Elaborar a catástrofe em um dos epicentros da epidemia

Foto: Grupo Veritas | Fotos Públicas

01 Julho 2020

"Essa situação deixou consequências indeléveis, feridas psicológicas espalhadas por toda a comunidade, mesmo que seja muito difícil falar sobre esse tema. Uma pesquisa recente do instituto Mario Negri mostrou que, de todas as províncias da LombardiaBergamo é aquela em que a pandemia deixou mais consequências de tipo psicológico nas pessoas", escreve Annalisa Camilliin, em artigo publicado por Internazionale, de 24-06-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

Existe uma relação permanente entre a ideia que se tem da morte e a ideia que se tem de si? (Philippe Ariès, História da morte no Ocidente)

 

Os sinos dobram e ninguém anda pelas ruas da pequena aldeia de Alzano Sopra, na província de Bergamo. O portão da igreja de San Lorenzo Martire está aberto com sua fachada austera, mas o pórtico no final da escada de mármore ainda está vazio. Dentro foi montado um altar, sobre o qual foi apoiada uma urna preta, cercada por orquídeas brancas. Antes de entrar, no meio da nave central, existe o dispensador de álcool gel para desinfetar as mãos, nas paredes há avisos que lembram que o uso de uma máscara é obrigatório. O único sinal de uma normalidade que não pode ser retomada exatamente como antes. No altar, está a foto de um homem idoso de cabelos embranquecidos, que olha diretamente para a lente e não sorri; e no buquê de orquídeas, uma inscrição: "Com amor, seus entes queridos". Pouco depois das três da tarde, alguns trabalhadores da Cruz Vermelha vestidos com uniformes de resgate começam a chegar do fundo do vale. Franco Gubinelli, oitenta anos, era um dos responsáveis pela Cruz Vermelha local e morreu por causa da covid-19 em 31 de março de 2020, mas seu funeral só ocorreu mais de dois meses depois, em 12 de junho. O corpo de Gubinelli foi transferido por veículo militar para Florença para ser cremado e depois foi devolvido para a família mais de um mês depois. Enquanto isso, sua filha e netos tentaram lidar com a súbita perda do homem, sem sequer conseguirem fazer uma despedida com um rito fúnebre: um dia Gubinelli foi levado por uma ambulância e poucas semanas depois estava morto. Além da dor, os familiares não conseguem se dar conta do que aconteceu, sem ter podido acompanhar de perto o curso da doença, acompanhá-lo no momento da morte ou até se despedir ao lado do caixão antes de ser levado ao cemitério.

 

Bergamo, Itália (Foto: Wikimedia Commons)

 

Luto suspenso. Esse intervalo de tempo entre a última memória e o funeral é um território suspenso, como um vazio de memória do qual Michela, a filha, não consegue se distanciar. Por esse motivo, ela quis esperar até que as restrições devidas à pandemia de coronavírus terminassem para organizar uma função religiosa na qual amigos, parentes e conhecidos pudessem participar, porque o pai sempre teve um papel de destaque no lugar. "Eu imaginei que muitos quisessem assistir ao seu funeral." Alzano Sopra, Alzà Sura no dialeto de Bergamo, é um distrito de Alzano Lombardo, uma aldeia pré-alpina cercada por montanhas, que se desenvolveu ao longo das margens do rio Serio, na divisa das aldeias de Villa di Serio e Nembro. No distrito, havia algumas plantas industriais importantes, primeiro as fábricas de lã, depois as fábricas de papel Pigna e, por fim, a fábrica de cimento Italcementi, uma das maiores fábricas de cimento da Europa. Sobre essa linha vertical que vai do vale Seriana até a província meridional de Bergamo, seguindo o curso do rio Serio, mas também da Tab, a linha de trem que liga Bergamo a Albino, entre o final de fevereiro e o final de abril de 2020, foi registrado o maior número de mortes por coronavírus na Itália: uma catástrofe que causou a morte de mais de seis mil pessoas. Em algumas cidades desapareceu uma geração inteira de pessoas com mais de 60 anos ainda muito ativa e envolvida na vida social das comunidades. "Buracos foram criados em nossa trama social", explica o prefeito de Alzano Lombardo, Camillo Bertocchi. “As pessoas desaparecidas em muitos casos ainda tinham um papel central em nossa comunidade, eram voluntárias nas associações, nas escolas dominicais. Elas eram figuras de referência que serão difíceis de substituir. Essa é outra emergência que devemos enfrentar agora", continua o prefeito. Para Bertocchi, "a comunidade é uma grande família e a pandemia colocou todos diante de uma realidade muito crua: nós dependemos uns dos outros".

