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22 Janeiro 2012

Não é um país para meninas: 114 homens contra 100 mulheres no nascimento, enquanto as proporções normais jamais deveriam ir além de uma relação de 105 para 100. Parecem as notícias sobre o aborto seletivo – a triste prática de interromper a gravidez ao se descobrir que quem irá nascer é uma menina – que, infelizmente, lemos tantas vezes sobre a Índia ou a China. E é justamente desse fenômeno que estamos falando. No entanto, agora descobre-se que ele é muito mais difundido também em um país como a Armênia. Isto é, em uma terra muito orgulhosa das suas raízes cristãs e que geralmente gera manchetes pela memória do genocídio sofrido no início do século XX, justamente em nome dessa identidade.

A reportagem é de Giorgio Bernardelli, publicada no sítio Vatican Insider, 21-01-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

O alerta foi lançado, há algumas semanas, pelo Conselho da Europa, que aprovou uma resolução na qual – condenando a prática do aborto seletivo – se cita o fato de que esse drama também é muito difundido nos Bálcãs. Poucos dias depois, o assunto foi retomado por um artigo de denúncia publicado pela jornalista armênia Nanore Barsoumian na revista Armenian Weekly.

E o quadro que surge é muito inquietante: a combinação entre o hábito ao aborto fácil deixado por herança na Armênia pelos anos da União Soviética e uma mentalidade não exatamente amiga das mulheres ainda muito enraizada fazem com que, no país, as taxas de desequilíbrio entre os dois sexos no nascimento cheguem a níveis chineses. Apoiadas também por práticas totalmente ilegais, mas evidentemente toleradas: na Armênia, o aborto seria admitido só até a 12ª semana, portanto, antes de conhecer o sexo da criança. A seção armena da Unpfa (o departamento das Nações Unidas para a população) chegou até a propor uma estimativa: seriam ao menos 1.400 meninas, todos os anos, que não chegam ao nascimento no país, só porque na ecografia são reconhecidas como meninas.

O artigo de Nanore Barsoumian levantou um intenso debate entre os leitores do site da revista armênia. E mais de uma pessoa pôs em causa o silêncio do patriarcado local sobre esse assunto tão ardente. Além disso, os armênios gostam de lembrar que foram os primeiros a adotar o cristianismo como religião de Estado: ainda em 301 d.C. – 12  anos antes do Edito de Constantino –, o rei Tiridates se converteu àquele Evangelho que, na Armênia, segundo a tradição, teria sido anunciado pelos primeiros apóstolos Bartolomeu e Judas Tadeu. E a Igreja Apostólica Armênia – antiga Igreja Oriental que tomou um caminho diferente do que Roma ainda nos tempos do Concílio de Calcedônia – foi, durante séculos, o baluarte da identidade desse povo de história tão conturbada.

As estatísticas oficiais classificam mais de 98% dos armênios como cristãos (embora não se deva esquecer a herança do ateísmo de massa pregado lá por muito tempo pelo comunismo soviético). Como muitas Igrejas orientais, no entanto, a Igreja armênia sempre foi muito relutante em condenar publicamente o aborto. Em 1995, interpelado por uma questão do Washington Post durante uma visita aos EUA, o então chefe da Igreja Apostólica Armênia, Karekin I, explicou: "Nós não emitimos pronunciamentos dogmáticos ou imposições de princípios. Quando uma pessoa é alimentada pelo cristianismo e a sua consciência é formada por princípios cristãos, essa pessoa deve ser livre para abordar questões específicas como a do aborto. A Igreja não deve se envolver nesse tipo de detalhes. Jesus jamais impôs nada aos seus discípulos".

A atitude não parece ter mudado muito com o seu sucessor, Karekin II, catholicos dos armênios desde 1999. Ele, em sua recente mensagem de Natal – divulgada no dia 6 de janeiro passado –, criticou o mundo moderno "sobrecarregado com dificuldades, privações, contradições e conflitos construídos pelo homem". E também acrescentou que "a rejeição de Cristo e dos seus mandamentos faz nascer guerras e tragédias, ameaça o nosso planeta, torna-se causa de um enfraquecimento da alma e do espírito, como pela interrupção violenta da vida dada por Deus".

Com relação a estas últimas palavras, no entanto, ele ofereceu apenas dois exemplos: o homicídio e o suicídio. A questão das meninas não nascidas, evidentemente, para a Igreja Apostólica Armênia, ainda continua sendo um tabu.