22 Mai 2008
17 de julho de 2007. No final da tarde, passamos em frente à TV e nos deparamos com uma cena surreal. O vôo JJ 3054, que havia saído de Porto Alegre e tinha como destino o aeroporto de Congonhas, em São Paulo, com 199 pessoas a bordo, sofreu o maior acidente aéreo já ocorrido no mundo. A imagem forte e amplamente divulgada esqueceu que, por detrás das 199 pessoas mortas no acidente, havia 199 famílias sofrendo. As instituições responsáveis também. Reunidos, chocados, perplexos, vivendo uma dor eterna, os parentes, ajudados pelos parentes de vítimas de dois outros grandes acidentes anteriores, organizaram a Associação das Famílias e Amigos das Vítimas do Vôo JJ 3054. Desde então, eles lutam por vida, verdade e justiça.
À frente do movimento, Dario Scott e a esposa Ana Volpi, pais de Thais Volpi Scott, 14 anos, uma das vítimas, conversaram pessoalmente com a IHU On-Line. Ana nos recebeu em sua sala e convidou o marido para conceder esta entrevista, na qual falam de sua dor e de suas lutas. “Nossa vida mudou da água para o vinho”, diz a professora do PPG de História da Unisinos, que teve roubados, com esta tragédia, além de sua única filha, seus planos e sua vida. Para Dario, também professor da Unisinos, “o pior de tudo é saber que isso tudo poderia ter sido evitado. Não podemos, claro, voltar atrás, mas podemos continuar brigando para que isso não aconteça novamente”. Choramos.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Você poderia contar como foi desde o dia do acidente até o dia em que tomaram a decisão de montarem a associação?
Ana Volpi – Nossa vida mudou da água para o vinho. Nós somos paulistanos e surgiu uma oportunidade de trabalhar na Unisinos quando o PPG de História abriu um concurso para professores. Eu acabei de me candidatando e fiquei com uma das duas vagas. Com isso, nos mudamos para o Rio Grande do Sul em setembro de 2005. Viemos exatamente porque queríamos colocar nossa família em primeiro lugar. Em São Paulo, era uma vida corrida. Já havíamos morado duas vezes fora do Brasil, mas acreditamos que era importante voltar para o Brasil e ficar com a família. Então, a oportunidade de vir para a Unisinos foi encarada muito positivamente por nós, pois seria a oportunidade de termos uma vida mais tranqüila, mais próxima. Foi, enfim, uma escolha muito consciente. Optamos por morar em São Leopoldo para viver perto do trabalho e para que nosso contato familiar fosse ainda mais intenso.
A Thais, nossa filha, estava com 12 anos quando viemos, estava na sexta série e numa fase muito difícil, pois nessa idade os amigos e a escola são tudo. De qualquer maneira, ela acabou se adaptando. Nós estávamos num momento muito bom, tanto profissionalmente como dentro da nossa família. Freqüentemente, íamos para São Paulo. O Natal de 2006 ela nem passou conosco, pois quis ir para São Paulo. Foi a primeira vez que ela viajou sozinha de avião. A Thais acabou indo novamente para lá, de uma maneira um pouco imprevista, em junho de 2007, de avião. Nós estávamos indo a trabalho, e ela foi junto porque queria ver a família. Em julho, a programação dela era voltar para as férias. Ela convidou uma amiga da escola São José, onde estudava, para ir junto. Os pais da amiga deixaram, e as duas resolveram ir passar as férias de verão com os nossos pais. Para nós, essa era uma boa alternativa, pois nesse período estaríamos muito envolvidos com um grande evento na área de história no Brasil [1].
Estávamos com a casa lotada, muitos colegas hospedados em razão do evento. Na terça, dia 17 de julho, eu vim para a Unisinos pela manhã, voltei para casa e ajudei-a a arrumar as malas, almoçamos juntas e, como eu tinha compromisso às 14h, me despedi dela muito rapidamente e o Dario levou-a ao aeroporto, onde encontraram a Rebeca [2] com a sua mãe. Eu não falei mais com ela...
Dario Scott – A Thais estava super animada com a viagem para São Paulo com a amiga. Ela já tinha feito uma viagem sozinha, mas com uma amiga não. Ela estava se sentindo o máximo; as duas estavam super produzidas. A Thais colocou no Orkut que era a viagem da vida dela. No aeroporto, ela me disse: “Pai, adoro viajar de avião, parece que a gente está caminhando nas nuvens!”.