 

 

Em alguns pequenos municípios do vale Seriana e Brembana, as mortes aumentaram dois mil por cento em comparação com o mesmo período do ano anterior. "Evitamos por pouco as valas comuns", afirma ainda em estado de choque Vanda Piccioli, dona de uma funerária em Alzano Lombardo junto com o pai. A mulher parece um rio em cheia enquanto conta o que viveu nos últimos meses. Lágrimas brotam de suas pálpebras e, embora tenha uma longa experiência às costas, diz que ficou chocada com a pandemia. "Às vezes, antes de voltar para casa, para meus filhos, eu parava o carro na beira da estrada e caia no choro, por medo, frustração e cansaço", ela conta. "Vimos coisas que agora queremos esquecer".

 

A imagem das valas comuns é forte, mas provável, quando se pensa que em outros países como os Estados Unidos, dezenas de cadáveres foram enterrados em valas comuns, por exemplo, na ilha de Hart, em Nova York, para lidar com uma mortalidade fora do comum causada pela epidemia da covid-19. “Nossa empresa normalmente realiza 1.400 serviços funerários em um ano; em março, realizamos 1.100 serviços; isso significa que fizemos o trabalho de quase um ano em um único mês. Tínhamos sessenta a oitenta mortos por dia nos momentos de maior trabalho, quando falávamos em entrar ou não na zona vermelha. Os dias 13, 14 e 15 de março foram os dias mais difíceis", lembra Piccioli.

 

Essa presença generalizada da doença e da morte em um contexto de pequenas cidades onde todos se conhecem e a impossibilidade de celebrar os ritos funerários por mais de dois meses deixou em muitos uma sensação de angústia e suspensão, que em alguns casos se transformou em um verdadeiro mal-estar psicológico. "Muitos me diziam que não conseguiam se dar conta do que havia acontecido, que esperavam que os pais, a mãe e o pai voltassem a qualquer momento", relata Piccioli. A morte de um ente querido tornou-se subitamente como um desaparecimento e o processo inclusive psicológico da elaboração do luto para muitos ficou bloqueado. 

 

 

A ausência dos ritos. Até os operadores se viram diante de uma situação nova e difícil: “Os mortos não podiam ser lavados e vestidos, como é o caso em situações normais, porque seus corpos eram considerados infectados. Na maioria das estruturas sanitárias, eles nos eram entregues em um saco preto ou embrulhados em lençóis com desinfetante, e nós também corríamos o risco de sermos infectados". O problema nas primeiras semanas também foi a falta de instalações de saúde e dispositivos de proteção para os funcionários de funerárias. Em muitos casos, os parentes do falecido lhes confiavam objetos ou roupas para colocar dentro do caixão. “Nos sentíamos uma espécie de vínculo entre as famílias e os mortos. Todos nos conhecemos por aqui, então as pessoas me escreviam diretamente, me pediam para fazer uma oração ou levar um objeto para acompanhar a pessoa, senti uma grande responsabilidade", conclui Piccioli. Uma das imagens simbólicas da pandemia na Itália foi o comboio de veículos militares que transportaram dezenas de caixões do cemitério de Bérgamo para outras cidades italianas para cremar os cadáveres, outra imagem que permanecerá gravada na memória são as páginas de obituários no jornal local o Eco di Bergamo. Essas duas fotografias em março acordaram um país que parecia ter subestimado a epidemia.

 


Caminhões militares transportaram corpos das vítimas da covid-19, em Bérgamo, no norte da Itália. Foto: Reprodução

 

Na área de Bergamo, existe uma tradição profundamente enraizada dos obituários no jornal quando alguém desaparece. Mas durante a epidemia havia dezenas de páginas dedicadas a isso, tanto que se tornou um indicador do que estava acontecendo. O editor do jornal Alberto Ceresoli lembra: "Vimos que dia após dia as páginas dedicadas aos obituários aumentavam, chegamos a ter treze páginas de obituários por algumas semanas". Mesmo para os jornalistas, foi chocante: “Encontrávamos nos anúncios as notícias da morte de familiares, amigos e conhecidos.

 

Também houve um envolvimento de nossa parte, mas acho que, de certa forma, a força dos eventos nos ajudou a aguentar, não tivemos tempo de nos demorar sobre a dor que estávamos sentindo". O jornal era contatado todos os dias pelas famílias dos doentes, pelos próprios doentes, pelos prefeitos e decidiu assumir uma função também na elaboração do luto e da memória. “De 30 de abril a 3 de junho, abrimos um memorial na fachada do jornal: projetamos as fotos de cerca de cinco mil pessoas. O povo de Bergamo chegava a qualquer hora, ficava reunido em frente da fachada, traziam flores. Fizemos isso como um ato de atenção, era preciso lembrar aquelas seis mil vítimas. Eu acho que a memória será o combustível que vai permitir a retomada da cidade, não há vontade de esquecer", conclui Ceresoli.

