"Vivemos em tempos difíceis de desencontros. O discurso religioso de um cristianismo conservador volta com vigor, num reencontro com um passado que pouco contribuiu para a vivência da fé anunciada por Jesus. Há quem acredite na ideia de um 'Dia do Senhor' terrível. Cremos que o caminho que liberta é o da espiritualidade da ternura e da misericórdia", escreve Jacir de Freitas Faria, OFM.
Frei Jacir é doutor em Teologia Bíblica pela FAJE (BH), mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma e professor de Exegese Bíblica. É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB), padre franciscano e autor de dez livros e coautor de quinze. YouTube: Frei Jacir Bíblia e Apócrifos.
O texto sobre o qual vamos refletir hoje é Malaquias 3,1-4.23-24. Trata-se do retorno do profeta Elias. Na proximidade do Natal, as memórias dos profetas Elias e João Batista são retomadas em textos da Bíblia para ressaltar o papel de ambos em relação a Jesus, no plano da História da Salvação. Suas vidas se entrelaçam no encontro do Primeiro com o Segundo Testamentos. Nas trilhas de Elias, João Batista prepara o encontro com Jesus. Vejamos como isso ocorre.
Os livros da Bíblia estão organizados em forma de uma grande inclusão, isto é, a mesma temática no início e fim, tendo no centro duas personagens (Elias e Jesus), as quais representam, respectivamente, duas grandes religiões, o judaísmo e o cristianismo. O livro do Gênesis abre a Bíblia narrando a criação do ser humano e sua vida no Paraíso Terrestre, onde encontram-se as árvores da vida e do conhecimento do bem e do mal (Gn 2,9). Já o livro do Apocalipse a fecha com a narrativa da Jerusalém Celeste, no contexto de um novo céu e de uma nova terra. Assim como no Gênesis, o Apocalipse tem uma árvore da vida no seu centro. Jerusalém, no fim da Bíblia, torna-se o símbolo da esperança perdida com a decisão do ser humano, simbolicamente representada por Adão e Eva, em aceitar a proposta da serpente de comer do fruto da árvore do bem e do mal, tornando-se responsáveis pelo uso da liberdade, fora do paraíso. [1]
A serpente de Gênesis vence Deus na luta do ser humano em ter que optar entre o caminho da vida e o da morte. Sair do paraíso foi o mesmo que optar pelo caminho da morte, que a Teologia agostiniana chamou de pecado, a queda do paraíso. Contraditoriamente, a decisão do ser humano implicou em viver na liberdade de poder decidir. Adão e Eva, protótipos de seres humanos, mas não reais, acabaram criando problema para Deus e para eles mesmos. Viver fora do paraíso tornou-se difícil. Com o suor do rosto, o ser humano passou a lutar pela sobrevivência. A vida pueril, do ser criança, no paraíso deixou de existir. A vida fora do paraíso, sem proteção e com responsabilidades, encontrou uma terra cheia de espinhos, e que precisava ser arada.
Como releitura desse episódio da saída do paraíso, o Segundo Testamento, em Lc 22,44 narra que Jesus, antes de morrer, antes de voltar para o paraíso celeste, suou lágrimas de sangue sobre a terra de Jerusalém, no Getsemani, em uma profunda agonia. Lágrima, em hebraico, é “sangue do olho”. O sangue de Jesus devolveu a vida, a bênção, para a terra, outrora maldita.[2]
Por fim, no centro da Bíblia estão os livros de Malaquias e Mateus, encerrando o Primeiro Testamento e iniciando o Segundo. Malaquias termina falando do profeta Elias e seu retorno iminente: “Eis que vos enviarei Elias, o profeta, antes que chegue o Dia de Javé, grande e terrível” (Ml 3,23-24). Elias, o profeta que foi para Deus em um carro de fogo, voltará para o grande julgamento. O Evangelho de Mateus inicia falando de Jesus, chamando-o de Filho de Davi, Abraão, e Messias enviado por Deus. Desse modo, Elias e Jesus estão no centro da Bíblia. Os judeus sempre acreditaram que Elias voltará. Os judeus conterrâneos de Jesus chegaram a dizer que Jesus seria a encarnação de Elias. Elias e Jesus são símbolos de vida no judaísmo e no cristianismo.
João Batista entrou na história de Jesus por obra de Deus. Primo de Jesus, ele preparou o caminho de Jesus, no deserto. Suas palavras duras contrastam com a leveza de seu nome, que em hebraico se diz, Johanan, que significa Deus de ternura e misericórdia, nome dado pelo seu pai Zacarias, um sacerdote da religião judaica, que após uma visão no templo, ficou mudo. Ele voltou a falar com o nascimento de João Batista. Portanto, nas figuras de Zacarias e João Batista, judaísmo e cristianismo também se encontram.
Vivemos em tempos difíceis de desencontros. O discurso religioso de um cristianismo conservador volta com vigor, num reencontro com um passado que pouco contribuiu para a vivência da fé anunciada por Jesus. Há quem acredite na ideia de um “Dia do Senhor” terrível. Cremos que o caminho que liberta é o da espiritualidade da ternura e da misericórdia, o qual é como a gasolina que nos move ao encontro de novos seres humano no “Dia do Senhor”, no aqui e agora da esperança que vence o medo e o ódio, proporcionando tempos de paz e bem.
[1] FARIA, Jacir de Freitas. Apócrifos aberrantes, complementares e cristianismos alternativos: poder e heresias! Introdução crítica e histórica à Bíblia Apócrifa do Segundo Testamento. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 12.
[2] FARIA, Jacir de Freitas, A releitura da Torá em Jesus, RIBLA, 40. Petrópolis: Vozes.