Uma visita ao passado e um olhar para o futuro marcam debate sobre o pós-pandemia, com Lilia Schwarcz e Carlos Gadelha

Foto: Bruno Kelly | Amazônia Real

06 Julho 2021

 

Uma visita ao passado de modo a iluminar o presente, marcado pela crise derivada da pandemia de Covid-19, e um olhar para o futuro na busca de um novo projeto de desenvolvimento para o país, capaz de enfrentar o atual cenário adverso. Esses dois caminhos marcaram, respectivamente, as exposições da conferência on-line Como será o mundo pós-pandemia, com a historiadora Lilia Schwarcz, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, e o economista Carlos Gadelha, coordenador do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, realizada em 24/062021.

 

O evento, que integrou o I Encontro Norte das Fundações de Apoio (Enfap), realizado pelo Conselho Nacional das Fundações de Apoio às Instituições de Ensino Superior e de Pesquisa Científica e Tecnológica (Confies), teve moderação do presidente do Confies e diretor da Fundação Coppetec, Fernando Peregrino, e faz parte de uma série de encontros regionais para promover a discussão de temas relacionados ao universo de atuação das fundações.

 

A reportagem é de Eliane Bardanachvili, publicada por Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz, 29-06-2021.

 

Ao mesmo tempo em que observou que historiadores “gostam de analisar processos sociais que já se encerraram”, Lilia Schwarcz considerou que o passado pode ajudar a iluminar o presente e traçou um paralelo entre a gripe espanhola, que acometeu o Brasil e o mundo em 1918 – tema do livro A bailarina da morte: A gripe espanhola no Brasil (Companhia das Letras), do qual é autora com Heloísa Starling – e a pandemia de Covid-19, que chegou ao país em 2020. “A História está sempre em transformação, mas se repete também”, observou Lilia.

 

“A gripe espanhola estourou nos Estados Unidos, que estavam se preparando para entrar na Guerra [Primeira Guerra Mundial], e os combatentes, sem saber, viajavam levando duas armas, uma tecnológica e outra biológica”, relatou a historiadora, explicando o porquê de a gripe ter sido batizada como espanhola. “Estranhamente, a Espanha não participava da guerra mas, com isso, não tinha sua imprensa no alvo da censura, divulgando a gripe e levando a fama”.

 

No Brasil, contou, achou-se que a gripe não iria chegar. Mas chegou, em agosto de 1918, trazida pelo navio [inglês] Demerara, que aportou em Recife, contaminando a cidade, desceu para Salvador, Rio de Janeiro e foi até o Rio Grande, São Paulo, Goiás, Manaus e Belém. “Também naquela época Manaus foi duramente castigada pela gripe”, observou Lilia, destacando as condições ruins de saúde do país, então, e, ao mesmo tempo, os esforços das autoridades da época para o enfrentamento do problema – diferentemente do que ocorre hoje. “O Brasil já era conhecido como um vasto hospital, os brasileiros já eram vítimas de uma série de epidemias, que matavam a população. Não havia um ministério da Saúde, mas havia uma Secretaria de Saúde, situada no Rio de Janeiro, que logo deu o alarme quanto à chegada da gripe espanhola”.

 

 

Lilia estabeleceu uma distinção entre os termos negação e negacionismo, que caracterizaram, respectivamente, 1918 e 2020/21. “Nós, homens e mulheres do ocidente vivemos em uma sociedade que sequestrou a morte. Não temos lugar para a doença, para o envelhecimento, abolimos os rituais de luto. Em sociedades não acostumadas à morte, a reação geral a esse risco é de negação. Em 1918, o que se viu foi uma negação da doença por parte da sociedade”, explicou, mostrando uma charge da época, em que se vê um médico aconselhando a paciente: A melhor coisa a fazer contra a gripe é não ler jornais.

 

“Mas negação é diferente de negacionismo. Negacionismo é uma política de Estado”, definiu. Conforme assinalou, em 1918, a Secretaria de Saúde, ou seja, o poder público, estabeleceu imediatamente medidas de profilaxia, com campanhas para informar a população e evitar aglomerações, determinando uso de máscara, fechamento do comércio, escolas, equipamentos de diversão e também igrejas. “Diferentemente de agora, em que as igrejas ficaram abertas em plena pandemia. Em 1918, só abriram para serem utilizadas como hospitais de campanha”.