Essas são coisas que te marcam! Deixei ela no aeroporto, esperei o avião decolar. Nesse momento, eu até me atrapalhei, porque já tinha um avião parado quando chamaram elas para o embarque. Mas não foi nesse que ela embarcou, e sim num outro, que chegou depois. O avião parou muito rapidamente e muita gente embarcou nele, o que me espantou muito. Voltei, então, para a Unisinos, onde me encontrei com a Ana Silvia. Ficamos com os colegas aguardando um horário para sair para jantar. Olhei no relógio, ainda não eram 19 horas e liguei para o meu sogro que estava aguardando as meninas em São Paulo, pois pensei que a Thais já tivesse chegado e tinha esquecido de me ligar. Ele me falou que o avião tinha acabado de descer, mas que não estava com elas ainda. Pedi a ele que quando estivesse com elas me retornasse a ligação. Cinco minutos depois, a mãe da Rebeca me ligou aos prantos, dizendo que havia acontecido um acidente em Congonhas e me perguntou se eu já havia falado com as meninas. Nós estávamos num local onde não havia televisão e falei para ela que já tinha ligado para meu sogro, que o avião já tinha descido, mas que não tinha conversado ainda com as meninas. Nesse meio tempo, ficamos em pânico, voltamos para casa, não conseguíamos falar com a Thais. Logo depois, liguei novamente para meu sogro. Ele me contou que havia acontecido alguma coisa, mas ele não sabia ainda o que era. Quando chegamos em casa, vimos aquela cena na televisão. Foi terrível.
O acidente
Mas, na primeira notícia que publicaram, deram um número de vôo que não era o dela. E, como eu sabia exatamente o número do vôo em que havia colocado minha filha, pensei que ela não podia ligar porque ainda estava no avião, e que o avião não havia pousado por causa do acidente. Pouco tempo depois, anunciaram que o vôo era o JJ 3054 que havia saído de Porto Alegre. (pausa) Na mesma hora, amigos nossos nos levaram ao aeroporto...
(choramos) Desculpa, mas é difícil...
O aeroporto estava uma confusão. Fui até o balcão da TAM, disse que queria ir a São Paulo porque minha filha estava naquele avião. Até a Tropa de Choque estava no Salgado Filho [3], porque o desespero era geral. Eles não falavam quem estava no avião, e eu disse que não precisava saber isso. Para mim, bastava saber se o vôo era o 3054 ou não. Quando confirmaram, eu disse que tinha colocado minha filha naquele vôo e que queria ir a São Paulo. A TAM nos disse que não havia mais vôo para São Paulo. O pessoal estava reunido num salão no terceiro andar, subi, estava uma confusão. Insisti tanto que queria ir para São Paulo que consegui um vôo para Guarulhos. Cheguei à uma da manhã, nos receberam no aeroporto, disseram que não tinham informações, que nada tinha sido passado oficialmente. Eu respondi que nada precisava ser confirmado além do número do vôo. Mais uma vez eles me confirmaram. Então, eu disse que tudo o que precisava ser dito por eles já tinha sido mostrado pela televisão e que não precisava de mais detalhes. Fomos a primeira família vinda de Porto Alegre a chegar em São Paulo. Seguimos direto para o hotel onde estavam recebendo as famílias e lá também não tinham informações. Passamos a quarta-feira inteira no aeroporto de Congonhas sentindo aquele cheiro horrível de querosene queimada... é inimaginável a situação. Fiquei na casa da minha família e não nos davam notícia alguma. Na quinta-feira, eu fui até o IML pela manhã e depois até o hotel, onde haviam marcado uma reunião para a noite com a diretoria da TAM. Eu perguntei quando iriam me avisar da reunião se não estava hospedado no hotel. Por isso, eu resolvi que não dava para ficar com a família, pois, se quisesse ter informações, eu precisava estar no hotel.
A associação
O que nos ajudou muito foi a Associação dos familiares das vítimas do acidente da Gol [4] e da TAM [5]. As duas presidentes nos disseram que esse era um momento muito difícil, mas que a gente tinha de se organizar, que se a gente quisesse alguma coisa esse era o momento. Alguns familiares se reuniram, elencamos uma lista de solicitações que achávamos o mínimo que deveria ser feito pelos familiares e a protocolamos junto à TAM. Tanto que é um termo de compromisso que serviu como base para esse termo que os órgãos paulistas firmaram com a companhia. Aliás, agora nós estamos brigando para que eles respeitam o que firmamos nesse documento, porque estão cerceando o direito de alguns familiares que entraram com ações contra a TAM de reembolsar as passagens e estadias para as reuniões que fazemos para levantar as informações sobre o inquérito.
