02 Novembro 2013
O Papa Bergoglio se despojou de todo resto monárquico. Ele também acredita que é preciso tempo para uma mudança verdadeira. Mas, talvez, hoje chegou o momento para o declínio da monarquia papal.
A opinião é do historiador da Igreja italiano Andrea Riccardi, fundador da Comunidade de Santo Egídio e ex-ministro italiano, em artigo publicado no jornal Corriere della Sera, 01-11-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A Secretaria de Estado se chamará Secretaria Papal – anunciou um cardeal do G8, o grupo cardinalício destinado, dentre outras coisas, a reformar a Cúria. A opinião pública está muito atenta a toda mudança no Vaticano. Isso se explica pela grande popularidade do Papa Francisco, mas também pela convicção de que, justamente no Vaticano, pode haver fortes resistências ao papa e que, aqui, Bento XVI encontrou muitas dificuldades. Não se trata apenas de oposições, mas de um modo de ver e de reger a Igreja.
João XXIII lamentava encontrar, na Curia, tantas limitações ao seu governo. Por isso, Paulo VI (que tinha trabalhado tantos anos na Cúria e havia se afastado dela) logo quis uma reforma incisiva da Cúria, para fazer com que o Concílio fosse recebido pela Igreja. A reforma montiniana de 1967, com modificações, enriquecimentos e dilatações do pessoal, sobreviveu nas estruturas essenciais até hoje. As suas novidades principais foram a perda do primado do Santo Ofício (rebatizado como Congregação para a Doutrina da Fé) e a afirmação da centralidade da Secretaria de Estado. Esta se tornou o órgão principal de governo e de mediação entre papa e Cúria. Por sua parte, o secretário de Estado é semelhante a um presidente do Conselho em uma república presidencial, como hoje na França.
Os cardeais, antes do conclave, se disseram insatisfeitos com a Cúria. O Papa Francisco declarou, no retorno do Brasil: "Eu acredito que a Cúria caiu um pouco do nível que tinha antigamente, daqueles velhos curiais (...) o perfil do velho curial, fiel, que fazia o seu trabalho". Há a questão da qualidade do recrutamento e da atualização do pessoal eclesiástico e leigo (os leigos, exceto pouquíssimos, são apenas executivos). Um pessoal não sintonizado cria, mesmo que inadvertidamente, blocos no governo e dá à Cúria um rosto não "simpático" com relação ao mundo católico. Este pontificado faz da "simpatia", no sentido profundo, uma das suas características. Francisco quer mudar o "Vaticano-centrismo" – assim diz ele. Mas não bastou a internacionalização dos curiais. É preciso uma Cúria capaz de intercâmbio com o mundo católico e de vibrar com o comprimento de onda de Francisco.
A mudança da Secretaria de Estado é capital. Mas nem tudo deve ser inventado. A nomeação de Dom Parolin à frente da Secretaria mostra como o papa valoriza a tradição diplomática do século XX, que teve no cardeal Casaroli uma das maiores expressões. Há algum tempo, não são muito incisivas as relações internacionais da Santa Sé, enquanto, porém, cresce o interesse dos líderes mundiais por esse papa. Há crises em que Roma deve oferecer uma ajuda e uma visão aos cristãos, como no Oriente Médio. Em outros lugares, a coragem de uma iniciativa de paz é bem acolhida. Não devemos esquecer o outro aspecto do trabalho da Secretaria, além da diplomacia: uma ação de orientação da Cúria e de serviço ao papa.
Francisco parece querer diminuir os filtros e favorecer a colegialidade dos dicastérios vaticanos, as reuniões e os contatos dos "ministros" com ele. Não há espaço para um primeiro-ministro ou para um vicepapa. Casaroli dizia: "O secretário de Estado é uma espécie de meridiana que só pode indicar a hora só há sol, senão não funciona". O sol seria o papa.
O primado da Secretaria, desejado por Montini, respondia ao primado de governo. Com o Papa Francisco, vai se realizando o primado da palavra e do encontro. Ele mesmo declarou ao padre Spadaro: "As reformas organizativas e estruturais são secundárias (...). A primeira reforma deve ser a da atitude. Os ministros do Evangelho devem ser capazes de aquecer o coração das pessoas". E concluiu: "O povo de Deus quer pastores e não funcionários ou clérigos de Estado".
Entende-se melhor, então, por que a Secretaria não será mais de "Estado". Até mesmo Paulo VI a chamou de "papal", mas continuou sendo de Estado, porque ainda era essa a concepção. Por milhares de anos, os papas pensaram o "Estado" como garantia de liberdade. Ainda hoje os franceses chamam o papa de Souverain Pontife. Depois de 1870, os papas se consideraram como monarcas sem-terra, até que, em 1929, nasceu o Estado do Vaticano. Quase simbólico, mas mesmo assim um Estado, que, com a soberania, garantia a liberdade do papa.
Paulo VI preferia uma Santa Sé com o caráter da organização internacional e desmontou muitos ornamentos da monarquia papal. Mas talvez agora se encerre uma temporada. Não que o papa não continuará sendo um líder mundial influente. Ao contrário, irá crescer. Mas o Papa Bergoglio se despojou de todo resto monárquico. Ele não mora mais no Palácio, que ele o usa como escritório de representação.
Bernardo de Claraval escrevia ao seu discípulo Eugênio III: o papa é sucessor do apóstolo Pedro e não de Constantino. Mas ele o advertia de que era preciso levar em conta os tempos. Bergoglio também acredita que é preciso tempo para uma mudança verdadeira. Mas, talvez, hoje chegou o momento para o declínio da monarquia papal.