 

Lilia lembra também que, na epidemia de gripe espanhola, circulava a ideia de culpa pela doença, naquele caso, atribuída aos alemães, que teriam trazido a gripe para o país, “inoculando uma fumaça verde, para contaminar as populações aliadas”, ainda que os alemães também estivessem sendo vitimados. “A gripe matava soldados dos dois lados [aliados e eixo]. Esse tipo de mal entendido aconteceu em 1918, acontece também em 2020/21 e é bastante comum em momentos de epidemia e pandemia”.

 

Outro paralelo traçado pela historiadora referiu-se a medicamentos milagrosos para combater a doença. Em 1918, relatou, circulavam anúncios nos jornais de remédios que prometiam milagres. “Recomendavam-se os famosos xaropes, que curavam coqueluche, tuberculose e também a espanhola. Podemos rir disso hoje, mas, daqui a cinquenta, cem anos, vamos rir também do nosso atual tratamento precoce”, comparou. Com uma ressalva: “Em 1918, nenhuma autoridade referendou esse tipo de xarope. Em 2020/21, vocês sabem bem que as autoridades da saúde não estão referendando medicamentos, mas as autoridades políticas estão. Na minha contabilidade, em 2020/21, vamos perder de 7X1 para 1918”.

 

Lilia abordou, ainda, o papel da imprensa nos dois momentos, ao divulgar, não censurar e informar o número de mortes e de casos. “Sem a imprensa não teríamos acesso a esses dados”. Uma semelhança apontada por ela, ainda, referiu-se ao entendimento de que tanto a gripe espanhola quanto a Covid-19 seriam doenças democráticas, tendo em vista que qualquer pessoa poderia se contaminar, independentemente de condição social. “Tanto em 1918 quanto em 2020/21, temos provas de que todos podem ser contaminados, mas os números de contaminação e mortalidade apontam, sobretudo, para as populações negras, que moram nas nossas periferias. Essa é uma história de longo curso”.

 

Ela explicou que, em 1918, não se haviam passado muitos anos desde a abolição da escravidão mercantil e que a Lei Áurea tinha natureza conservadora, não prevendo a inclusão social. “A gripe espanhola encontrou os ex-escravizados nos morros e sem condições de uma profilaxia adequada. Tanto em 1918, quanto em 2020/21, a epidemia teve cor e endereço”, observou Lilia. “O Brasil não é um país pobre, mas um país de pobres e profundamente desigual. E a desigualdade produz mais desigualdades. Sabemos que em 2020/21, vamos sair mais desiguais do que éramos”.

 

Para Lilia, em termos de solidariedade, “nós involuímos”. Ela lembrou, nesse sentido, que, em 1918, foi possível ver nos jornais muitos traços de solidariedade, com escolas e igrejas abrindo suas portas para acolher os doentes, por exemplo. “Em 202/21, começamos assim, mas o novo normal acabou se voltando às classes médias e altas, que têm um escritório para trabalhar em casa, com internet funcionando. A cada quatro brasileiros um não tem acesso à internet. Mais de 35% dos lares brasileiros não têm condições de fazer a profilaxia necessária contra a Covid-19”.

 

De qualquer forma, a historiadora considera que a crise que o país enfrenta – “econômica, social, política, moral e de saúde” – nos põe “na área de fronteira entre o abismo e a salvação”, convidando a definirmos o que pretendemos como brasileiros e brasileiras e como cidadãos e cidadãs. “Ainda há tempo. O Brasil tem grandes instituições, é hora de ouvir a ciência, aprender com a ciência, não dar ouvido à boataria e à notícia falsa. A democracia é um regime inconcluso, mas enquanto não inventarem regime melhor, ela para mim, funciona”.

 

 

Carlos Gadelha abriu sua exposição destacando a importância do entendimento da economia como ciência social – e não como algo restrito a “ajuste de contas” –, buscando estimular uma mudança de paradigma para se lidar com a relação entre saúde e desenvolvimento e como saída para a crise. “Temos caminhado na contramão do mundo, vendo o estado de bem estar, os direitos, a questão ambiental, a questão da desigualdade, entre pessoas e regional, como problemas, como mazelas, quando podem se inscrever em uma nova trajetória nacional de desenvolvimento; são vetores dessa trajetória”, considerou. “O mundo da inovação e o mundo social como estruturas à parte, isso caiu por terra, o que nos traz um desafio imenso de política pública, em que não se pode apartar política de desenvolvimento de política para as pessoas, para a sociedade”.

