Desaparecimento nas ditaduras brasileira e argentina. Diferenças e desafios. Entrevista especial com Caroline Bauer

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17 Outubro 2012

“Na Argentina, a Comissão da Verdade foi implementada poucos dias após o término da ditadura; no Brasil, apenas em 2011, 26 anos após o término da ditadura, houve ânimo político para tal medida”, compara a historiadora.

Confira a entrevista.


As ditaduras militares do Brasil (1964-1985) e da Argentina (1976-1983) utilizaram “a prática do desaparecimento como um dos principais meios para fomentar a ‘cultura do medo’ nessas sociedades”, diz Caroline Bauer à IHU On-Line. Autora do livro Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória (Ed. Medianiz, 2011), a historiadora diz que as práticas de desaparecimento contribuíram não só para punir como também “para dissuadir outras pessoas de se oporem às ditaduras e atingir os meios familiares e sociais das vítimas. O resultado era um efeito multiplicador do medo e do terror”.

Segundo ela, as ditaduras trataram os desaparecidos da mesma forma: “negaram sua existência para depois assumi-los com versões falsas e tergiversadoras sobre o desaparecimento”. Os governos transicionais, por sua vez, tratam do tema com “políticas de esquecimento, como a destruição de documentos, os perdões penais, e a própria interdição do passado, no sentido de proibir certos debates ‘para o bem da futura democracia’”, ressalta.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Caroline Bauer esclarece que os dois países trataram do tema com perspectivas diferentes após o retorno à redemocratização. “Na volta à democracia na Argentina, percebe-se uma ruptura com o passado ditatorial, garantindo-se os direitos à memória, à verdade e à justiça, e marcando novos parâmetros éticos e morais para o novo regime político. Já no caso brasileiro, onde a transição política foi marcada muito mais por aspectos de continuidade, não houve mudanças na política em relação à ditadura no primeiro governo civil – aliás, é importante salientar a vinculação do então presidente, José Sarney, com o regime anterior”, compara.

Para ela, entre as diferenças na maneira de conduzir o tema na democracia, destaca-se a “legitimidade social” dos discursos militares. “Enquanto na Argentina é crime fazer apologia, negar ou praticar um revisionismo quanto à ditadura, no Brasil as ações repressivas possuem uma grande aceitação por parte da população, que compactua com as práticas autoritárias e de desrespeito aos direitos humanos, em nome de uma ‘causa maior’ – no caso, o ‘combate à subversão’ e as tentativas de ‘livrar o Brasil da ameaça comunista’.

Caroline Bauer é doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pela Universitat de Barcelona.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – A partir da sua pesquisa, o que é possível apontar sobre as práticas de desaparecimento das ditaduras argentina e brasileira como estratégias de implantação do terror dos regimes?

Caroline Bauer –
Ambas as ditaduras utilizaram a prática do desaparecimento como um dos principais meios para fomentar a “cultura do medo” nessas sociedades. Em outras palavras, o desaparecimento contribuía para punir, mas principalmente para dissuadir outras pessoas de se oporem às ditaduras e atingir os meios familiares e sociais das vítimas. O resultado era um efeito multiplicador do medo e do terror.

IHU On-Line – Como a questão dos desaparecidos políticos foi tratada durante a transição para a redemocratização em ambos os países?

Caroline Bauer
– Primeiramente, precisamos definir de qual período estamos falando. Por exemplo, nos anos transicionais, e que ainda vigiam as ditaduras, tratou-se os desaparecidos da mesma forma: negaram sua existência, para depois assumi-los com versões falsas e tergiversadoras sobre o desaparecimento. Porém, após a decretação das leis de anistia, percebe-se que a temática é tratada pelos governos transicionais através de “políticas de esquecimento”, como a destruição de documentos, os perdões penais, e a própria interdição do passado, no sentido de proibir certos debates “para o bem da futura democracia”.

Porém, durante o primeiro governo civil pós-ditadura na Argentina a situação muda drasticamente. A partir do governo Raúl Alfonsín, passa a vigir o “império da lei”, e os comandantes das Juntas Militares são levados a juízo. Ainda, é fundada a Comisión Nacional sobre la Desaparición de las Personas – Conadep, uma comissão criada para investigar os casos de desaparecimento, suas circunstâncias, os envolvidos etc. Assim, na volta à democracia na Argentina, percebe-se uma ruptura com o passado ditatorial, garantindo-se os direitos à memória, à verdade e à justiça, e marcando novos parâmetros éticos e morais para o novo regime político.

