Igreja sem saída, Igreja em saída: Da Conferência Episcopal de Aparecida para a Assembleia Eclesial do México. Artigo de Paulo Suess

Basílica de Nossa Senhora de Guadalupe, na Cidade do México, onde acontecerá a próxima Assembleia Eclesial | Foto: Wikimedia Commons

08 Junho 2021


"Muitos sonhos do Papa Francisco e de amplos setores do Povo de Deus se tornarão caminhos, provavelmente, só depois de um século. O tempo pode ajudar a discernir melhor entre 'ordem divina' e 'ordem cultural' e a transformar os setores da Igreja sem saída em irmãos e irmãs de uma Igreja em saída. Só o tempo pode curar a Igreja de lacunas coletivas de memória, de falta de coragem, divisões internas e contradições pastorais, por hora ainda consideradas de 'ordem divina', mas que se podem revelar de ordem cultural e histórica", escreve Paulo Suess.

 

Paulo Suess é doutor em Teologia Fundamental, fundador do curso de Pós-Graduação em Missiologia, na então Pontifícia Faculdade Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo, assessor teológico do Conselho Indigenista Missionário - Cimi e professor em várias Faculdades de Teologia no ciclo de Pós-Graduação em Missiologia. Participou do Sínodo dos Bispos sobre Amazônia, como perito. Entre suas últimas publicações, destacamos Introdução à Teologia da Missão (Petrópolis: Vozes, 4a ed., 2015); Dicionário de Aparecida. 40 palavras-chave para uma leitura pastoral do Documento de Aparecida (São Paulo: Paulus, 2007); Dicionário da Evangelii gaudium (São Paulo: Paulus, 2015); Missão e misericórdia - A transformação missionária da Igreja segundo a Evangelii gaudium (São Paulo: Paulinas, 2017); e Dicionário da Laudato si’ – Sobriedade feliz (São Paulo: Paulus, 2017).

 

Eis o artigo. 

 

“E direi que escrevo para tentar que sejamos mais fortes do que o medo do erro ou do castigo, na altura de fazer a escolha no eterno combate entre os indignos e os indignados.”
Eduardo Galeano

 

Na Conferência de Aparecida, o então cardeal Bergoglio de Buenos Aires teve um papel importante na redação do documento final. Como Papa Francisco, Bergoglio incorporou Aparecida na Igreja universal e trouxe o binômio “fidelidade e audácia” para a cátedra de São Pedro. Fiel ao passado e audaz na abertura aos imperativos do futuro, “a Igreja é chamada a repensar profundamente e a relançar com fidelidade e audácia sua missão nas novas circunstâncias latino-americanas e mundiais” (DAp 11).

 

Essa missão é ordem e obra do amor de Deus. Qual é a finalidade dessa missão? A Evangelii Gaudium (EG) aponta para quatro pilares de uma pastoral em chave missionária (EG 33ss):

 

a) Abandonar o cômodo critério pastoral do “fez-se sempre assim” (EG 33).

b)Ouvir a todos” (EG 31). A escuta faz parte de um “processo participativo” que promove “uma comunhão dinâmica, aberta, missionária” (EG 31) e sinodal.

c)Saída de si próprio para o irmão” (EG 179). A Igreja em saída é uma Igreja despojada e com as portas abertas (cf. EG 46). No outro “está o prolongamento permanente da Encarnação para cada um de nós” (EG 179). A “resposta à doação absolutamente gratuita de Deus” (EG 179) é a saída de si como “absoluta prioridade” da vida cristã. “A vida se alcança e amadurece à medida que é entregue para dar vida aos outros. Isto é, definitivamente, a missão” (EG 10).

d) Concentrar-se “no essencial, no que é mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário” (EG 35). “As elaborações conceituais hão de favorecer o contato com a realidade que pretendem explicar, e não nos afastar dela” (EG 194).

 

Quem se propõe a “ser o fermento de Deus no meio da humanidade” (EG 114) está sempre em busca de “respostas que encorajem, deem esperança e novo vigor para o caminho” (ibid.) do povo de Deus. Essa Igreja cumpre a sua missão quando se torna “o lugar da misericórdia gratuita, onde todos possam sentir-se acolhidos, amados, perdoados e animados a viver segundo a vida boa do Evangelho” (EG 114).