Ana Volpi – Eu acho que é importante dizer que as pessoas só se envolvem numa luta quando um problema como esse acontece com essas pessoas. Estamos conseguindo manter isso na mídia há 10 meses com muita luta e com muita dor.
Dario Scott – Muita dor para nós... Porque não é fácil para irmos todo mês ir num cheking fazer uma manifestação, porque você revive tudo novamente. Mas pensamos que isso seja importante para que ninguém viva o que estamos vivendo. A nossa família acabou, mas ninguém merece passar por isso e eu vejo que a TAM tem um marketing violento. Tanto que a minha filha disse: “Eu quero ir de TAM”. Ela escolheu. Na companhia, eles dizem que são uma escolha do cliente. E realmente são, mas quem dá subsídio para o cliente escolher? Quem sabe realmente como funcionam os meandros dessa companhia? Hoje eu sei um pouco. O inquérito policial diz que os próprios pilotos falavam dos riscos que era usar aquele aeroporto de Congonhas e eles mandam um avião com defeito, lotado, para aquele aeroporto, num dia de chuva... é muita irresponsabilidade. Eles são eternos devedores para nós. O que eles fizeram para nós é indescritível.
IHU On-Line – Para vocês, quem é o culpado pelo acidente?
Dario Scott – O primeiro culpado é o fabricante do avião, porque ele também detectou um problema na aeronave dele. Ele teve quatro acidentes exatamente iguais a esse. Eles fizeram um upgrade de software e um alerta para os comandantes saberem, quando o avião toca no chão, se a posição dos manetes está correta ou não. Mas isso a companhia colocou como opcional. Então, se isso era um item que previne acidentes, jamais eles deveriam colocar como opcional. A Air Bus é a primeira culpada. Depois, vem a TAM. Os manetes eram opcionais e eles não optaram por pôr esse equipamento. Era um equipamento de cinco mil dólares, o que não significa nada para uma companhia aérea. Ela tinha diversos relatórios de perigos escritos por seus comandantes. Tinha uma norma feita pela ANAC – Agência Nacional de Aviação Civil –, a qual a TAM ajudou a elaborar. Essa norma dizia que não se podia usar aquele aeroporto em dias de chuva sem 100% dos reversors operantes. Mas a TAM mandou aquele avião para lá do mesmo jeito. É culpa também dos órgãos federais, tanto da ANAC quanto da Infraero, pois a ANAC deveria ter fiscalizado e se utilizou de uma norma para abrir uma aeroporto que estava interditado.
Ana Volpi – O aeroporto abriu por conta das férias, ou seja, abriu por causa de um interesse puramente financeiro.
Aeroporto de Congonhas
Dario Scott – Antes do acidente, Congonhas era a minha opção. Jamais me passou pela cabeça que o aeroporto de Congonhas não respeitava normas de segurança internacionais. A gente usa o transporte aéreo na ignorância. Mas, quando você começa saber desse tipo de coisa, suas opções ficam diferentes. Nosso objetivo, com todo esse movimento, é tentar levar um pouco de informação para a população. Nós precisamos de companhias aéreas sérias, que respeitem a vida. O primeiro mandamento da TAM é: nada substitui o lucro. Existem sete. Em terceiro lugar, está a segurança. Nós já falamos ao presidente da TAM que a companhia precisa mudar a sua filosofia, mas eles dizem que isso existe desde a época do comandante Rolim [6]. Enquanto eles trabalharem errado, eles não têm a minha confiança. Infelizmente, a TAM domina o mercado, mas sempre que eu puder evitar de ir com ela eu faço. Também nunca mais desci em Congonhas.
Ana Volpi – Sempre que vamos a São Paulo agora não é pela TAM e não descemos em Congonhas. Descemos em Campinas ou Guarulhos, que também têm problemas. Só agora começamos a tomar conhecimento de coisas que não faziam parte do nosso dia-a- dia. Nós todos, como usuários, achávamos, inocentemente, que os órgãos responsáveis faziam a fiscalização e coibiriam os abusos das empresas aéreas, mas isso não acontece.
