23 Novembro 2014
Em 1849, enquanto Frederic Chopin respirava com dificuldade em seu leito de morte, em Paris, ele sussurrou um pedido que se tornou uma lenda musical: "Remova o meu coração depois que eu morrer e o sepultem na Polônia". Ele queria que o símbolo de sua alma descansasse em sua terra natal à qual ele ansiava retornar do auto-exílio na França.
Desde então, o corpo do compositor descansa em paz no famoso cemitério Pere Lachaise, em Paris - enquanto seu coração tem sofrido uma louca jornada de intriga e adulação.
A reportagem é de Vanessa Gera, publicada no sítio da Associated Press, 17-11-2014. A tradução é de Claudia Sbardelotto.
Primeiramente, o coração de Chopin foi selado em um vidro com bebida que se acredita ser conhaque. Em seguida, ele foi contrabandeado para Varsóvia após passar pela revista de guardas de fronteira russos. Uma vez em sua cidade natal, passou pelas mãos de vários parentes antes de ser consagrado dentro de um pilar na Igreja da Santa Cruz. Durante a Segunda Guerra Mundial, ele caiu nas garras dos nazistas por um breve tempo. O órgão foi exumado várias vezes, mais recentemente, em uma operação secreta para verificar se o tecido permanece bem preservado.
O coração de Chopin inspira um profundo fascínio na Polônia, fascínio normalmente reservado às relíquias dos santos. Para os poloneses, as nostálgicas composições de Chopin capturam o espírito nacional - e o destino do coração é visto como entrelaçado com as maiores agonias e triunfos da Polônia ao longo de quase dois séculos de ocupação estrangeira, de guerra e de libertação.
"Este é um objeto de grande valor emocional para os poloneses", disse Michal Witt, geneticista envolvido na inspeção. Chopin é "extremamente especial para a alma polaca".
Os especialistas em Chopin queriam realizar testes genéticos para determinar se o gênio de 39 anos morreu de tuberculose, como geralmente se acredita, ou de alguma outra doença. Mas eles permanecem frustrados. A Igreja polonesa e o governo, guardiões do coração, há anos recusam os pedidos para quaisquer testes invasivos, em parte por causa da oposição de um parente distante ainda vivo do compositor.
Este ano, no entanto, eles finalmente consentiram em uma inspeção superficial depois que um cientista forense levantou a hipótese de que, depois de tantos anos, o álcool poderia ter evaporado, deixando o coração seco e endurecido.
Perto da meia-noite, no dia 14 de abril, após os últimos devotos terem deixado a Igreja da Santa Cruz, 13 pessoas secretamente reuniram-se no santuário escuro.
Elas incluíam o arcebispo de Varsóvia, o ministro da cultura, dois cientistas e outras autoridades. Com um sentimento de mistério pairando no ar, eles trabalharam em concentração total, na maior parte das vezes sussurrando, enquanto removiam o coração de seu lugar de descanso e realizavam a inspecção - tirando mais de 1.000 fotos e adicionando cera quente no selo do frasco para evitar a evaporação . O arcebispo de Varsóvia recitou orações sobre o coração e ele foi devolvido ao seu legítimo lugar. Pela manhã, os visitantes da Igreja não viram nenhum vestígio da exumação.
"O espírito desta noite foi muito sublime", disse Tadeusz Dobosz, cientista forense da equipe.
As autoridades polacas mantiveram em segredo todos os detalhes da inspeção por cinco meses antes de tornar o assunto público, em setembro, não dando nenhuma razão para a demora. Eles também não estão liberando fotografias do coração, levando em conta as considerações éticas que cercam a exibição de restos humanos, disse Artur Szklener, diretor do Instituto Fryderyk Chopin em Varsóvia, um órgão do Estado que ajuda a preservar o legado do compositor.
"Nós não queremos que isso seja uma sensação midiática, com fotos do coração nos jornais", disse Szklener. No entanto, para provar que o coração está em boa forma, ele mostrou fotografias do órgão à Associated Press, um nódulo branco dilatado submerso em um fluido de cor âmbar em um frasco de cristal.
Alguns especialistas de Chopin criticam o que consideram uma falta de transparência.
Steven Lagerberg - autor norte-americano do livro Chopin's Heart: The Quest to Identify the Mysterious Illness of the World's Most Beloved Composer [O coração de Chopin: a busca para identificar a misteriosa doença do compositor mais amado do mundo] - acredita que especialistas internacionais também deveriam ter sido envolvidos na inspeção. Ele disse que esperava que a exumação envolvesse testes genéticos de uma pequena amostra de tecido para determinar a causa da morte de Chopin.
Embora Lagerberg e outros acreditem que Chopin tenha morrido, provavelmente, de tuberculose - a causa oficial da morte - o assunto não está totalmente resolvido. Alguns cientistas suspeitam de fibrose cística, doença ainda desconhecida na época de Chopin, ou mesmo algumas outras doenças.
"O mistério da doença deste homem perdura - como ele poderia sobreviver por tanto tempo com tal doença crônica e como ele poderia escrever peças com uma beleza extraordinária", disse Lagerberg. "É um quebra-cabeça intelectual, é um mistério para a medicina e é uma questão de grande curiosidade científica".
Chopin nasceu perto de Varsóvia, em 1810, de uma mãe polonesa e pai emigrante francês. Ele viveu em Varsóvia até 1830, quando foi para Paris - onde ele escolheu uma vida de exílio por causa das repressões brutais impostas pela Rússia Imperial depois de uma rebelião fracassada.
Cumprindo o desejo de Chopin em seu leito de morte, que também foi inspirado pelo medo do compositor de ser enterrado vivo, sua irmã Ludwika contrabandeou o coração para Varsóvia, provavelmente em baixo de sua saia. Depois de ser mantido na casa da família por vários anos, ele foi finalmente sepultado na barroca Igreja da Santa Cruz, no centro de Varsóvia.
Ele permaneceu lá até a Segunda Guerra Mundial, quando os ocupantes nazistas o removeram, por motivos de segurança, durante a Revolta de Varsóvia de 1944. Mesmo abatendo os poloneses quadra por quadra, matando 200.000 pessoas em retribuição pela revolta, os nazistas tiveram o cuidado de preservar a relíquia desse compositor que os alemães têm reivindicado por vezes como seu próprio, por causa da influência que os grandes compositores alemães tiveram sobre ele. Após o término da batalha, eles devolveram o coração à Igreja polonesa em uma cerimônia destinada a mostrar o seu respeito pela cultura.
Bogdan Zdrojewski, ministro da cultura que participou da inspeção ocorrida em abril, defendeu a sua recusa em permitir testes invasivos no coração de Chopin.
"Nós, na Polônia, costumamos dizer que Chopin morreu de saudades de sua terra natal", disse Zdrojewski, que desde então deixou o Ministério da Cultura para ser um legislador no Parlamento Europeu. "A informação adicional que poderia ser adquirida sobre a sua morte não seria uma razão suficiente para perturbar o coração de Chopin".
No entanto, as autoridades já anunciaram planos para outra inspeção - daqui a 50 anos.