Decisão da Suprema Corte dos EUA abre precedente para retomada de territórios indígenas. Entrevista especial com Lindsay Robertson

Com o veredicto promulgado em julho, metade do estado de Oklahoma foi considerado território da nação Muscogee, povo nativo dos EUA

Indígena norte-americano | Foto: ytimg.com

Por: Ricardo Machado | Tradução: Isaque Gomes Correa | 07 Setembro 2020

Enquanto no Brasil o judiciário tem se mostrado, em muitos casos, claudicante em relação às próprias decisões no que toca à defesa dos povos indígenas – isso fica claro quando levamos em conta as sucessivas tentativas de rediscutir o Marco Temporal –, nos EUA uma decisão da Suprema Corte, em julho passado, tornou-se paradigmática.

 

“O caso se tratava do processo iniciado por Jimcy McGirt, cidadão da tribo Nação Seminole, contra o estado de Oklahoma pelo cometimento de um crime ocorrido no território que, segundo McGirt, era a reserva da tribo Nação Muscogee (Creek), em consequência do que, sob a lei federal, Oklahoma não tinha jurisdição e o crime deveria ser processado pelos Estados Unidos”, explica Lindsay Robertson, professor e pesquisador da Escola de Direito da Universidade de Oklahoma. “A Nação Muscogee (Creek) é uma tribo indígena que, nos anos de 1830, mudou-se à força da região sul dos EUA para aquele que é hoje o estado de Oklahoma, e os territórios que McGirt alega ser do grupo incluem todos – ou ao menos parte deles – dos onze condados de Oklahoma e uma grande parte da cidade de Tulsa”, complementa.

 

A decisão pode se estender a outras etnias indígenas em outros estados dos EUA, de tal modo que tribos que antes haviam sido derrotadas nos pleitos judiciários agora podem reivindicar seus direitos. “Em primeiro lugar, ela [a decisão] é importante porque o lado indígena venceu. Essa não vinha sendo a norma nos últimos anos, e muitos dos defensores dos direitos indígenas estão esperançosos com o alvorecer de uma nova era para os direitos dos povos nativos”, pontua. Sobre os impactos da decisão em escala global, considerando-se que os Estados Unidos ainda possuem influência no contexto geopolítico internacional, o professor destaca que “Talvez o aspecto mais importante da decisão é que ela sustenta que, em certos casos, os erros históricos devem ser corrigidos, independentemente das consequências na atualidade. Isso é algo sobre o qual outros países poderão refletir”.

 

Lindsay G. Robertson é professor da Escola de Direito da Universidade de Oklahoma, nos EUA, desde 1997. Suas áreas de atuação são voltadas para o Direito Indígena Federal, Direito Indígena Comparado e Internacional, Direito Constitucional e História Legal e atua como Diretor do Centro para o Estudo da Legislação e Política Indígena Americana. Além disso é diretor fundador da International Human Rights Law Clinic.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Gostaria que o senhor explicasse do que se trata a decisão da Suprema Corte dos EUA que definiu metade do estado de Oklahoma como território indígena?

Lindsay Robertson – No dia 9 de julho, a Suprema Corte dos Estados Unidos emitiu a sua decisão no caso McGirt x Oklahoma, naquela que é a decisão mais importante pelos direitos indígenas emitida pela Suprema Corte no século XXI. O caso se tratava do processo iniciado por Jimcy McGirt, cidadão da tribo Nação Seminole, contra o estado de Oklahoma pelo cometimento de um crime ocorrido no território que, segundo McGirt, era a reserva da tribo Nação Muscogee (Creek), em consequência do que, sob a lei federal, Oklahoma não tinha jurisdição e o crime deveria ser processado pelos Estados Unidos. A Nação Muscogee (Creek) é uma tribo indígena que, nos anos de 1830, mudou-se à força da região sul dos EUA para aquele que é hoje o estado de Oklahoma, e os territórios que McGirt alega ser do grupo incluem todos – ao menos parte deles – dos onze condados de Oklahoma e uma grande parte da cidade de Tulsa.

A pergunta para o tribunal foi: Jimcy McGirt estava certo em que a terra era uma reserva da tribo Nação Muscogee (Creek) ou o estado de Oklahoma estava certo em que, embora o território fora certa vez uma reserva indígena, ela havia sido desfeita pelo Congresso mais de um século atrás?

O território foi repartido no século XX – dividido em propriedades e ranchos individuais e distribuído a cidadãos Muscogee (Creek) individualmente –, e a corte havia decidido, em casos anteriores, que se o Congresso claramente se manifestasse, na repartição das terras indígenas, de que não eram mais reservas, então elas não seriam. Se a lei de repartição não estivesse clara, a corte poderia olhar para as circunstâncias circundantes, incluindo mudanças subsequentes na propriedade de terras, para decidir se uma reserva havia sido criada, de forma que, se, como neste caso, a maior parte de uma grande cidade, com centenas de milhares de moradores não nativos, estiver dentro da reserva, a corte poderá considerar como uma ex-reserva.

