11 Mai 2018
A CIA envolve toda a hierarquia nos crimes da ditadura. O comentário é de Clóvis Rossi, publicado por Folha de S. Paulo, 11-05-2018.
Eis o comentário.
Que havia assassinatos praticados pela repressão durante a ditadura do período 1964/85 ninguém tinha o direito de duvidar. Basta lembrar um caso já devidamente esclarecido: o da morte do jornalista Vladimir Herzog, nas dependências do Doi-Codi de São Paulo.
Até aí, portanto, o documento da CIA agora divulgado não chega a ser uma novidade. A novidade, a chocante novidade, é que o porão ficava (também) no andar de cima. No mais alto andar da República, a própria Presidência.
Até que esse excelente pesquisador que é Matias Spektor trouxesse a público o relatório da CIA quase todo o mundo no Brasil acomodou-se à ideia de que, sim, havia torturas, prisões clandestinas, mortes e outras violências mas era melhor acreditar que se tratava de ações de um grupo de celerados de farda, não autorizadas pelo andar de cima.
Agora, a se acreditar no relatório da CIA, vê-se que o general Ernesto Geisel autorizou a execução de “subversivos perigosos”, o que introduz uma pitada aberrante ao que já era uma aberração. Cabia aos torturadores determinar quem era subversivo, primeiro, e perigoso, depois —conceitos subjetivos por natureza, mas levados à paranoia durante a ditadura.
Choca também o fato de que a autorização para matar veio de Geisel, o general que deu início à então chamada abertura lenta, gradual e segura, além de ter tomado uma ou outra iniciativa para coibir os abusos dos porões. Se um general-presidente mais moderado autoriza execuções, arrepia pensar o que diriam seus antecessores, considerados mais duros.
O relatório da CIA torna mais fácil entender porque os militares brasileiros jamais fizeram uma autocrítica institucional, jamais pediram desculpas pelas violações sistemáticas aos direitos humanos. Não podiam: do andar de cima ao porão toda a hierarquia foi cúmplice de um sistema abominável.
Ao contrário da prestação de contas, cobriram-se com uma Lei de Anistia, que teoricamente valia para os crimes de um lado e de outro. Não é bem assim: os “subversivos” —perigosos ou não— foram punidos. Com a morte, com a tortura, com o banimento, com a prisão, com o exílio, com a perda de direitos políticos.
Entre os militares, ao contrário, só um ou outro foi punido. Pior: neste ano eleitoral, pela primeira vez desde a redemocratização, há um candidato que reivindica a ditadura (e a tortura) e há um setor do público que pede a volta dos militares.
É uma vergonha, mas é o Brasil que tivemos e que temos, talvez por nunca ter sido passado a limpo.
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E o porão era no andar de cima - Instituto Humanitas Unisinos - IHU