Os órgãos que deveriam dar segurança não fazem sua parte e é claro que as companhias aéreas vão sempre atrás só do limite. O limite é o lucro deles. Quanto mais houver lucro, melhor para eles. A TAM não está nem aí com as pessoas que transportam. No domingo, uma repórter me perguntou como está a minha vida e eu respondi que ela estava horrível! Não tem nem como descrever. Hoje, a minha vida é cinza.
Eu tenho 49 anos, nós tínhamos só a Thais e a perdemos. Olha o impacto! As pessoas vêm nos falar em dinheiro, eu não estou ligando para a indenização. São coisas muito diferentes, porque nós estamos falando de família, de vida. Nós não queremos que outras pessoas passem por isso que estamos enfrentando. Nossa vida virou de perna para o ar. Graças a Deus, temos trabalho; o que você vai fazer?
IHU On-Line – E como é repensar a ética e os valores passando por tudo isso que vocês estão passando?
Ana Volpi – É impressionante como as pessoas não pensam nisso. A ética está longe. Há um excesso de individualismo: só se pensa no imediato, no consumo. Os valores importantes ficaram relegados ao último plano. Quando fazemos nossas manifestações, há pessoas que nos criticam. Mas estamos fazendo isso pelas pessoas, porque a nossa vida já...
Dario Scott – A nossa filha não volta, e esse alerta todo é para que as empresas tomem um pouco mais de cuidado. Hoje, temos um duopólio no transporte aéreo brasileiro, e as empresas tomam uma certa precaução a mais devido a esses acidentes.
Ana Volpi – Mas elas fazem isso devido à questão financeira. Jamais tomam esses cuidados pela questão ética. Esse acidente aéreo foi o maior que já aconteceu no mundo, e os brasileiros não se sensibilizam. As pessoas ficam irritadas muito mais por conta dos atrasos, das filas, mas deviam estar muito mais preocupadas com as condições do avião, com a manutenção da companhia aérea, com as condições do aeroporto de saída e de chegada. Isso tudo é o que devemos saber, mas só podemos saber isso se houver transparência. Por isso estamos brigando.
Dario Scott – Se soubesse dos alertas feitos sobre esse avião, sobre esse aeroporto, sobre a manutenção dessa companhia, eu jamais teria colocado a minha filha naquele avião. Quando eu liguei para o meu sogro para saber quem iria buscá-las, perguntei se estava chovendo em São Paulo. Como ele confirmou, e eu disse que talvez elas pudessem ter descido em Guarulhos. Achei que eles iriam se dar conta desse problema.
Ana Volpi – O diretor de segurança da TAM diz hoje que assina embaixo no que diz respeito à segurança nos vôos da companhia. Mas ele já estava nesse cargo na época do acidente. As pessoas precisam dar mais valor à vida. Os valores humanistas estão totalmente desacreditados no mundo real e, enquanto as pessoas não forem afetadas diretamente, elas não se mexem. Nós temos o dever de cobrar isso: é um direito nosso que as instituições que defendam os cidadãos. No entanto, elas não estão fazendo isso.
Num primeiro momento, para mim, era importante virar a página, porque eu tive uma perda muito difícil. Na minha idade, achava que a minha vida estava resolvida. Eu estava me preparando para a festa de 15 anos da minha filha, para fazer um pós-doutorado no exterior... eu tinha uma série de planos. Nossa vida foi virada de pernas para o ar. Todos os projetos, a vinda para cá... tudo isso foi roubado, me foi tirado. Naquela manhã, eu fui ajudar minha filha a arrumar as malas e naquela noite aquela vida não existia mais. E nunca mais vai ter... (chorando) Mesmo que a gente opte por uma adoção ou por tentar ter outro filho nosso, jamais vamos ter a Thais de volta.
Dario Scott – É um vazio eterno.
Ana Volpi – Qualquer coisa boa que acontece com a gente, sempre terá a perda, sempre terá uma nuvem triste. É muito difícil para nós voltar para São Paulo, ir na nossa chácara, no nosso apartamento no Guarujá... porque a Thais amava tudo isso. Um dia, decidimos ir a um lugar que não tivesse nada a ver com a Thais, mas não funcionou, porque, mesmo que a Thais nunca tenha estado lá, sempre pensamos que ela deveria estar ali conosco. Esse é o nosso dia-a-dia. As pessoas não sabem o que estamos passando, não porque elas não têm capacidade, mas porque todo dia encontramos alguma coisa, uma dimensão, na qual não se tinha pensado. Todo dia alguma coisa nos lembra ela. É muito difícil...
