Barbárie policial e o eterno Cemitério dos Pretos Jovens

Foto: OutrasPalavras

11 Junho 2021

 

"Kathlen, jovem grávida, foi assassinada. Nas 'balas perdidas' com alvo certo, nas prisões-senzalas e na brutal desigualdade, o passado escravocrata é eterno presente – e parece gritar que negro não tem direito de viver, tampouco de nascer", escreve Bibi Tavares, assistente social, em artigo publicado por OutrasPalavras, 10-06-2021.

 

Eis o artigo.

 

Ser negro e se manter vivo no Brasil é uma missão a longo prazo, te obriga a viver em alerta 24 horas, sete dias por semana. Em casa, na rua, no trabalho, no supermercado, no banco, é como se pessoas negras, preferencialmente pobres, nascessem com uma grande placa colada nas costas: atire aqui, isso quando conseguem nascer. Na última terça-feira (8), Kathlen Rommeu, uma mulher negra de 24 anos, designer de interiores e que estava grávida, foi vítima da famosa “bala perdida” da PM carioca, no bairro Lins de Vasconcelos. Kathlen estava andando na rua com sua avó quando uma bala de fuzil atravessou seu tórax e lhe tirou a vida.

Antes mesmo de ler os jornais, dá pra apostar de olhos fechados que a versão da polícia inclui alguma troca de tiros, bairro pobre, pessoas negras e um azar do caramba para quem estava de passagem pelo local. É um roteiro que, apesar de previsível, se repete semanalmente sem que nada seja feito, pois foi feito para ser assim. A vida do negro no Brasil e em muitos outros lugares e assim, uma odisseia permeada de racismo, num momento você está andando tranquilo pela rua e no outro você é vítima da incompetência policial. Segundo a mãe de Kathlen:

“Essa historinha que é contada há anos na televisão que é troca de tiros, que a polícia foi recebida a tiros, quem foi recebida a tiros foi minha filha. Fui informada por todos que não foi troca de tiros, a polícia estava dentro de uma casa, viu os bandidos e atirou. Se a polícia estava dentro de uma casa, por que ela não olhou para rua, para ver quem estava passando? Porque se eles estavam de tocaia, eles têm que ter cuidado, na favela não só mora bandido. Se minha filha fosse morta por bandido, eu não falaria nada porque eu moro em um lugar que eu não poderia falar. Mas não foi. Foi a polícia que matou a minha filha. Foi a PM que tirou a minha vida, o meu sonho”

O fato de Kathlen estar grávida no momento em que foi vítima da PM é algo muito simbólico, mostrando que o negro mal tem o direito de nascer e quando nasce, nunca está livre, está sempre encarcerado ou tentando se defender para não morrer ou para não ser preso.

Cemitério dos Pretos Novos

A polícia brasileira é a principal responsável pela agitação nos tantos “Cemitérios de Pretos Novos” espalhados pelo país. Voltando um pouco na história – e nem é há tanto tempo assim -, entre 1760 e 1830 funcionou na Gamboa, zona portuária no centro do Rio de Janeiro, o chamado Cemitério de Pretos Novos. O local era utilizado para enterrar os negros trazidos sequestrados da África, que não resistiam às longas viagens em condições desumanas e aos tratamentos recebidos por seus algozes. O mesmo Rio de Janeiro que enterra tantos jovens negros até hoje carrega esse fardo como herança, muda-se a cara das personagens, mas o cenário e a história é a mesma.

Os negros escravizados que chegavam nos navios negreiros aqui eram os chamados “Pretos Novos”, designados para o trabalho forçado nas plantações de café, que nessa época estavam a todo vapor. O enterro dos corpos desfalecidos era cruel e desajeitado:

“Os corpos nus eram envoltos em esteiras, amarradas por cima da cabeça e por baixo dos pés. O rito era sumário: de forma descuidada, sem abrir covas, jogavam um palmo de terra sobre cada um deles, lançados aos pares. Os sepultamentos eram feitos uma vez por semana, de modo que muitos cadáveres jaziam empilhados à espera de serem enterrados. O monte formado ficava exposto ao tempo e depois das chuvas, que carregavam a terra, muitas partes dos corpos se descobriam. De vez em quando, queimava-se um monte de cadáveres semidecompostos”.

 

Imagem: Reprodução

Até hoje, é difícil não notar que os negros ainda morrem a caminho do “trabalho” e pelo tratamento desumano que recebem da polícia que mais mata pessoas negras no mundo. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020: “Em 2019 o país atingiu o maior número de mortes em decorrência de intervenções policiais desde que o indicador passou a ser monitorado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2013”, com destaque para São Paulo e Rio de Janeiro, que juntos são responsáveis por 42% do total de mortes no ano retrasado.

Os jovens negros são as vítimas preferidas da polícia brasileira e Kathlen, apesar de ter menos chances de ser atingida pela PM em intervenções policiais – as mulheres totalizam 0,8 dessas mortes -, estava no auge da idade dos jovens negros assassinados. É como se o Rio de Janeiro fosse um imenso Cemitério de Pretos Jovens que, frente ao tratamento que o Estado dá a essa população, têm a vida feita de constante medo e fragilidade.<

Fonte: Secretarias de Segurança Pública e Defesa Social; Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

 

Preto não tem direito de viver, nem de nascer

 

Como mostra o caso de Kathlen, o ventre dela não estava livre, nem o filho que seu corpo negro carregava. Antes de nascer, ele já era alvo do Estado e das operações policiais que aterrorizam as comunidades do Rio com sua ridícula guerra às drogas. Como muito se fala, na periferia primeiro a polícia atira, depois vai ver quem era; em boa parte das vezes, a história fica esquecida em qualquer gaveta, sem desfecho, sem responsabilidade, sem nada.

Aqui, mais uma vez bato na tecla do simbolismo na morte dessa jovem negra e grávida, porque retrata de uma forma tão brutal e escancarada o racismo, a violência policial, a posse e o controle que o Estado tem sobre esses corpos negros. Quem sabe se seu filho seria um dentre tantas crianças que somem nas periferias após ações das UPPs? O que falta para que essas ações sejam o estopim para uma revolta popular?

E aí, coisas assim suscitam os mais variados questionamentos, como qual seria o desfecho dessa história se Kathlen fosse uma mulher branca num bairro de classe média. Onde está o famigerado grupelho pró-vida, que não está criando caso com a morte de uma gestante e seu bebê? Quando a interrupção da vida vem pelas mãos da polícia e com o aval do Estado, parece que quem tanto fala contra a descriminalização do aborto dorme de cabeça tranquila à noite. Mas ouse, apenas ouse ser uma mulher negra e entrar na luta pelos direitos do seu próprio corpo, que os pró-vida saem da tumba para te crucificar. É com esse tipo de certeza que muitos jovens negros vão dormir todos os dias.

 

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