 

Gadelha propôs o aproveitamento “em escala” da biodiversidade do país, no campo da saúde, “tratando-se cientificamente produtos de base da natureza”. Ele dá um exemplo: “Veja o que ocorreu com a Covid-19: somos liderança mundial nos estudos sobre a variante do vírus no Amazonas! A comunidade científica e o SUS tiveram muito vigor no enfrentamento da crise”, destacou, alertando para que o Brasil não aceite um desenvolvimento regional desigual, em que a região Norte, por exemplo, não ganha o devido protagonismo. “Da mesma forma que Brasil não pode aceitar uma dependência insustentável, em que 90% daquilo que produz efeito terapêutico e profilático são importados”, acrescentou.

 

Conforme observou o pesquisador, as oportunidades que surgem a partir das crises não são naturais, mas construídas politicamente, em torno de um projeto. “Vamos reproduzir politicas de desenvolvimento tradicionais, de proteção a certos segmentos, ou vamos fazer politicas de desenvolvimento com foco nas demandas da nossa população e da população global?”, indagou, destacando a aposta na segunda opção. “Quanto mais fortes formos em ciência, tecnologia e inovação, mais poderemos cooperar globalmente. Uma ação generosa de nossa parte é nos desenvolvermos, para termos também uma ação generosa com a América Latina, a África”.

 

Gadelha tomou como exemplo de sua reflexão a vacina, para ele, “um espelho da nossa sociedade”, trazendo algumas indagações: “Quem fez a vacina? Onde estava o conhecimento que gerou a vacina? Quem domina e quem depende dessa tecnologia?”. O pesquisador lembrou que a vacina é um bem público global, não um objeto de desejo e que por dentro desse produto existem relações sociais. “Existe raça, cor, pessoas que estão em universidades e outras que apenas embalam produto e são mal pagas. Aquele produto, ao mesmo tempo, gera tecnologia, inovação, desenvolvimento e pode, nas relações sociais que estão por trás de sua produção, embutir um modelo de desigualdade absurdo”.

 

Como expressão dessa desigualdade, Gadelha destacou que hoje não há mais do que cinco países inovadores no mundo em vacinas, e que 75% das doses distribuídas no mundo estão em dez países. “O Brasil, na oferta de vacina, ainda está no meio termo. Há países totalmente excluídos, sem capacidade de absorver tecnologia”.

 

Gadelha alertou para os riscos de uma “retomada do modelo extrativista” no país. Apresentando um mapa do Brasil com indicação de produtos exportados por cada estado brasileiro, identificou a incidência de commodities como soja, carne de frango, madeira, minério de ferro e petróleo cru. “Estamos em um processo involutivo, virando uma grande fazenda, de um mundo desigual e devastador, em que, quando o preço dos produtos for bom, daremos saúde à população, quando não for, deixaremos a população morrer”.

 

O pesquisador apresentou também um gráfico apontando para o grau de dependência do país de importações em saúde, totalizando 20 bilhões de dólares, o equivalente ao orçamento do Ministério da Saúde, “sem gerar um emprego, sem incrementar a ciência do país”. Conforme considerou, “a conjuntura está explodindo as características estruturais da nossa sociedade”.

 

Integrante do Conselho Diretor do Fundo Nacional e Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), Gadelha relatou a aprovação pelo conselho, em 17/06/2021, de um manifesto pela liberação imediata dos recursos integrais do Fundo, conforme já aprovado por lei (Lei Complementar 177/21). O manifesto defendeu, ainda, que a alocação dos recursos para ciência e tecnologia seja realizada pelo FNDCT – e não pelo Ministério da Economia –, também conforme a legislação. “O Ministério da Economia libera recursos reembolsáveis, isto é, para empréstimos, e não para irrigar as instituições de ciência, tecnologia e inovação ou o investimento empresarial sem endividamento”, explicou Gadelha. “As empresas não estão pegando recursos, porque o juro é alto. Ou seja, liberam-se recursos para empréstimo, para não liberar recursos para ciência, tecnologia e inovação!”, critica. “O sistema científico e tecnológico brasileiro está sem respirar, por conta de artifícios contábeis”.

 

Para Gadelha, um país que conseguiu construir “o maior sistema universal dos trópicos” e conta com “uma ciência e tecnologia invejável no mundo” tem peças no quebra-cabeças para lutar por um outro padrão de desenvolvimento. “O Brasil já mostrou em sua história capacidade de ruptura e transformação. Um exemplo é o próprio SUS”.

 

Defendendo que “a ciência tem que sair da gaveta e ir para a calçada”, o pesquisador salientou o papel das fundações de apoio na aproximação entre ciência e sociedade. “Se a fundação de apoio for vista como muleta burocrática, haverá um empobrecimento da sua função social. Aquele cientista que faz a ciência mais básica tem obrigação de dialogar com a sociedade”.

 

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