Como operacionalizar essa missão? “Sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias”? (EG 20). A Igreja “em saída” encontra obstáculos. A saída exige “prudência e audácia” (EG 47), “humildade social” (EG 240, 288), “coragem” (EG 33, 167, 194) e “ousadia” (EG 85, 129). Audazes são aqueles evangelizadores “que se abrem sem medo à ação do Espírito Santo” (EG 259). Guiada por esse “Espírito da Verdade”, “Defensor” (Jo 14,16.26) da humanidade e “Pai dos pobres”, a Igreja de Aparecida já pensou suas propostas para além das fronteiras do continente latino-americano e assumiu, “por meio de um impulso missionário corajoso e audaz” (DAp 337), sua “missão de advogada da justiça e dos pobres” (DAp 533) do mundo, incluindo entre esses pobres “a nossa Terra oprimida e devastada” (LS 2).

 

 

Ao falar da missão falamos da Igreja, não só como protagonista, mas também como destinatária da missão. As sombras de um mundo fechado são também sombras de uma Igreja fechada, sem saída (cf. FT 9). O jornalista e escritor Eduardo Galeano nos propõe que, “em tempos sombrios, tenhamos talento suficiente para arriscar voar à noite como os morcegos [...] e que sejamos inteligentes o suficiente para ser desobedientes quando recebemos ordens contraditórias com nossa consciência” [2].

Muitas vezes, a Igreja não tem chaves para abrir sequer as próprias portas atrás, das quais guarda seus mistérios e as razões de suas prescrições, nem consegue ir além de meras propostas e abrir portas fechadas do mundo. Em ambas as portas, Jesus está batendo e cobrando a promessa de uma Igreja que se diz “em saída” (EG 20ss), missionária e solidária, encarnada e profética. São portas pelas quais migrantes e moradores em situação de rua, indígenas e afro-americanos, desempregados e famintos querem entrar em países e Igrejas sem preconceitos e nacionalismos, sem fundamentalismo e colonialismo, em fábricas para trabalhar, em supermercados para comer, em hospitais com vagas e em universidades para todos. A chave para transformar os setores de uma Igreja sem saída em setores de uma Igreja em saída faz parte de sua missionariedade, de sua consciência de que tem uma missão permanente, não para converter almas, mas para abrir com força profética portas e caminhos, liderada pela “intimidade itinerante” (EG 23) com Jesus, que é porta e caminho.

 

 

Já há muito tempo antes da pandemia da Covid-19, nosso estilo de vida nos fez arrogantes, alimentando processos de degradação ambiental e social, através da apropriação de “bens de um consumo privilegiado que impede a construção de um mundo para todos” (PPC, n. 86). E a Laudato Si' (LS) do Papa Francisco, amplia esse pensamento do plano social para o ambiental: “O ritmo de consumo, desperdício e alteração do meio ambiente superou de tal maneira as possibilidades do planeta, que o estilo de vida atual – por ser insustentável – só pode desembocar em catástrofes, como, aliás, já está acontecendo periodicamente em várias regiões” (LS 161). Agora essa catástrofe alcançou o mundo inteiro. A pandemia que nos envolve a todos não pode ser corretamente analisada sem o “mecanismo consumista compulsivo” que arrasta as pessoas “pelo turbilhão das compras e gastos supérfluos” (LS 203). Tudo está interligado (cf. LS 16, 91, 117, 138, 240): “a preocupação pela natureza, a justiça para com os pobres, o empenho na sociedade e a paz interior” (LS 10).

 

 

Se não houver conversão e transformação de condutas, modos de produção e de consumo, a pandemia pode ser o aviso prévio de catástrofes maiores, pode ser o “contado, pesado, dividido”, aviso que apareceu na parede do salão de festa durante o banquete do rei Baltazar, quando os cálices sagrados do templo de Jerusalém foram profanados. Às pressas foi chamado o profeta Daniel que decifrou a escrita misteriosa assim: Os dias do reino da luxúria estão contados, a insustentabilidade de seu estilo de vida foi pesada, o território de arrogância será dividido entre seus inimigos (cf. Dn cap. 5). Não se trata de uma interpretação precipitada ou apocalíptica, mas de um futuro possível.