Já no caso brasileiro, onde a transição política foi marcada muito mais por aspectos de continuidade, não houve mudanças na política em relação à ditadura no primeiro governo civil – aliás, é importante salientar a vinculação do então presidente, José Sarney, com o regime anterior. Além disso, a Constituição somente foi alterada em 1988, e estruturas de informação e repressão, como o Serviço Nacional de Informações – SNI e os Departamentos de Ordem Política e Social – DOPS de alguns estados, foram extintas somente no início da década de 1990. Em uma conjuntura como essa, como pensar políticas de memória e reparação para os desaparecidos políticos da ditadura civil-militar brasileira?

IHU On-Line – Como vê a retomada das discussões sobre a ditadura nos governos Lula e Kirchner? Como cada presidente conduziu o assunto, e que fatores explicam a condução política de cada um em relação ao tema?

Caroline Bauer
– Ambos os presidentes retomaram este debate, primeiramente, por sua vinculação com a temática: Lula e Kirchner foram opositores às ditaduras. Ainda, a conjuntura das rememorações dos 30 anos do golpe na Argentina (2006) e os 40 anos da ditadura no Brasil (2004) foram fundamentais para que a sociedade cobrasse desses governos reais políticas de memória sobre os desaparecidos políticos.

Houve uma mudança geracional muito importante para que se formulassem novos questionamentos e se refletisse sobre os rumos que cada um dos países tomava na promoção dos direitos humanos, mais especificamente na garantia dos direitos à memória, à verdade e à justiça em relação às ditaduras. Porém, as medidas novamente se diferiram bastante. Enquanto o ex-presidente argentino decretou a abertura de processos contra civis e militares envolvidos com o financiamento e a repressão da ditadura, o ex-presidente Lula adotou uma postura mais conciliadora com as Forças Armadas, permitindo apenas a garantia – e em partes – dos direitos à memória e à verdade, com a abertura dos arquivos da ditadura, e com os trabalhos da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e a Comissão de Anistia.

IHU On-Line – Qual o peso político e histórico dos militares na discussão acerca das ditaduras em ambos os países?

Caroline Bauer
– A grande diferença existente entre Argentina e Brasil no que diz respeito às versões militares sobre as ditaduras está na legitimidade social que esses discursos possuem. Enquanto na Argentina é crime fazer apologia, negar ou praticar um revisionismo quanto à ditadura, no Brasil as ações repressivas possuem uma grande aceitação por parte da população, que compactua com as práticas autoritárias e de desrespeito aos direitos humanos, em nome de uma “causa maior” – no caso, o “combate à subversão” e as tentativas de “livrar o Brasil da ameaça comunista”.

IHU On-Line – Quais são as políticas de memória e reparação deste período propostas por Brasil e Argentina? Em que medida elas contribuem para esclarecer esse período histórico?

Caroline Bauer
– Vou citar apenas uma – o direito à verdade –, pois existem muitas medidas que foram e estão sendo aplicadas. Creio que este exemplo esclareça as diferenças existentes entre as políticas argentina e brasileira. Na Argentina, a Comissão da Verdade foi implementada poucos dias após o término da ditadura; no Brasil, mesmo com os trabalhos realizados pelas comissões citadas acima, apenas em 2011, 26 anos após o término da ditadura, houve ânimo político para tal medida, bem como uma articulação que conseguiu aprová-la junto dos setores mais conservadores da política brasileira.

IHU On-Line – Como vê a implantação da Comissão da Verdade no Brasil? Há de fato uma tentativa de resgatar esse período histórico ou os limites da Comissão são propositais?

Caroline Bauer
– Uma Comissão da Verdade somente tem benefícios para uma sociedade desde que seu trabalho seja bem conduzido e suas recomendações sejam acatadas como política de Estado. A aprovação da lei que criou a comissão brasileira nasceu de uma articulação política muito difícil, onde houve necessidade de se conciliar uma série de questões, desde seu nome até suas atribuições. Porém, creio que o texto da lei seja muito claro quanto à linha investigativa: esclarecer os crimes praticados pelo Estado. Assim, os limites não são conferidos pela legislação; a meu ver, os membros da comissão estão trabalhando para que nenhuma limitação interfira na elaboração dessa versão da história, bem como no trabalho de apuração das responsabilidades.

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