mundo da cultura e da política. Vemos aí que, de um lado, houve uma instrumentalização desse viralitismo que nos colocou em uma fogueira: nós, que somos mesmo corruptos, temos que destruir nosso país e nosso processo penal em nome de uma moralidade que é inexistente – em nenhum lugar do mundo temos ideia de uma completa não-corrupção.

 

O lawfare tem muitas características – e é um tema polêmico e interessante para ser estudado –, as quais nos levam à ideia do ordenamento jurídico brasileiro, pensando em processos penais de exceção, na Constituição ou na estrutura do poder judiciário no sentido de entender como foi possível que o judiciário entrasse numa história como essa, e tem também mecanismos para pensarmos sobre os conglomerados de mídias e a força que eles têm junto à sociedade brasileira, elementos sociológicos para pensar sobre a nossa identidade nacional. Ou seja, é um tema multidisciplinar que deve ser encarado dessa forma e, portanto, uma interpretação muito rasa e que, se não leva em consideração as relações internacionais, vai ser uma análise fraca e incompleta.

 

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