 

A pandemia sufocou o Aleluia em muitas gargantas. Sombras além da pandemia, mas não totalmente desligadas dela, caíram sobre todos os continentes. O “Documento para o Caminho”, do Celam (2021), texto preparatório para a Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe, dá-nos uma seleção dessas sombras, vistas pelo mundo católico: secularização, declínio acentuado do número de católicos, bem como a emigração de muitos deles para outras realidades eclesiásticas, desencontro pastoral nos processos de urbanização, grandes lacunas na assunção das lideranças femininas; escândalos de abusos sexuais de crianças e adolescentes, e portas fechadas para o esclarecimento do clamor silenciado desses crimes.

A Igreja sem saída para os problemas do mundo que ela, muitas vezes, reproduz, por exemplo, nas questões ambientais, do machismo e da colonialidade, está também sem saída para seus próprios problemas, prisioneira de leituras cristalizadas em épocas remotas, como a contradição solúvel entre a afirmação de que “a Igreja vive da Eucaristia” e a escassez de “ministros autorizados para celebrá-la” (ILSA 126c) e na questão do diaconato das mulheres. Uma Igreja pré-moderna, representada por seu setor hegemônico, não vai convencer o mundo moderno da coerência evangélica e relevância mundial de sua proposta missionária. A credibilidade da Igreja geralmente se enfraquece pela rigidez ahistórica de sua ortodoxia.

Qual é a missão dessa Igreja e quais são as propostas missionárias dos diferentes setores? Quais são as palavras-chave, as ações decisivas e as condições prévias de credibilidade que transformam uma Igreja sem saída em uma Igreja em saída, mística, missionária, militante? Em seus discursos, o Papa Francisco está fazendo ressoar com insistência uma palavra programática que considera chave, capaz de abrir portas desnecessariamente fechadas pela tradição: a sinodalidade. Assim, compreende-se a sua proposta de transformar a “VI Conferência Episcopal” que, depois de catorze anos, deveria seguir à V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, de Aparecida, em “Primeira Assembleia Eclesial”. Ela será realizada no México, em novembro de 2021, com participação basicamente virtual do Povo de Deus e com amplas consultas de todos os setores eclesiais.

 

 

Tivemos um ensaio prévio dessa nova metodologia que enfatiza a escuta e participação dos leigos e das leigas no Sínodo para a Amazônia (2019), que juridicamente ainda foi um sínodo de Bispos. Desde o Vaticano II, essa escuta do Povo de Deus procura superar a separação entre a Igreja docente e a Igreja discente, porque todos os batizados participam das três missões de Cristo, profeta, sacerdote e rei. “O consensus fidelium é um critério seguro para determinar se uma doutrina ou uma determinada prática faz parte da fé apostólica.” [3]

Em suas propostas de “Novos caminhos para o ministério eclesial”, no Documento Final (DFSA 93-111) desse Sínodo, os bispos foram fiéis às vozes que ouviram nas consultas dos seus povos e testemunharam: “Em grande parte dessas consultas, o diaconato permanente foi solicitado para as mulheres” (DFSA 103). Foram igualmente fiéis às consultas quando, junto com as comunidades, pediram à Igreja para se abrir e “ordenar sacerdotes homens idôneos e reconhecidos pela comunidade [...], podendo ter uma família legitimamente constituída e estável, para sustentar a vida da comunidade cristã pela pregação da Palavra e pela celebração dos Sacramentos nas áreas mais remotas da região amazônica” (DFSA 111).

Os bispos da Amazônia parecem ter compreendido a crítica do Papa Francisco por ocasião da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), realizada no Rio de Janeiro em 2013, quando se dirigiu à Comissão de Coordenação do Celam: em nossa pastoral ainda somos prisioneiros dos “parâmetros da `cultura de sempre´ [...] anulando a força do Espírito Santo” e “estamos um pouco atrasados no que a Conversão Pastoral indica” (JMJ 28.07.2013). O Documento Final do Sínodo para a Amazônia superou, fiel às consultas prévias, em muitas propostas a “cultura de sempre” e o “atraso na Conversão Pastoral”.