IHU On-Line – Todos os parentes aderiram ao movimento? Como ele está organizado?
Dario Scott – Não. Há familiares que nunca participaram de nenhuma reunião.
Ana Volpi – Porque cada um tem uma reação diferente. A gente criou um certo vínculo com as pessoas que participam. Você não pode conversar toda hora com seus amigos, com seus colegas, sobre a perda. Por isso, quando você vai para esse encontro, cria um momento diferente. Existem pessoas que jamais foram porque cada um lida com perda de uma maneira.
Dario Scott – Mas há familiares que desconhecem o movimento. Na reunião que aconteceu em Porto Alegre, um casal chegou e disse que nunca tinha vindo porque achavam que as reuniões eram da TAM e eles querem distância da companhia. Agora, que viram e acompanharam a reunião, decidiram participar. Uma familiar de Recife me ligou dia desses e queria participar também. É difícil, porque não tínhamos o contato de todos os familiares, somente daqueles que estavam próximos, mas temos um número significativo de vítimas representadas lá. São 380 familiares associados e 128 vítimas representadas.
Só estão participando pessoas que têm vínculos familiares. As manifestações abertas têm participação do público em geral, mas as reuniões são apenas entre os familiares. Como saem na mídia toda hora notícias sobre indenizações, precisamos preservar a segurança dos familiares.
Exposição
Ana Volpi – Nós estamos expostos. Aquela vida privada que tínhamos não existe mais. Numa cidade pequena como São Leopoldo, andamos na rua, sobretudo o Dario que está muito na mídia, e perdemos nossa privacidade; todos nos conhecem. Recebemos apoio e coisas boas, mas as pessoas sabem tudo nas nossas vidas. Isso é muito complicado, porque é tão bom o anonimato. Mas, apesar de querermos a privacidade, há coisas que precisam ser ditas...
Reuniões e lutas
Dario Scott – Foram apenas três encontros em Porto Alegre. Parece que a TAM tem medo de que nós façamos reuniões aqui, não sei se devido ao apoio do governo do estado. O apoio dos gaúchos é importantíssimo para a causa. Espero que os paulistas também se sensibilizem, principalmente em função do memorial. Para nós, aquele terreno é sagrado.
Ana Volpi – O memorial é outra briga nossa, porque o terreno era da TAM. Um dos pedidos feitos naquela noite era que o terreno fosse doado para que fosse construído um memorial. É importante para que as pessoas não esqueçam. Eles querem fazer uma praça. Não queremos uma praça, e sim um memorial. A associação precisou constituir diversas frentes para poder brigar. A primeira delas foi a questão da identificação. A Thais, por exemplo, só foi identificada no dia primeiro de agosto. Algumas pessoas nem foram. Nesse ato que aconteceu domingo, as quatro primeiras árvores plantadas foram dedicadas especialmente a essas pessoas não identificadas. Foi por causa dessa luta, para ter as informações de IML e outras coisas, que o grupo começou a se formar. Num colapso como aquele, ninguém te diz nada. Você fica batendo cabeça, fica num estado de choque... e por isso o grupo se formou.
IML
Dario Scott – O grupo que se formou em busca de informações no IML foi muito importante. Eu, às vezes, acordava de madrugada e ia para o IML, porque começaram a veicular notícias contraditórias, dizendo que não estavam fazendo nada no IML, que os corpos estavam lá jogados. Eu cheguei lá e disse: “Gente, não me levem a mal, mas eu só quero olhar lá dentro e ver como as coisas estão”. Não me deixaram entrar. No dia seguinte, montaram uma mesa lá com todas as autoridades paulistas. Nossa primeira solicitação foi que eles deixassem se constituir uma comissão que entrasse e acompanhasse os trabalhos do IML para levar informações corretas aos familiares. Eles permitiram isso, e nós criamos uma comissão, da qual eu fiz parte. A comissão foi formada por mim, por um médico, um dentista e duas donas de casa. Todos familiares. Nós entramos no IML, e explicaram os procedimentos, da investigação policial etc., fizemos o tour completo. Quando entramos no necrotério foi terrível, porque aquele cheiro que sentíamos no aeroporto estava ali novamente. Os corpos estavam acondicionados em quatro caminhões frigoríficos, em caixões. Nós vimos o trabalho sendo feito. Era um exército de gente trabalhando. Os técnicos e os médicos choravam ao nos ver ali dentro. Eu entrei uma vez no necrotério, e consegui ver as condições, a habilidade e a competência deles. Aquilo me tranqüilizou. Eu vi também as condições do que sobrou das pessoas que estavam no avião. Passei essa informação, e os familiares ficaram mais tranqüilos. Assim, o pessoal do IML também conseguiu um pouco de paz para conseguir trabalhar. Até então, o pessoal estava sendo bombardeado por todos os lados.
