O que herdamos da filosofia grega. Entrevista com Enrico Berti

Foto: Ângel Santiago | Flickr CC

10 Janeiro 2022

 

Enrico Berti, professor de História da Filosofia na Universidade de Pádua há mais de 40 anos e um dos maiores estudiosos de Aristóteles na Itália, faleceu no dia 5 de janeiro, aos 86 anos. Um conferencista apreciado e homem de fé não ostentada, mas profunda.

 

Entre as suas inúmeras publicações: “In principio era la meraviglia” (Ed. Laterza), “Sumphilosophein. La vita nell’Accademia di Platone” (Ed. Laterza), “Storia della Metafisica” (Ed. Il Mulino) e “Aristotelismo” (Ed. Il Mulino).

 

O sítio Settimana News, 07-01-2022, recordou-o com esta entrevista retomada do blog Officina Filosofica, 04-05-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis a entrevista.

 

Na filosofia grega, encontramos muitos aspectos pelos quais não só a teologia é devedora, mas também a cultura cristã como um todo. Penso no finalismo que encontramos em filósofos, embora muito distantes entre si, como Platão e Aristóteles. Há também outros aspectos que podemos considerar além deste?

 

Mais do que pelo finalismo (que em Aristóteles diz respeito apenas à finalidade interna), a teologia cristã é devedora a Aristóteles do conceito de um Princípio transcendente e pessoal, que em Aristóteles é o primeiro entre os motores imóveis dos céus e, portanto, o primeiro dos entes e o motor de tudo, enquanto para os cristãos (como também para os muçulmanos) é Deus. No entanto, é preciso ter em mente o significado diferente que a palavra “deus” tinha para os antigos e para os fiéis nas religiões monoteístas. Para os antigos (gregos e romanos) “deus” é um nome comum, o nome de uma espécie de seres vivos, como “homem”, por isso se escreve com o artigo e a inicial minúscula (o deus). Para os monoteístas (judeus, cristãos, muçulmanos), por sua vez, “Deus” é o nome de uma única pessoa, por isso se escreve sem artigo e com a inicial maiúscula. Essas são regras gramaticais, não escolhas ideológicas.

 

Na Divina Comédia, por exemplo, como no Motor imóvel descrito por Aristóteles, os corpos celestes se movem com velocidades diferentes de acordo com a distância de Deus: o famoso “amor que move o sol e as outras estrelas” (Paraíso, XXXIII, 145). Por isso, eu lhe pergunto por que um filósofo como Aristóteles foi tão dominante até praticamente o advento da era moderna?

 

Dante, que não só foi o maior poeta, mas também um filósofo original, assumiu, como todos os medievais, a cosmologia grega, ou seja, o geocentrismo, que não era apenas de Aristóteles, mas estava amplamente presente já no “Timeu” de Platão e havia dominado toda a cultura antiga e medieval. De Aristóteles, Dante retomou, como muitos outros, a teoria dos céus como esferas concêntricas (introduzida por Eudoxo de Cnido), que – com as modificações feitas por Ptolomeu – explicava quase completamente os fenômenos celestes. Por fim, de Aristóteles ele retomou a teoria do motor imóvel de todo o universo, que ele interpretou como “Deus” e, portanto, como “amor”.

 

Nisso, entretanto, Dante foi influenciado pela interpretação teologizante de Aristóteles, que via no primeiro motor imóvel o objeto do amor de todas as criaturas. Além disso, Aristóteles havia fornecido a base física, ou seja, científica, das teorias cosmológicas antigas e medievais, portanto permaneceu como o ponto de referência principal de filósofos e cientistas, até ao advento da ciência moderna. Ele também foi o autor de um corpo de doutrinas totalmente excepcional, que ia da lógica à física, da biologia à psicologia, da metafísica à ética, da política à poética e à retórica. Nenhum outro autor antigo era comparável a ele.

 

Para nós contemporâneos qual é o aspecto mais atual do pensamento de Aristóteles?

