Episcopalis communio. A igreja da escuta recíproca

Foto: Cathopic

11 Novembro 2021

 

"A importância da Episcopalis communio (EC) é enorme: trata-se do documento que liga indissoluvelmente um duplo protagonismo: o do povo de Deus, sujeito do sensus fidei, e o dos pastores, chamados a cumprir o seu ato de discernimento a partir da escuta do povo santo de Deus ", escreve Dario Vitali, padre, professor de eclesiologia e diretor do Departamento de Teologia Dogmática da Pontifícia Universidade Gregoriana, em artigo publicado por Missione Oggi, edição de setembro-outubro de 2021 do dossiê "Por uma Igreja sinodal" (org. Franco Ferrari). A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

Em 15 de setembro de 2018, o Papa Francisco promulgou a Constituição Apostólica Episcopalis communio (EC), sobre o Sínodo dos Bispos. A data foi particularmente significativa, pois, em 15 de setembro de 1965, Paulo VI instituiu, com o Motu proprio Apostolica solicitudo, este organismo que atravessou todo o período pós-conciliar, com a celebração de 27 assembleias às quais logo será acrescentada justamente aquela dedicada ao tema da sinodalidade: “Por uma Igreja sinodal: comunhão, participação, missão”.

 

Uma virada não marginal na vida da Igreja

 

Poucos, porém, deram a devida atenção a esse documento que inova profundamente uma instituição que já Paulo VI tinha imaginado pudesse conhecer novos desenvolvimentos e modificações. Para inovar a matéria, o Papa escolhe a via da Constituição Apostólica, documento geralmente utilizado para intervir no plano legislativo. Pelo tipo de documento, portanto, o Papa manifesta uma intenção precisa de redesenhar um organismo que em sua ação pastoral parece ocupar um lugar de grande importância.

 

Rumo à reforma do Sínodo

 

O documento não chegou vindo do nada. Após a publicação da Evangelii gaudium (EG), caracterizada como uma exortação apostólica sem o acréscimo de "pós-sinodal", muitos consideraram que a temporada dos sínodos estivesse agora no fim. Em vez disso, o Papa, em 2014, convocou uma assembleia extraordinária sobre a família, que ele estendeu à assembleia ordinária em 2015, mantendo a Igreja em estado de sínodo por dois anos.

Já naquelas duas assembleias, muitos elementos de novidade foram introduzidos em nível normativo: o cancelamento dos Lineamenta, substituídos por um questionário para sondar quantos conheciam a realidade da família através da experiência direta; a redação do Instrumentum laboris a partir das respostas ao questionário; a transformação do Relatio finalis do sínodo extraordinário no Instrumentum laboris do sínodo ordinário.

Mas o momento de maior novidade veio no discurso de 17 de outubro de 2015, pronunciado para celebrar o quinquagésimo aniversário da instituição do Sínodo dos Bispos. Uma verdadeira virada na compreensão da Igreja. Pela primeira vez, de fato, numa intervenção pontifícia, fala-se de sinodalidade como "dimensão constitutiva da Igreja" e de "Igreja constitutivamente sinodal", indicando o futuro da Igreja na sinodalidade: "O caminho da sinodalidade é precisamente o caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milênio”. O Papa assinala que a essência da palavra "Sínodo" consiste em "caminhar juntos: leigos, pastores, bispo de Roma".

Em seguida, explica como e porque ele decidiu pelo envolvimento do povo de Deus no caminho sinodal, destacando a função decisiva do sensus fidei (já referida na EG 119) para compreender “o que o Espírito diz à Igreja”. O discurso marca passagens que já abrem um caminho principal: “Uma Igreja sinodal é uma Igreja da escuta ... uma escuta recíproca em que cada um tem algo a aprender. Povo fiel, colégio episcopal, bispo de Roma: um na escuta dos outros; e todos na escuta do Espírito Santo, o ‘Espírito da verdade’ (Jo 14,17), para conhecer o que Ele diz às Igrejas (Ap 2,7)".

Já nesse discurso emerge a trama do que será decretado na EC: o Sínodo entendido como “ponto de convergência deste dinamismo de escuta a todos os níveis da vida da Igreja. Este dinamismo começa pela escuta do povo, prossegue escutando os pastores, culmina na escuta de o Bispo de Roma". Dessa maneira" o Sínodo dos Bispos é apenas a manifestação mais evidente de um dinamismo de comunhão que inspira todas as decisões eclesiais", envolvendo toda a Igreja: o exercício da sinodalidade, de fato, realiza-se em um primeiro nível nas Igrejas particulares, em um segundo nível nas Conferências Episcopais, para concluir-se, em nível universal, no Sínodo.

