04 Dezembro 2011
"O bóson de Higgs é o elo perdido do modelo que descreve tudo o que sabemos sobre a matéria", escreve Marcelo Gleiser, professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), em artgio publicado no jornal Folha de S. Paulo, 04-12-2011.
 
 Eis o artigo.
 
 A cada dia, aumentam as expectativas de que algo precisa acontecer no LHC (do inglês Large Hadron Collider, Grande Colisor de Hádrons), o gigantesco acelerador de partículas do Cern (Organização Europeia de Pesquisa Nuclear). Desenhado para encontrar, principalmente, uma partícula chamada "Higgs", em homenagem ao físico inglês Peter Higgs, que propôs sua existência, até o momento os experimentos não têm nada a mostrar.
 
 Pelo contrário, os resultados parecem delimitar a massa da hipotética  partícula a valores que contrariam muitos cálculos. Talvez a  constituição da matéria seja mais estranha do que suspeitamos.
 
 É conveniente falar da massa de partículas pesadas em unidades da massa  do próton, o integrante principal do núcleo de todos os átomos. O limite  atual da massa da partícula Higgs,  anunciado no dia 18 de novembro passado, é menor do que a de 141  prótons, provavelmente em torno de 120 prótons. Se a Higgs existir,  claro. Porque devemos sempre lembrar que físicos não ditam como funciona  a natureza.
 
 Uma partícula como Higgs ajudaria  a compreensão de como outras partículas (como quarks e elétrons) têm as  massas que têm, mas não significa que a Higgs existe.
 
 Mas antes de continuarmos, um pequeno aparte sobre esse estranho  apelido, "partícula de deus". Claro que uma partícula de matéria não tem  nada a ver com Deus. "A Partícula de Deus" é o título do livro do prêmio Nobel Leon Lederman, diretor do laboratório americano Fermilab quando fiz meu pós-doutorado lá. O título foi sugerido pelo seu editor, que não gostou do título que ele havia proposto. Lederman queria chamar o livro de "The God Damned Particle" ("maldita partícula") porque ninguém consegue encontrá-la. Mas o editor achou que "The God Particle" venderia muito mais. Acho que ele tinha razão.
 
 A Higgs é o elo perdido do  Modelo Padrão, um conjunto de resultados que descrevem em detalhe tudo o  que sabemos sobre as partículas que compõem a matéria e suas  interações. Ele é um triunfo da física do século XX, reunindo décadas de  grandes descobertas experimentais e teóricas. Sua precisão é tamanha ao  descrever como as partículas interagem entre si que ninguém, ou quase  ninguém, duvidava de que a Higgs, ou algo como ela, seria encontrada. A realidade, entretanto, é outra: não só a Higgs não apareceu, como, se existir, terá uma massa que não seria a mais "natural".
 
 A busca por uma partícula tão elusiva é um excelente modelo de como a  ciência funciona. Uma hipótese é proposta, prevendo a existência de uma  nova entidade natural. Cálculos detalhados são feitos, tentando isolar  as propriedades dessa entidade hipotética. Experimentos são montados  para testar a hipótese, ou seja, para tentar encontrar a possível nova  entidade. Em caso afirmativo, ótimo. Em caso negativo, há duas  alternativas: ou a entidade não existe ou a hipótese deve ser refinada.  Esse refinamento gera novas hipóteses que também precisam ser testadas.
 
 Esse processo eventualmente leva a novas explicações de como a natureza  funciona. Um resultado negativo muitas vezes abre caminhos inesperados,  ampliando nosso conhecimento do Universo. Em ciência, crise leva ao  novo.