 

 

Ao comparar esse Documento Final do Sínodo para a Amazônia com a Exortação Apostólica Pós-Sinodal “Querida Amazônia”, do Papa Francisco, observam-se algumas reservas face às propostas que vieram da escuta do Povo de Deus. Na videomensagem, em preparação da “Primeira Assembleia Eclesial”, o Papa ainda nos falou ainda: “Todos somos parte desse Povo de Deus, que é infalível `in credendo´ (no ato de sua fé), como nos disse o Concílio”. Mesmo a chave da “infalibilidade in credendo” não abre todas as portas, porque o sínodo tem “normalmente função consultiva”, mas poderia, ao mesmo tempo, “gozar também de potestade deliberativa caso o Romano Pontífice a quisesse conferir”(EC n.3). Na separação do poder consultivo e do deliberativo, persiste a separação da Igreja docente e da discente.

Segundo o Papa Francisco, a escuta sinodal vai além de uma “simples escuta”. Trata-se de uma escuta que “acompanha o caminho pondo-se em viagem com as pessoas” (JMJ, Ao Episcopado Brasileiro, n. 3, 27.07.2013). Mas, nessas viagens, como vimos ao comparar o “Documento Final” dos padres sinodais com a “Querida Amazônia” do Papa, encontram-se novamente portas fechadas, apesar das palavras prometedoras sobre “a pastoral em chave missionária” (EG 33-35).

O que a Igreja experimentou depois do Sínodo para a Amazônia foi o fato de que, também para o Papa Francisco, homem de portas abertas, existem portas fechadas, portas que a chave missionária ainda não consegue abrir, a não ser pelo preço de um cisma. Também a Assembleia Eclesial de outubro de 2021 não vai escapar desse impasse entre a escuta de um sem-número de vozes com suas propostas concretas e a triagem dessas propostas pelos guardas da “ordem divina”.

 

 

Quem não se lembraria desse impasse do conto de KafkaDiante da Lei”: “Diante da Lei está um guarda. Vem um homem do campo e pede para entrar na Lei. Mas o guarda lhe diz que, por enquanto, não pode autorizar lhe a entrada. O homem considera e pergunta depois se poderá entrar mais tarde. – `É possível´ – diz o guarda. – `Mas não agora!´. [...] O homem do campo não esperava tantas dificuldades. A Lei havia de ser acessível a toda a gente.”

Muitos sonhos do Papa Francisco e de amplos setores do Povo de Deus se tornarão caminhos, provavelmente, só depois de um século. O tempo pode ajudar a discernir melhor entre “ordem divina” e “ordem cultural” e a transformar os setores da Igreja sem saída em irmãos e irmãs de uma Igreja em saída. Só o tempo pode curar a Igreja de lacunas coletivas de memória, de falta de coragem, divisões internas e contradições pastorais, por hora ainda consideradas de “ordem divina”, mas que se podem revelar de ordem cultural e histórica.

O Sínodo para a Amazônia e a Assembleia Eclesial do México já fazem parte de um processo rumo à XVI Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos, marcada para outubro de 2023, em Roma. Esse Sínodo, novamente episcopal, terá como tema “Por uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão”, que lembra o terceiro capítulo do Documento Final de Puebla (1979): Evangelização na Igreja da América Latina: Comunhão e Participação. A Igreja vai novamente convocar o Povo de Deus para uma ampla escuta, que não é sinônimo de “participação”. As demandas do Povo de Deus vão superar as autorizações consideradas “possíveis”. A resposta do guarda, no conto de Kafka, sobre a entrada na Lei – “ainda não, talvez mais tarde” –, pode fortalecer o setor fundamentalista e para a catolicidade da Igreja pode ser tarde demais.


Siglas e abreviações:

DFSA - Documento Final do Sínodo para a Amazônia, 2019.
EC - Episcopalis Communio, 2018.
EG - Evangelii Gaudium, 2013.
JMJ - PAPA FRANCISCO, Jornada Mundial da Juventude, Rio de Janeiro, 2013.
ILSA - Instrumentum Laboris do Sínodo para a Amazônia, 2019.
LS - Laudato Si´, 2015.
PPC - Plano Pastoral do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), 3ª ed. 2013.
QA - Querida Amazônia, 2020.

 

Notas: 

[1] Igreja sem saída, Igreja em saída: Da Conferência Episcopal de Aparecida para a Assembleia Eclesial do México. Publicado: Fronteiras (UNICAP), v.4, n.1, jan.-jun. 2021.

[2] Eduardo Galeano, O caçador de histórias, 2017.

[3] Comissão Teológica Internacional, O sensus fidei na vida da Igreja, 2014, n. 3.

 

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