Henri Bergson: a metafísica e o ritmo do tempo. Entrevista especial com Eric Méchoulan

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16 Outubro 2007

O centro da filosofia do francês Henri Bergson é a concepção do tempo e da duração das coisas em nossas vidas. Há quem diga que sua filosofia é uma exaltação à vida em seu sentido mais amplo. Em “A evolução criadora”, que completa cem anos, Bergson propõe algo considerado radical até hoje: para ele, a duração (durée) está nas coisas, ou seja, a duração está em todo o processo de evolução. “Para Bergson, recolocar a questão metafísica do ser enquanto ser conduz a se ocupar do não essencial. Indo procurar na franja de imagens que envolvem o nó da inteligência o acesso à essência do homem ou dos objetos do mundo, ele evita as antigas aporias dos metafísicos da substância, sem renunciar a uma apreensão efetiva do mundo das essências”, afirmou Eric Méchoulan em entrevista, que segue, à IHU On-Line.

Eric fala sobre o lugar da metafísica na obra de Bergson, sobre o ritmo do tempo e, ainda, afirma que o homem é estranho ao universo social. A entrevista foi cedida por e-mail.

Eric Méchoulan é professor do departamento de literatura francesa da Universidade de Montreal, no Canadá. É, também, diretor do programa de filosofia do Collège International de Philosophie, em Paris, na França.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é o lugar da metafísica na obra de Bergson?

Eric Méchoulan - Em primeiro lugar, a metafísica, para Bergson, deve proceder por intuição e não somente por conceitos. Assim, a metafísica deverá evitar os conceitos totalmente confeccionados e (como a ciência) orientar-se para a experiência. Mas a experiência interior em parte alguma encontrará uma linguagem estritamente apropriada. É preciso que ela amplie o conceito, que ela o amacie. Lá onde a vida, em sua dimensão interesseira e utilitária, inibe as recordações, procurando limitar ao máximo a franja de imagens em torno da percepção, a intuição metafísica procura, ao contrário, envolver o conceito com um halo de imagens que lhe permitirá resguardar um contato vivo com a experiência concreta da duração. A franja de imagens-recordações é o que dá um ritmo tanto à percepção como ao conceito; ela evita que eles desapareçam sob a generalidade, para uma, ou sob a contingência, para o outro. Ela atribui à unidade do conceito ou da percepção a multiplicidade da duração, mas uma multiplicidade ordenada: um ritmo.

IHU On-Line – De que forma esse ritmo se desenvolve no “tempo” analisado por Bergson?

Eric Méchoulan - Embora um ritmo se desenvolva no tempo de maneira contínua, ela o escande, o acentua, o reverte sobre si mesmo: na própria continuidade da duração, ela instila descontinuidades. É por esta razão que não se poderia reduzir o contínuo da duração, em Bergson, a uma metafísica tradicional da substância. A ontologia da memória permite, nele, manter, ao mesmo tempo, na duração uma unidade profunda dos indivíduos (a memória não está localizada num recanto do cérebro; são os entes que estão na memória: de onde surge a falsa questão de procurar uma localização das recordações em geral), sem subscrever, portanto, uma perpétua identidade consigo mesmo (ao contrário, fazendo do sujeito uma instância perceptiva, voltada à atualidade e à utilidade, e uma dinâmica memorial feita de virtualidade e de reflexão, Bergson encontra em cada instante dos indivíduos um desdobramento perpétuo, aqui esquecido em proveito da ação, lá ressentido para melhor pensar). O metafísico antigo trabalhava “com conceitos depositados previamente na linguagem, como se, descidos do céu, eles revelassem ao espírito uma realidade supra-sensível. Assim, nasceu a teoria platônica das Idéias” (La pensée et le mouvant [O pensamento e o movente], p. 57). É preciso, inversamente, que o metafísico caro a Bergson veja nos conceitos as palavras do vocabulário cotidiano, elaboradas pelo organismo social. Onde se crê haver acesso ao supra-sensível, tem-se a ver com o recorte social do real. Há, então, duas opções: ou se confia na linguagem ordinária para pensar os processos significativos, ou se confia na experiência ordinária para pensar a geração do sentido. A primeira via é a que seguirá Wittgenstein. A segunda é a assumida por Bergson.

Em todo caso, para Bergson isto implica em também encontrar, aquém das palavras e dos conceitos, ou, mais precisamente, na maneira de considerar a franja vaporosa de imagens que ali permanecem coladas, uma experiência interior que ele chama de intuição. Pela intuição, ter-se-ia acesso não ao mundo das essências da metafísica clássica, mas à duração concreta do não essencial que aureola as idéias com imagens-recordações. O verdadeiro pensador, para Bergson, propõe uma metafísica do não-essencial. Esta franja constitui uma espécie de acréscimo e reclama uma forma de desatenção: com isto, não entendemos uma experiência situada aquém da atenção (aquela que o espírito presta à matéria, ou em outras palavras, à inteligência), porém concebemos antes uma experiência que procura, além da atenção da inteligência, um acesso imediato ao pensamento.

IHU On-Line – Qual é a função do cérebro dentro do pensamento bergsoniano?