 

Os aspectos atuais do pensamento de Aristóteles são inúmeros. Na lógica, a teoria das categorias, das oposições, do silogismo, das falácias. Na física, a teoria dos quatro gêneros de causas, a ciência do mundo vivo e, sobretudo, a concepção da alma como forma, isto é, como princípio interno de vida. Na metafísica, a teoria da substância e a doutrina da potência e do ato. Na ética, a concepção da felicidade como plena realização das capacidades humanas. Na política, a concepção da polis como sociedade indispensável para uma vida autenticamente humana e do ser humano como animal por natureza política. Todos esses aspectos, negligenciados e muitas vezes até desprezados ao longo dos séculos, foram hoje redescobertos e valorizados, razão pela qual Aristóteles se tornou um dos principais interlocutores do debate filosófico contemporâneo.

 

Lendo o último livro da “Metafísica”, mas também o Livro VIII da “Física”, podemos dizer que o “Deus” de Aristóteles tem muito pouco a ver com o cristão?

 

O que os cristãos consideram como o “Deus” de Aristóteles, isto é, o primeiro motor imóvel – que para Aristóteles é “um deus” porque é um vivente imortal e feliz –, não é criador, não é providente, sobretudo não é salvador. No entanto, assim como o Deus dos cristãos, ele é transcendente e pessoal. A sua transcendência é expressada pela sua imutabilidade, que o distingue de qualquer outra realidade que experimentamos. A sua personalidade, por sua vez, se deve ao fato de que ele pensa e, portanto, vive, e é feliz por pensar e, portanto, tem uma vontade. No entanto, considero equivocado comparar uma doutrina filosófica, conquistada por um ser humano por meio de capacidades exclusivamente humanas (experiência e raciocínio), com um conceito que é fruto de uma revelação divina.

 

Então, poderíamos até falar em Aristóteles de uma pluralidade de divindades?

 

Aristóteles, como todos os antigos, era politeísta, ou seja, admitia a pluralidade de deuses, e “praticava” a sua religião, ou seja, rezava aos deuses e fazia votos, como fica claro em seu testamento. No entanto, ele criticou os aspectos antropomórficos do politeísmo, interpretando os deuses como inteligências motoras dos céus, e reconheceu entre eles um “primeiro”, abrindo assim o caminho, retomado depois pelos estoicos, para o monoteísmo. Por isso, São Paulo, no Discurso aos Atenienses (Atos), se referiu ao “Deus dos filósofos” gregos como alternativa aos ídolos da religião popular e como base para a compreensão da revelação cristã (assim J. Ratzinger defende na “Introdução ao cristianismo”).

 

Talvez possamos encontrar a grandeza da Academia platônica na syn-philosophein, a beleza e o prazer de fazer filosofia juntos, apesar da diversidade de pontos de vista. Podemos dizer que esse aspecto constitui ainda hoje o valor adicional da filosofia, sobretudo em nível pedagógico nas escolas?

 

Eu concordo inteiramente. Para Aristóteles, fazer filosofia junto com os amigos é o máximo da felicidade. E a única forma de ensinar a filosofia nas escolas é fazer filosofia juntos, isto é, formular perguntas, propor respostas e, sobretudo, tentar argumentar e criticar as respostas, estando sempre disponível para questioná-las sempre.

 

Portanto, hoje, a sociedade precisa mais do que nunca de filosofia...

 

Não apenas hoje, mas sempre. A filosofia é conatural ao ser humano, sempre existiu e sempre existirá, apesar das tentativas interessadas de decretar o seu fim. Esse não era apenas o pensamento de Aristóteles, segundo o qual “todos os seres humanos por natureza (isto é, homens e mulheres, livres e escravos, gregos e bárbaros) desejam saber”, e a filosofia – quando retamente entendida – é a forma mais elevada de saber. Platão na “Apologia” já fazia Sócrates dizer que “uma vida sem busca não é digna de ser vivida pelo homem”.

 

Leia mais