01 Abril 2021
Alternativa como menor aprendiz não é uma realidade para todos os municípios.
A reportagem é de Luiza Muzzi e Equipe LC, publicada por Sul 21, 30-03-2021.
Para crianças e adolescentes que já tinham o trabalho como uma imposição antes da covid-19, as horas diárias debruçadas ao serviço foram intensificadas. Com o crescimento do desemprego, as escolas fechadas e sem terem como assistir às disciplinas online, muitos acabaram pressionados a ocupar o tempo participando de fato do sustento da casa.
No município de Barra do Ribeiro, interior do Rio Grande do Sul, André*, de 14 anos, já ajudava o pai na lavoura no contraturno escolar e aumentou sua carga de trabalho, preenchendo os horários sem as aulas presenciais com serviço para os vizinhos. No mesmo estado, em São Luiz Gonzaga, Danilo*, de 15 anos, dobrou o expediente como ajudante de pedreiro.
Circunstâncias como essas também apareceram na dissertação de mestrado de Lucas Ávila, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (Puc Minas). O pesquisador acompanhou, em 2020, 11 estudantes do 9º ano do Ensino Fundamental, com idades entre 14 e 16 anos, da Escola Estadual José Miguel do Nascimento, uma das unidades escolares com o Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) mais baixo em Minas Gerais para essa faixa etária.
No estudo, Lucas identificou atividades laborais durante a manhã e a tarde em 6 dos 11 entrevistados. Um deles acompanhava o tio no açougue o dia inteiro, o outro passou a seguir o pai como ajudante de pedreiro, em obras das 6h às 15h.
As conversas com os meninos mostraram que o trabalho é mais uma exigência da própria família no aumento da renda do que algo relacionado à autonomia dos sujeitos e à emancipação econômica. “A falta da presença física da escola criou a noção de que aqueles estudantes não estavam ocupados o suficiente durante boa parte do dia”, compreendeu Lucas.
Excessos Brasil afora
As cenas se repetem de Norte a Sul do país. Em Belo Jardim, Pernambuco, o Lição de Casa conheceu Daniel*, de 16 anos. Desde que as aulas foram suspensas, ele já descarregou caminhão de fruta, fez limpeza de loja, atuou com entrega de moto, em frete de mudança e em construção civil.
A milhares de quilômetros dali, no centro do Rio de Janeiro, nossa equipe conheceu Caio*, 16 anos, e Jonas*, 13, vendendo doces pelas ruas. O bico, que acontecia depois da escola, passou a ser feito em tempo integral com o fechamento dos colégios: tinham que complementar a renda de casa.
A percepção de quem está em contato direto com essas famílias é de que o desrespeito aos direitos da infância cresceu com o avanço da covid-19. “Se houvesse acesso ao ensino de qualidade, mesmo em pandemia, isso cessaria muitas outras violências”, observa Rosimeire Pinto Trindade, conselheira tutelar em Belo Horizonte.
Diante da explosão de casos que presencia nas comunidades onde atua, a conselheira teme que eles voltem para a escola – se retornarem – muito mais agitados, agressivos e desinteressados. “Hoje eles estão aí, na rua, soltos no mundo. Os pais viram como é difícil educar um filho em casa”. Há mais de 20 anos na área, Rosimeire acredita que um acolhimento bem feito com uma criança evita “um adulto problemático”.
Aprendiz para poucos
Muitas famílias tiveram a renda impactada e a percepção de quem vai a campo é que não adianta apenas falar “não pode trabalhar”; há que se oferecer alternativas. “Eles podem, desde que seja na idade correta e em uma ocupação que lhes assegure dignidade”, explica Maria Cláudia Falcão, coordenadora do Programa de Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho do Escritório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil.
Quem teve a oportunidade de passar pela aprendizagem profissional, por exemplo, costuma ver a experiência como decisiva para vencer as limitações da própria condição social.

Em um país de dimensões continentais como o Brasil, com mais de 5 mil municípios, a OIT alerta sobre a necessidade de se garantir que essas políticas cheguem na ponta. A possibilidade de trabalho como menor aprendiz não é uma realidade na zona rural ou em cidades de pequeno porte, já que não há, nesses ambientes, quem gere essas vagas.
“O menino da campo tem os mesmos direitos daquele que mora na capital. Como fazer para igualar e dar as mesmas oportunidades aos dois? Por meio da municipalização da política”, argumenta Maria Cláudia, esclarecendo que o Brasil tem um amplo arcabouço legal, mas o desafio é fazer com que as prefeituras estejam fortalecidas para implementar as diretrizes previstas.
“Precisamos agir rápido. Antes já havia um ‘gap’ enorme entre os alunos da escola privada e os da pública, com a pandemia essa distância vai aumentar ainda mais” – Maria Cláudia Falcão, especialista da OIT no Brasil.
Notas
*Os nomes das crianças e adolescentes são fictícios para proteger a identidade deles, mas as narrativas são reais, flagradas no ano passado.
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