O humano em relação: novos desafios do pensamento vegetal e animal. Artigo de Faustino Teixeira

Foto: TV Brasil

30 Novembro 2021

 

"Nesse nosso tempo sombrio, vislumbramos reflexões que são fantásticas, que nos ajudam a repensar radicalmente nossa inserção na Terra. Falamos antes da abertura ao pensamento vegetal, mas também há reflexões fantásticas sobre o desafio da abertura aos animais", escreve Faustino Teixeira, teólogo, colaborador do Instituto Humanitas Unisinos - IHU e do canal Paz Bem.

 

Faustino Teixeira possui graduação em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF, graduação em Filosofia pela UFJF, mestrado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio e doutorado em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana. Atualmente é professor convidado da UFJF no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião, depois de sua aposentadoria como professor titular na mesma Universidade, em 2017. Tem experiência na área de Teologia, com ênfase em Teologia Sistemática, atuando principalmente nos seguintes temas: religiões, pluralismo religioso, diálogo inter-religioso, catolicismo e mística.

 

Teixeira é autor de vasta obra. Entre suas publicações, destacamos: Buscadores cristãos no diálogo com o Islã (Paulus: 2015), Cristianismos e Teologia da Libertação (Fonte Editorial: 2014), Teologia e pluralismo religioso (Nhanduti: 2012) e Sociologia da Religião: Enfoques Teóricos (Vozes: 2003). 

 

Eis o artigo. 


Tantas reviravoltas vêm ocorrendo em minha reflexão nos últimos tempos, todas ligadas ao questionamento do antropocentrismo. A primeira intuição veio com a mística zen budista, sobretudo com Mestre Dôgen, no seu precioso Shôbôgenzô, que me ajudou a perceber com clareza que as montanhas e os rios têm vida e se movimentam: são como sutras da alegria, que nos revelam o caminho [1]. Ele diz que se demonstramos incapacidade de perceber isso, não damos o passo essencial para compreendermos nós mesmos. Com Dôgen nos inserimos numa espiritualidade da ressonância. A ressonância que vislumbramos no movimento e música dos bambus, que se inserem maravilhosamente na dinâmica do despertar. Cada flor que se abre, como diz Dôgen, é o mundo inteiro que se alça, numa expressão viva de ressonância [2].

 

O antropólogo Tim Ingold foi outro autor fundamental no meu novo itinerário, sobretudo para entender com mais clareza a "textura do mundo da vida". Reforcei com ele minha ideia de que tudo o que existe na natureza é dotado de vida e movimento. Onde há vida, diz ele, há movimento. Isso ocorre com o sol, com as árvores, com o vento [3]. Trata-se da beleza de descobrir o que pulsa vivo na ontologia anímica.

 

Depois veio Anna Tsing, com suas brilhantes reflexões e intuições sobre a rede misteriosa e complexa que brilha sob os nossos pés. Com ela me dei conta de forma vigorosa de uma antropologia da habitalidade e da inter-relação. Entender que nós, seres humanos, não podemos viver sem as outras espécies. Elas fazem parte de nosso tecido habitacional. O que somos são seres inseridos dentro de "teias ecológicas" e não delas destacados [4].

 

Tsing mostrou com muita lucidez a relevância e essencialidade das paisagens multiespécies, que favorecem a nossa condição de humanos relacionais [5]. São lindas suas reflexões sobre o cosmopolitismo que ocorre sob os nossos pés: a riqueza e pertinência das "teias micorrízicas" que conectam raízes e fungos, árvores com árvores, dando vida a um emaranhado lindo e complexo, no qual estamos sempre envolvidos.

 

Com Tsing aprendi o fundamental conceito de ressurgência, que é "o trabalho de muitos organismos que, negociando através de diferenças, forjam assembleias de habitabilidade multiespécies em meio às perturbações" [6]. Perturbações que foram provocadas pelos homem-humano do antropoceno. Através de suas indagações somos desafiados a ocupar as ruínas, a resistir, a "dançar sob os escombros", descobrindo fachos de luz. É o desafio de "lançar nossa fúria contra o senso comum; alcançar o que eles dizem que não podemos ter: o comum" [7].

 

Ainda com a antropologia fui me dando conta, com mais nitidez, sobre o pensamento dos vegetais, a sabedoria das árvores, contra a perversa dicotomia que criamos entre natureza e cultura. Pude descobrir o trabalho precioso de Eduardo Kohn, "Como pensam as florestas" [8], que me ajudou a entender a importância de maior flexibilidade na reflexão, rompendo as amarras estreitas do antropocentrismo. São reflexões que centram seus argumentos contra a ideia de excepcionalismo humano. São aprendizados para o melhor viver, num mundo que partilhamos, convivemos e aprendemos com outras "espécies companheiras" [9], para utilizar uma expressão preciosa de Donna Haraway, outra autora muito importante na minha reflexão atual.

 

E agora vou descobrindo outras facetas fundamentais para aprofundar essa reflexão, que vêm de autores como Maturana, Evando Nascimento [10], Michael Marder [11], Emanuele Coccia [12] e Stefano Mancuso [13]. Por intermédio da FLIP 2021, fui me abrindo para essa nova vertente de reflexão, identificada como "virada vegetal". Fiquei fascinado com a matéria de Ruan de Souza Gabriel, publicada em duas páginas do O Globo de sábado, 27/11/21, com o singular título: Festa na Floresta [14].

 

Muito rica a entrevista concedida pelo botânico italiano Stefano Mancuso, inserida na matéria que mencionei. Ele foi um dos convidados da FLIP 2021. O botânico, como indica Ruan de Souza, "defende que as plantas são inteligentes, comunicam-se umas com as outras e cooperam entre si graças a uma complexa rede formada por raízes e fungos, uma espécie de internet vegetal".