Eric Méchoulan - Para Bergson, é preciso resguardar-se de um contra-senso: o cérebro não tem por função pensar, de fato ele impede o pensamento de se perder no sonho, já que ele é o órgão da atenção à vida. É preciso, pois, que a intuição, por um notável esforço, seja desatenta à vida material para se tornar atenta ao pensamento, para fazer algo sonhado. Ela participa, então, menos da compreensão no sentido clássico ou hermenêutico do termo, do que da memória e do pensamento. Pois fica longe da intuição a preguiça intelectual. Na verdade, bem antes é a inteligência, já que ela se fixa nos hábitos verbais, que se revela preguiçosa. Em que sentido? Porque ela se fixa somente nos sinais que, por definição, prendem a realidade no instante de uma forma. Unindo-se ao movimento da duração, a intuição manifesta uma vontade que a afasta das operações materiais da inteligência. Já que ela procura agir sobre o mundo, a inteligência deve congelar artificialmente o movimento; ela toma de vez a multiplicidade própria das experiências para a aplicação de idéias totalmente feitas.

Contra este prêt-à-porter filosófico, Bergson exige da intuição que ela participe de um empirismo feito sob medida. Trata-se, seguramente, de um notável paradoxo: de que modo o conceito, que deve por definição dizer o geral, poderia se unir tão de perto à singularidade do objeto? Acontece que o objeto já é multiplicidade; o tempo, simultaneamente atualização da memória na percepção singular e na virtualidade de todo o passado nas recordações puras: o futuro, em ação em toda duração, supõe sem cessar algo novo. Mas é também este paradoxo que Bergson procura esclarecer, fazendo o caminho próprio do que ele entende por metafísica: ”um verdadeiro empirismo é aquele que se propõe fechar, tão de perto quanto for possível, o próprio original, aprofundar a vida, [...], e este empirismo verdadeiro é a verdadeira metafísica” (O pensamento e o movente).

IHU On-Line - O que significa dizer que o pensamento bergsoniano se situa na área específica da metafísica, mas uma metafísica que não é mais da substância e da presença, mas da duração que implica tanto de ausência quanto de presença?

Eric Méchoulan - Para Bergson, recolocar a questão metafísica do ser enquanto ser conduz a se ocupar do não essencial. Indo procurar na franja de imagens que envolvem o nó da inteligência, o acesso à essência do homem ou dos objetos do mundo, ele evita as antigas aporias dos metafísicos da substância, sem renunciar a uma apreensão efetiva do mundo das essências. Somente é preciso admitir que um conceito, e mesmo uma gramática dos conceitos encontram sua fonte na fluidez ritmada dos acontecimentos. A diferença de natureza só intervém ulteriormente, como efeito retrospectivo da lógica conceitual. Para a metafísica clássica, o futuro só existe verdadeiramente no fundir-se na eternidade de um dado já sempre cognoscível, ou mesmo conhecido; para a metafísica renovada de Bergson, a duração absoluta nada mais é senão uma incessante criação de novidades a apreender, cuja lógica ele estuda em A evolução criadora. Lá onde a inteligência liga, então, o mesmo ao mesmo, a intuição permite desviar a atenção para esses momentos sem cessar singulares, diversos do que existia, desatando o nó sólido dos conceitos. Por tal atenção, o esforça da intuição permite, enfim, talhar para cada objeto um conceito apropriado somente a ele, já que ele ainda não está completamente desligado dessa franja que o envolve e lhe atribui sua singularidade.

As imagens em torno dos conceitos abrem-nos, portanto, ao pensamento do que nós somos, ou, mais precisamente, do que nós vivenciamos. Bergson não exige de nós a renúncia às palavras e aos símbolos, ele nos solicita ver o que os envolve, os permeia, os desenha. Em lugar de as experiências se contraírem em símbolos, a ponto de desaparecerem sob uma mesma casca, seria preciso poder dilatar as palavras, a fim de que elas retornem à experiência singular da qual emergiram. Além da compreensão que requer uma inteligência dos símbolos, o pensamento deve dar um passo lateral, prestando atenção ao que ultrapassa o conceito, voltando-se ao ponto de gestação, à inflexão particular do tempo no qual se expande imediatamente uma experiência. Novamente temos a ver com um modelo imaginário do cálculo integral, do “cálculo das flexões”, como o chamava um de seus inventores, Leibniz.

IHU On-Line - Quer dizer que nos vemos simplesmente mergulhados num puro espiritualismo, obstinadamente individualista e, de fato, estranho ao universo social?

Eric Méchoulan - Absolutamente, já que o homem é um ser de sociedade e todo o trabalho consiste justamente em encontrar os pontos de reversão das idéias na curva social. A inteligência que permite compreender os fenômenos jamais basta, para Bergson, já que ela nos faz simplesmente voltar à jaula das idéias totalmente feitas e dos símbolos previsíveis. O instrumental da mente deve encontrar, ao lado, em torno das idéias, este espaço preciso da experiência (o oxímoro é necessário, mas não atua no mesmo plano: vago, do ponto de vista abstrato dos conceitos, preciso do ponto de vista sensível da experiência). O verdadeiro metafísico não mergulha, pois, na pureza banal dos conceitos, nem nas profundezas luminosas das essências. Ele olha de lado as idéias a fim de reviver sua formação, as retomando no momento em que elas aparecem como problemas. Um dos grandes objetivos metodológicos de Bergson é este: retornar à formação dos verdadeiros problemas, a fim de melhor eliminar os falsos problemas gerados pelo uso preguiçoso da inteligência.