“O patriarcado cria problemas para todos nós”. Entrevista com Gary Barker

Fonte: Pixabay

28 Outubro 2021

 

Há duas décadas, Gary Barker se dedica ao ativismo pela igualdade e trabalha com homens. Esse pesquisador estadunidense de 60 anos é diretor do Promundo, uma ONG dedicada à igualdade de gênero e à promoção de “masculinidades saudáveis”.

 

Barker colabora com organismos internacionais, governos e organizações para fortalecer uma agenda centrada na mudança dos homens. Recentemente, esteve na Espanha para participar do encontro de homens pela igualdade, realizado em Sevilha.

 

A entrevista é de Ana Requena Aguilar, publicada por El Diario, 26-10-2021. A tradução é do Cepat.

 

Eis a entrevista.

 

Você se considera um aliado?

 

Sim. Há muito debate sobre se é possível ser um homem feminista. Para mim, não é a questão. Eu me considero cúmplice ou aliado ou um homem tentando fazer parte de um processo de igualdade de gênero.

 

Existe muito ceticismo sobre o termo aliado, como também sobre o seu significado. No feminismo, surge a dúvida se existem homens se aproveitando dessa posição ou a utilizando, sem ser coerentes com o que implica. Compreende esse receio?

 

Sim e não. Existem mulheres líderes nesse espaço que há décadas trabalham para que existam políticas fortes pela igualdade de gênero, contra a violência de gênero, pela corresponsabilidade e que sentem que houve muito silêncio em torno de seus argumentos. Sendo assim, compreendo que pensem que chegam meia dúzia de homens e, de repente, torna-se o assunto do momento. Isso pode acontecer.

E se nós, os homens, não ficamos atentos, é fácil chegar e pensar que somos os homens salvadores, por isso precisamos ter muita consciência do momento e do processo histórico que nos trouxe aqui. Mas, sim, acredito que são necessários homens que estejam aqui, nesse processo. Eu estou aqui graças ao feminismo e ao trabalho de mulheres, durante décadas, para nos questionar o que podemos fazer.

 

O ceticismo também vem dos homens que se consideram feministas, mas que continuam reproduzindo comportamentos e atitudes machistas. Agora, não é bem-visto ser machista, mas há comportamentos que não mudam e é em relação a isso que nós, mulheres, ficamos incomodadas e cansadas.

 

A questão é se o discurso vai além do politicamente correto. Para nós, homens, falta humildade para reconhecer que fomos formados em um mundo machista e que somos projetos, que estamos tentando mudar. Isso acontece comigo, minha companheira e minha filha me cobram, dizem: “Que bonito o seu discurso! E o que fará com isto?”.

É necessário que sejamos coerentes. Como também penso que temos que reconhecer que existem práticas machistas que estão em todas as partes, não necessariamente reproduzidas pelos corpos masculinos. Somos produto de um ambiente, embora isso também não deve servir como desculpa.

 

O debate sobre as leis de identidade de gênero e a autodeterminação gerou muita tensão. Costuma-se sempre interpelar as mulheres – um dos argumentos contra essa autoidentificação é que apaga as mulheres –, mas pouco os homens. Os homens trans apagam os homens? O que isso significa?

 

Seguimos muito com o entendimento de que são movimentos identitários e é inevitável que, em algum momento, cheguem a esse choque. Estou rompendo o sistema patriarcal ou estou lutando por uma determinada classe identitária?

Eu entrei nesse campo há mais de 20 anos, em pleno auge do movimento LGBT e feminista no Brasil, e acredito que o importante foi que juntos estávamos buscando romper um sistema e pensando que tínhamos uma causa comum: acabar com o patriarcado e combater as desigualdades. Se permanecermos em nossos guetos, seguiremos com políticas identitárias em vez de políticas transformadoras. As melhores políticas vêm quando pensamos que a causa comum é acabar com o patriarcado.

 

 

Você é partidário de explicar que a proposta feminista também é boa para os homens, que eles ganham com ela, mas também não é verdade que implica uma perda de privilégios?

 

Sim. Quando pensamos, por exemplo, nos cuidados, nas gerações de homens que se sentavam e como em um passe de mágica lhes aparecia um café nas mãos, um ser humano mulher se dedicava inteiramente a isso. É o privilégio de quem cuida, de quem cuida de meu corpo... Igualdade implica que perco alguns privilégios.

Parte do atual movimento pela igualdade diz agora que não estamos mais dispostos a negociar isso: bem-vindos, homens, ao mundo onde todos devem competir por igual, não só entre homens de classe média, mas com todas as pessoas, mulheres também, de todas as classes.

 

 

Por outro lado, sim, é verdade que o mundo será melhor quando houver equidade e igualdade de gênero. Nos ambientes igualitários e nos grupos mistos de trabalho, por exemplo, nós, homens, sofremos menos violência, menos bullying, somos mais ouvidos do que quando enviam quatro homens brancos. É preciso mostrar aos homens os custos em saúde, em anos de vida, em prevalência do suicídio neste sistema.

 

Ou seja, os privilégios têm uma contrapartida negativa para os homens.

 

Sim, a violência, o suicídio... é o custo que os homens pagam pelo patriarcado. Às vezes, debatemos que isso não é nada em relação ao que as mulheres sofrem. E, é claro, os custos para as mulheres são enormes, mas, sim, estou falando do custo para os próprios homens. Não estamos fazendo uma comparação, mas explicando que o patriarcado cria problemas para todos nós e buscando uma agenda ampla, comum, mais eficaz.

 

Como explicaria para um homem sobre o que estamos falando, quando dizemos que no patriarcado os homens têm privilégios?

 

Eu diria que o peixe não vê a água. Para começar pelo cuidado: todos os estudos que mostram que em média as mulheres dedicam 3,3 vezes mais tempo cuidando dos corpos, casas, vidas... Os homens respondem, então, que trabalham mais fora de casa, mas se somamos o que se trabalha fora e dentro, as mulheres ainda somam mais. Nós, homens, temos uma média de meia hora a uma hora a mais de ócio por dia. São duas semanas de férias patriarcais por ano.

 

 

Se falamos do medo, uma dinâmica que fazemos é colocar um grupo de homens e mulheres sentados e perguntamos quem alguma vez sentiu medo de, por exemplo, entrar no metrô ou andar em uma rua escura, ou de ficar em casa, ou de um professor, ou em um encontro. Aí, as mulheres ficam em pé e os homens sentados.

 

A extrema direita está explorando a ideia de que o feminismo está retirando direitos dos homens?

 

Claro, estão ganhando leitores e eleitores. Estamos fazendo grupos focais com homens brancos que votaram em Trump. Se perguntamos por que votaram nele, a conversa não avança, mas se perguntamos quem eles amam, quais são seus desafios e expectativas vitais, se têm filhos e cuidam deles, como está a sua relação com eles, aí conversamos durante horas.

Muitas das conversas acabam no mesmo: no medo, no fato de que muitos se sentem vitimizados ou sentem que agora os homens brancos são culpados por todos os males e que as políticas os deixam de fora, que não importa que percam seu emprego ou que sua saúde piore.

Isso é uma entrada para que um déspota como Trump chegue e diga que outros retiram os seus direitos. O desafio é como mostrar aos homens brancos que todos nós perdemos com a restrição do Estado de bem-estar, eles também.

 

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