 

 

No caso McGirt x Oklahoma, a maioria do tribunal decidiu que as circunstâncias circundantes eram irrelevantes e se o texto da lei de repartição não desfazia claramente a reserva, então não se trata de uma ex-reserva, independentemente das possíveis consequências. Segundo os ministros da corte, McGirt estava certo: a reserva Muscogee (Creek) não fora desfeita e Oklahoma não tinha jurisdição para processar. Aliás, essa decisão seguiu a opinião da corte em um outro caso relativo ao desmantelamento de uma reserva, o caso Nebraska x Parker, em que um pequeno município, não nativo no estado do Nebraska, foi considerado como estando dentro de uma reserva.

 

 (Arte e tradução: Natália Froner | IHU)

 

IHU On-Line – O que essa decisão significa em termos históricos?

Lindsay Robertson – A decisão no caso McGirt x Oklahoma importa por uma série de motivos. Em primeiro lugar, ela é importante porque o lado indígena venceu. Essa não vinha sendo a norma nos últimos anos, e muitos dos defensores dos direitos indígenas estão esperançosos com o alvorecer de uma nova era para os direitos dos povos nativos.

Em segundo lugar, essa decisão reforça a regra, no caso Nebraska x Parker, de que as externalidades são irrelevantes quando se trata da desativação das reservas territoriais. A linguagem clara do estatuto responde, por si, a questão. Isso significa que as tribos indígenas devem agora ser capazes de apresentar suas reivindicações com base em premissas históricas sem ter medo de que serão derrotadas por eventos subsequentes, muitas vezes injustos.

 

 

IHU On-Line – Como se deu a discussão no âmbito da Suprema Corte, foi uma vitória apertada em uma corte com maioria conservadora? Foi uma surpresa o voto do ministro Gorsuch?

Lindsay Robertson – Foi uma decisão de cinco a quatro, com os quatro ministros da justiça progressista juntando-se ao ministro Gorsuch, que é conservador. O voto deste último não foi, na verdade, uma surpresa, na medida em que ele tem mais experiência com questões legislativas dos povos indígenas do que qualquer ministro juiz da corte. Não estava claro que todos os ministros progressistas concordariam com ele.

 

IHU On-Line – O contexto de emergência de manifestações antirracistas, sobretudo após o assassinato de George Floyd, teve algum papel na decisão final?

Lindsay Robertson – Não creio que este contexto influiu na decisão, mas penso que, como consequência de um aumento na conscientização da questão da justiça racial nos Estados Unidos, mais pessoas acompanharam o caso e a decisão.

 

IHU On-Line – Quais são as implicações legais da decisão? O que muda? Os EUA terão a partir de agora 54 estados?

Lindsay Robertson – Não iremos ter mais estados, mas a decisão vem tendo consequências práticas no leste de Oklahoma. Quatro tribos indígenas, além da Muscogee (Creek) – isto é, as tribos Seminole, Choctaw, Chickasaw e Cherokee –, se mudaram à força para Oklahoma, vindas do sul dos EUA, isso nas décadas de 1830 e 1840. Todos as quatro tribos, como a Muscogee (Creek), tiveram suas terras repartidas no final do século XIX e começo do século XX pelos Estados Unidos. Como as leis de repartição aqui são todas semelhantes à lei relativa ao território da tribo Muscogee (Creek), muitos creem que o raciocínio em McGirt x Oklahoma aplica-se a estes outros quatro casos também.

O que isso significaria? Em primeiro lugar, as regras de jurisdição criminal federais irão se aplicar na reserva Muscogee (Creek) e, possivelmente, nas terras das outras quatro tribos, que, juntas, formam a metade do leste de Oklahoma. Quando crimes ocorrerem nestas terras por – ou contra – cidadãos tribais, na maioria dos casos os Estados Unidos e, em alguns casos, as tribos terão jurisdição para processar, e não o estado. Do lado civil, as tribos terão jurisdição para regular as atividades dos cidadãos tribais e, em casos limitados – por exemplo, onde não membros se engajam voluntariamente em relações comerciais com as tribos –, também terão jurisdição para regular a conduta de não indígenas.

 

 

IHU On-Line – A decisão abre precedente para o reconhecimento de novos territórios indígenas em outras regiões dos EUA?

Lindsay Robertson – É possível que as tribos indígenas, em outras partes dos EUA, cujos históricos legais se assemelham aos da tribo Nação Muscogee (Creek), possam reivindicar que as suas reservas históricas ainda estão intactas também.

 

IHU On-Line – Como a decisão da Suprema Corte dos EUA, um país importante na geopolítica global, pode impactar outros países?

Lindsay Robertson – Talvez o aspecto mais importante da decisão é que ela sustenta que, em certos casos, os erros históricos devem ser corrigidos, independentemente das consequências na atualidade. Isso é algo sobre o qual outros países poderão refletir.

 

 

IHU On-Line – Como tem sido o seu trabalho na universidade juntamente com as populações indígenas?

Lindsay Robertson – Tenho me engajado ativamente no ensino e na defesa dos direitos indígenas há mais de trinta anos. Como professor de direito, formo estudantes de direito e, em um programa on-line, mestrandos do mundo todo sobre temas envolvendo a legislação indígena. Sou ministro da Suprema Corte para as tribos Cheyenne e Arapaho e estou envolvido em vários projetos das Nações Unidas sobre os direitos indígenas.

 

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