 

Como o historiador Philippe Ariès explicou em seu ensaio História da morte no Ocidente, por mil anos e até a Idade Média, na Europa era normal que os mortos fossem enterrados em valas comuns ou tumbas anônimas junto com outros, nos ossários e capelas das igrejas, mas a partir da era moderna se impôs o culto aos mortos e suas sepulturas, como acontecia na antiguidade. E por pelo menos dois séculos, a ideia de ser sepultado em valas comuns tornou-se um índice da barbárie que se desencadeia durante a guerra ou por uma catástrofe natural, a perda definitiva da própria identidade como indivíduo e como comunidade. Ao mesmo tempo, porém, em épocas recentes a morte foi afastada, expulsa do horizonte dos vivos, tirada da vista e expurgada dos discursos. Mais do que sexo, a morte se tornou um grande tabu. A pandemia e a consequente suspensão dos ritos fúnebres tornaram essa contradição ainda mais evidente e trouxeram à luz a relação não resolvida que as nossas sociedades têm com a morte.

 

 

Metabolizar o luto. Essa situação deixou consequências indeléveis, feridas psicológicas espalhadas por toda a comunidade, mesmo que seja muito difícil falar sobre esse tema. Uma pesquisa recente do instituto Mario Negri mostrou que, de todas as províncias da Lombardia, Bergamo é aquela em que a pandemia deixou mais consequências de tipo psicológico nas pessoas. Quase 50% dos entrevistados disseram ter sintomas de estresse psicológico, 5,3 declarou ter sintomas graves. Maurizio Bonati, chefe do departamento de saúde pública do instituto Mario Negri, explicou que "considerando os dados da região da Lombardia, foi observada uma correlação negativa entre o distúrbio psicológico e a distância do local de residência de uma área considerada vermelha, aquela entre Nembro e Alzano. Quanto mais se afasta dela, com um modelo de propagação circular, mais os sintomas diminuem”. Os piores sintomas foram detectados "até 25 quilômetros da zona vermelha, em particular de grave sofrimento até 15 quilômetros". O risco, porém, é que, na fase em que nos encontramos, rapidamente se vire as costas ao sofrimento e se tente esquecer para poder recomeçar, especialmente do ponto de vista econômico.

 

Mas nada seria mais equivocado, segundo os especialistas. “Alguém gostaria de remover, ou já remove, o drama vivido, brandindo slogans testosterônicos bem conhecidos - do mais urbano 'Bergamo não para!' ao dialetal 'mòla mìa!' (não desista) - que, ao mesmo tempo em que afirmam a legítima propensão a resistir à tragédia, correm o risco de deixar em circulação muitos resíduos mortuários produzidos nesse tempo infausto", explica Paolo Barcella, professor de história contemporânea da Universidade de Bergamo e promotor de um projeto sobre a elaboração do luto e a recuperação da memória que está ocorrendo atualmente on-line com algumas pessoas de Nembro, a cidade no vale Seriana que registrou mais mortes por coronavírus. “O verdadeiro desafio consistirá em estar à altura de superar a catástrofe, metabolizando aqueles resíduos, respeitando os tempos e a necessidade de luto. A falta de elaboração dos dramas vividos é justamente o terreno mais fértil para o surgimento de um sofrimento psíquico fora de controle".

 

Para Barcella, é preciso antes de tudo entender o que acontece quando uma geração inteira, com seus recursos e sua bagagem de memórias, desaparece de uma comunidade, o que acontece quando as crianças veem desaparecerem as vozes que vêm de seu passado e que frequentemente representam sua primeira relação com a história. Para o professor de história contemporânea, é necessário considerar que, em contextos como o da província de Bérgamo, há pouco hábito de recorrer à ajuda psicológica, percebida como um estigma, e, no entanto, devem ser pensadas respostas coletivas para elaborar a catástrofe. “A hostilidade em relação à psicoterapia é um flagelo generalizado, mesmo em setores da população com formação cultural médio-alta, uma vez que é dominante a ideia que cada um deve se bastar. E assim acabam, por um lado, prevalecendo as somatizações, as hipocondrias e as medicalizações dos sintomas e, por outro, as indigeríveis tendências à lamentação e surtos, contínuos e autorreferenciais: tudo para não assumir realmente a responsabilidade pelo próprio limite".

 

Nota:

Isaia Invernizzi, jornalista da Eco di Bergamo, colaborou na redação deste texto.

 

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