Identificação de Thais
Quando identificaram a Thais, eu fiz questão de ver. (chorando) Eu não identifiquei que aquilo era uma pessoa, e eles conseguiram identificar a minha filha. Na quinta-feira passada, na nossa reunião de abril, chamamos os técnicos do IML, porque, com os rescaldos feitos no local do acidente, continuaram encontrando fragmentos humanos. Coisas minúsculas. Disso tudo conseguiram identificar fragmentos de 29 vítimas que já tinham sido identificadas. Eu recebi a lista com os nomes e vi que tinha o nome da minha filha ali também. É indescritível o que sentimos. Ninguém merece isso.
Ana Volpi – Lidar com perdas é sempre muito difícil. Mas, para nós, não é apenas a perda emocional, mas também a sensação de que isso pode terminar em nada. O pior de tudo é a angústia.
Dario Scott – O pior de tudo é saber que isso tudo poderia ter sido evitado. Não podemos, claro, voltar atrás, mas podemos continuar brigando para que isso não aconteça novamente.
Vida, verdade e justiça
Ana Volpi – As pessoas que estão envolvidas com isso podem continuar impunes. A grande luta do movimento é pela vida, verdade e justiça. O que não queremos é que amanhã eles digam que foi um homicídio culposo, sem intenção e os responsáveis vão prestar serviços comunitários e nada vai acontecer com essas pessoas. Além de você ter que lidar a perda todos os dias, temos a sensação de que essa briga pode terminar em nada. A nossa vida está em função disso hoje e não podemos dar as costas para esse problema, pois isso é tudo o que eles querem.
Dario Scott – Eu não consigo dormir pensando que eu não fiz nada para tentar mudar.
Ana Volpi – Por isso que a gente continua. Todo mês, fazemos as reuniões para acompanhar os trabalhos, para pressionar, para que todos prestem contas à justiça. Não é uma questão de vingança, mas de responsabilidades apuradas. Cada parte vai ter de assumir e receber a justa punição.
Nós estamos convivendo com isso há dez meses, e, com o plantio das árvores e outras funções, comecei a falar mais sobre isso. As pessoas vieram me procurar para falar de assuntos ligados à história e eu pedi para falar do movimento. Nós precisamos ter a adesão da população. 199 famílias estão passando por isso. Jamais podemos permitir que isso aconteça novamente. É grotesco e surreal o que estamos passando e o que ainda vamos passar. A CPI da Câmara não deu em nada, as pessoas desaparecem para não prestar depoimento. Se eles querem cansar a gente, eles não vão conseguir. A nossa resposta para a TAM é que nós queremos verdade e justiça e que vida não tem preço. Nada está acima da vida. O lucro não pode estar acima da vida. A Thais, onde estiver, pode estar tranqüila, porque nós estamos brigando por ela e por todos (choramos).
IHU On-Line – O que a associação pretende fazer por ocasião do primeiro ano do acidente?
Ana Volpi – Nós temos mensalmente as reuniões. As duas últimas foram em Porto Alegre exatamente para preparar isso. A próxima reunião será em São Paulo também para preparar e começar a mobilização para o dia 17 de julho, que vai cair numa quinta-feira. A programação ainda não está fechada, mas vamos divulgá-la assim que estiver pronta.
Dario Scott – Todo o trabalho no movimento é voluntário. Nós temos dois familiares que estão fazendo o papel de assessores de imprensa.
Ana Volpi – Existem ainda médicos que tratam da questão assistencial, advogados. Há gente que não é nada, mas tem boa vontade, sabe organizar evento. Temos também diversos grupos de trabalho, até do memorial. Resolvemos nos organizar, porque a TAM não é organizada.