 

Um processo articulado em três fases

 

Todos esses elementos são retomados e organizados na EC. A Constituição Apostólica, de fato, mesmo reafirmando as características fundamentais do Sínodo fixadas por Paulo VI – organismo dos bispos (art. 2) submetido diretamente ao Papa (art.1.1) e dividido em assembleia geral ordinária, assembleia geral extraordinária e assembleia especial (art.1.2) - introduz um elemento que modifica não só a sua estrutura, mas também a sua natureza.

A art. 4, de fato, estabelece que “toda Assembleia do Sínodo se desenvolve de acordo com fases sucessivas: a fase preparatória, a fase celebratória, a fase de implementação”. Portanto, o Sínodo se transforma de evento - a celebração de uma assembleia de bispos - em processo, dividido em fases sucessivas.

O aspecto mais evidente dessa transformação é o envolvimento de todos no processo sinodal: o povo de Deus, os pastores, o bispo de Roma. A primeira fase "tem por objetivo a consulta do povo de Deus sobre o tema da Assembleia do Sínodo" (art. 5.2). Embora se fale de "fase preparatória", é evidente que o Sínodo começa com esse momento, que "se realiza nas Igrejas particulares", onde "os bispos consultam o povo de Deus valendo-se dos organismos de participação previstos pelo direito, sem excluir qualquer outra modalidade que julgarem oportuna” (art. 6.1).

O processo sinodal continua com o envio das contribuições de cada Igreja às Conferências Episcopais, para que não só os bispos individualmente, mas também os organismos intermediários de sinodalidade participem do processo com um ato de discernimento sobre o que resultou da consulta. Desta forma, é garantido o exercício da função profética de Cristo por todo o povo de Deus (cf. LG 12) e o ato de discernimento que cabe propriamente aos pastores.

Esse duplo ato oferece à Secretaria do Sínodo o precioso material para a elaboração do Instrumentum laboris, sobre o qual a Assembleia será chamada a trabalhar. Infelizmente, deve-se assinalar que a normativa não explicita tal ponto, ainda que se fale de uma Comissão Preparatória nomeada pelo Secretário-Geral do Sínodo para aprofundar o tema e redigir os documentos prévios (cf. art. 10), entre os quais não pode faltar - obviamente -, o Instrumentum laboris.

 

Entre novidades e confirmações

 

A segunda fase do processo continua como habitual, com alguma abertura aos participantes da Assembleia - especialistas, ouvintes, delegados fraternos, enviados especiais - mas sem tocar uma estrutura consolidada. O resultado final da Assembleia será o Documento final, sobre o qual a EC nos convida a buscar "a unanimidade moral na medida do possível" (art. 17.3). O Documento final "é oferecido ao pontífice romano" e, se expressamente aprovado por ele, participa do magistério ordinário do sucessor de Pedro"(art. 18.1).

A terceira fase, por outro lado, é inteiramente nova e prevê, após a celebração do Sínodo, o recebimento e a implementação de suas conclusões (art. 19-21). Aqui percebe-se uma dificuldade para imaginar um processo de restituição à Igreja que não seja aquele, demasiado assimétrico, de implementação pelos órgãos instituídos. Por outro lado, a limitação mais evidente da EC é precisamente a de assumir um quadro eclesiológico específico, que supere definitivamente as lógicas do modelo piramidal da Igreja.

 

Uma ligação estreita entre sensus fidei e discernimento

 

A EC pode ser qualificada como um documento de transição. O processo sinodal, que terá início no próximo dia 10 de outubro com a abertura da primeira fase, é muito mais centrado na consulta ao povo de Deus do que mostra um texto que, para a consulta, dava muito espaço a outros sujeitos - Institutos de vida consagrada e Associações de fiéis - distintos das Igrejas particulares. Em alguns aspectos, transparece naquele documento uma eclesiologia que não assume plenamente a ideia da Igreja como um "corpo das Igrejas", "nas quais e a partir das quais existe a única Igreja Católica" (LG 23), dentro das quais todos participam da vida eclesial segundo sua vocação, função, estado de vida.

Mas a importância da EC é enorme: trata-se do documento que liga indissoluvelmente um duplo protagonismo: o do povo de Deus, sujeito do sensus fidei, e o dos pastores, chamados a cumprir o seu ato de discernimento a partir da escuta do povo santo de Deus. “Também graças ao Sínodo dos Bispos - conclui a premissa doutrinal - ficará cada vez mais claro que, na Igreja de Cristo, vigora uma profunda comunhão tanto entre os pastores como entre os fiéis ... , e entre os bispos e o pontífice romano"(EC 10). É o que se espera que aconteça na próxima Assembleia Geral Ordinária do Sínodo, dedicada à sinodalidade como horizonte para a Igreja do futuro - esperamos não demasiado distante -: “Por uma Igreja sinodal: comunhão, participação, missão”.

 

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