 

Como um teórico do pensamento vegetal, Mancuso ajuda-nos a alargar a nossa concepção de humanos e igualmente o conceito de "nós", inserindo também em sua definição toda a realidade ambiente. Para Mancuso, "ver as coisas do ponto de vista das plantas é revolucionário. Somos quase o oposto delas. Nós consumimos energia e recursos. Elas produzem. Nosso organismo é concentrado e hierárquico. O delas é difuso em rede. Fizemos o mundo à nossa imagem: todas as nossas organizações são hierárquicas, há sempre uma 'cabeça' no topo que toma todas as decisões. Isso é muito ineficiente. As plantas não têm nada que se compare ao nosso cérebro. Funcionam em rede, como a internet. Todas as decisões são tomadas localmente".

 

Como diz Mancuso, "uma floresta é um superorganismo. Todas as plantas estão interligadas por meio de uma rede subterrânea de raízes e fungos. Há uma troca contínua de água, nutrientes e informação". As plantas sobrevivem com o apoio e sustentação (holding) de todos os vizinhos. A planta jovem, diz Mancuso, "sobrevive sustentada por todas as suas vizinhas. Entre os humanos, esse tipo de cooperação só existe no interior das famílias. Para as plantas, isso é natural".

 

Em capítulo que trata o amor, no livro de Humberto Maturana, Ontologia da realidade [15], ele sublinha:

 

“o amor é a condição dinâmica espontânea da aceitação, por um sistema vivo, de sua coexistência com outro (ou outros) sistema (s) vivo (s), e que tal amor é um fenômeno biológico que não requer justificação: o amor é um encaixe dinâmico recíproco espontâneo, um acontecimento que acontece ou não acontece” [16].

 

O amor não combina com a competição, tão presente no mundo do homem-humano. Para Maturana, “a competição nega o amor (...). A origem antropológica do Homo sapiens não se deu através da competição, mas sim através da cooperação, e a cooperação só pode se dar como uma atividade espontânea através da aceitação mútua, isto é, através do amor” [17]. A aceitação do outro, seja esse outro humano, animal, vegetal ou mineral, “é o inimigo da dia tirania e do abuso, porque abre um espaço para a cooperação. O amor é inimigo da apropriação” [18].

 

Nesse nosso tempo sombrio, vislumbramos reflexões que são fantásticas, que nos ajudam a repensar radicalmente nossa inserção na Terra. Falamos antes da abertura ao pensamento vegetal, mas também há reflexões fantásticas sobre o desafio da abertura aos animais. Vemos isto na literatura de Clarice Lispector [19] e Guimarães Rosa, e também na antropologia de Donna Haraway e Vinciane Despret [20]. É um tempo propício para repensar as nossas relações e buscar sobreviver em tempos de crise e tentar “seguir com o problema”, como indica Haraway [21]. A perspectiva que se abre não é tanto pelo caminho do pós-humanismo, abortando a singularidade do humano, mas buscando novos itinerários de convivência, quem sabe assumindo o desafio de viver num mundo em ruínas, abraçando com mais carinho a nossa condição “compostista”, dialogal e relacional.

 

Notas

 

[1] Mestre Dôgen. Sansauykyo (Montanhas e rio como sutras). Shôbôgenzô. Le vrai loi, trésor de l´oeil. Tome 1. Vannes Cedex: Syully, 2005, p. 103-104.

[2] Mestre Dôgen. Udonge (A flor de udumbara). Shôbôgenzô. Tome 1, p. 189.

[3] Tim Ingold. Estar vivo. Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 122-123.

[4] Anna Tsing. Viver nas ruínas. Paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília: IEB Mil Folhas, 2019, p. 43-44.

[5] Veja também a respeito a carta encíclica de papa Francisco: Laudato si. Sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015, nºs 16, 42, 91-92 e117.

[6] Ibidem, p. 226.

[7] Ibidem, p. 88.

[8] Eduardo Kohn. Comment pensent les forêts. Le Kremlin-Bicêtre: Zones Sensibles, 2013. Sobre a crítica ao excepcionalismo humano cf. p. 47-48.

[9] Donna Haraway. O manifesto das espécies companheiras. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.

[10] Evando Nascimento. O pensamento vegetal. A literatura e as plantas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021.

[11] Michael Marder. Plant-Thinking: A Philosophy of Vegetal Life. Columbia University Press, 2013.

[12] Emanuele Coccia. Vida das plantas. Uma metafísica da mistura. Cultura e Barbárie; Id. A vida sensível. Cultura e Barbárie.

[13]Stefano Mancuso. A planta do mundo. Ubu Editora, 2021; Id. Revolução das plantas. Um novo modelo para o futuro. Ubu Editora, 2019.

[14] Ruan de Souza Gabriel. Festa na Floresta. O Globo, 27/11/2021, Segundo Caderno.

[15] Humberto Maturana. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1997.

[16] Ibidem, p. 184.

[17] Ibidem, p, 185.

[18] Ibidem, p. 186.

[19] Evando Nascimento. Clarice Lispector: uma literatura pensante. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

[20] Vinciane Despret. Bête et hommes. Paris: Gallimard, 2007; Que diraient les animaus, si... on leur posait les bonnes questions? Paris: La Découverte, 2014; Vinciane Despret & Jocelyne Porcher. Être bete. Actes Sud, 2007.

[21] Donna Haraway. Seguir con el problema. Generar parentesco en el Chthuluceno. Bilbao: Edición Consonni, 2020.

 

 

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