Dario Scott – Quer um exemplo? Os CDs com os restos dos pertences quase não foi liberado. Eles têm a obrigação de nos dar a informação. Quando acabaram os trabalhos, entregaram um catálogo na delegacia com todos os pertences encontrados. Falei para o delegado que era inviável fazer com que todos os parentes fossem à delegacia consultar a lista. Eu tinha combinado com a TAM que eles organizariam CDs com essas imagens para cada familiar. Foi um mês de briga com a TAM, que dizia que não ia fazer os CDs, que já tinha entregue o catálogo para o delegado. Eu disse, então, ao delegado, que eu faria. Mas eu precisava saber o endereço de tosos os parentes. Aí a TAM resolveu fazer. Os CDs deveriam ser entregues antes da nossa reunião. É terrível ver essa lista, mas não queriam fornecer. Aí a TAM disse que iria entregar os CDs para a defensoria pública, no dia da reunião. Eu falei com o próprio defensor público que isso só iria atrapalhar. Eles entregaram os CDs para o delegado, e eu disse que a gente precisava o endereço para enviar aos familiares. Com isso, a TAM recuperou os CDs novamente e distribuíram, mas não para todos. Na última reunião, eu entreguei cópias do CDs que eu mesmo fiz em casa. Muitos ainda não receberam. Pode ser uma estratégia deles ou bagunça, mas é um direito nosso.
Ana Volpi – A associação se organizou exatamente por isso, pelas diversas dificuldades que estamos passando, sejam elas pequenas ou grandes. São tantas que com o grupo a gente consegue superar.
Dario Scott – O que mais decepciona a gente, como brasileiro, é ver a má vontade dos órgãos federais. Estamos em busca da verdade e da justiça, apenas isso. Toda a luta é difícil, pois sempre somos recebidos de má vontade.
Ana Volpi – As instituições não estão ao lado dos cidadãos nesse momento. Elas não querem colocar a infra-estrutura do estado para ajudar os cidadãos. O governo do estado de São Paulo e do Rio Grande do Sul estão nos ajudando, mas os órgãos federais...
Dario Scott – Dos órgãos federais, recebemos o “relaxa e goza” e aqueles gestos do Marco Aurélio Garcia. Como é que ele continua no cargo? Para nós, aquilo foi um desrespeito imenso. Foi uma sucessão de coisas...
Ana Volpi – Não conseguimos entender como o cidadão vale tão pouco. Uma boa parte das instituições não está do lado dos cidadãos, principalmente nos piores momentos. Se não nos organizássemos, estaríamos órfãos, totalmente esquecidos.
Notas:
[1] A professora se refere ao Simpósio Nacional de História, promovido pela Associação Nacional de História, que ocorreu na Unisinos entre os dias 15 e 20 de julho de 2007.
[2] Rebeca Haddad, 14 anos, era colega de Thais na escola São José, em São Leopoldo, onde morava com os pais. Ela iria para São Paulo passar as férias na casa da família da colega.
[3] Nome do aeroporto localizado em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.
[4] Em 29 de setembro de 2006 um Boeing 737-800 da companhia Gol desapareceu dos radares aéreos às 16 h 48 min enquanto cumpria a etapa de Manaus (MAO) a Brasília (BSB) do voo 1907. Os destroços do avião foram encontrados no dia seguinte, 30 de setembro, em uma área densa de floresta amazônica na Serra do Cachimbo. A queda foi decorrente do choque da aeronave com um jato executivo Embraer Legacy 600, prefixo N600XL, que fazia a etapa Brasília-Manaus. Estavam a bordo 148 passageiros. Este episódio deflagrou a crise dos controladores aéreos no país.
[5] No dia 31 de Outubro de 1996, o Fokker 100 pertencente a TAM, sob o vôo 402, com noventa passageiros e seis tripulantes a bordo, caiu no bairro do Jabaquara, zona sul de São Paulo, causando a morte de noventa e nove pessoas: as noventa e seis que estavam a bordo e três em solo. O acidente ocorreu 24 segundos após a decolagem. Segundo os radares do Centro Integrado de Defesa Aérea, o plano de vôo consistia em que o avião saísse do aeroporto com cerca de 33 metros de altura e mudasse sua direção, o que não foi possível devido à uma falha no reversor do motor direito, que impediu o recolhimento do trem de pouso e levou à perda da velocidade e sustentabilidade.
[6] Rolim Adolfo Amaro foi um piloto de aeronaves e empresário brasileiro. Transformou a TAM na maior companhia aérea do Brasil, entre os anos 1970 e 2001. Morreu em um acidente de helicóptero em 8 de julho de 2001, no Paraguai. A aeronave era pilotada pelo próprio Rolim no momento do acidente.