18 Abril 2018
"Estamos longe das oposições binárias entre modernidade e tradição, secularismo e clericalismo, democracia e totalitarismo, oposições amplamente focalizadas pelos meios de comunicação. As revoluções tecnológicas e antropológicas contemporâneas (especialmente as manipulações genéticas) tornam possível uma transgressão de natureza completamente diferente: a que acaba desconstruindo o princípio genealógico que funda a humanidade do homem. Essas inovações pretendem tornar o homem o senhor e criador de si mesmo. Elas têm por finalidade apagar sua dívida com a tradição e a transmissão da humanidade aprendida", escreve Jean-Claude Guillebaud, jornalista, escritor e ensaísta, em artigo publicado por La Vie, 08-03-2018. A tradução é de André Langer.
Segundo ele, "uma formidável “descivilização” torna-se imaginável. Para evocar esse tipo de perigo, Julia Kristeva escreveu que “a gestão técnica da espécie humana” nada mais é do que a outra face do obscurantismo".
Eis o artigo.
Uma confidência: na década de 2000, eu li com atenção e fiz anotações sobre os livros do grande jurista e psicanalista Pierre Legendre. Aprendi muito com suas reflexões, às vezes difíceis, mas que valem o esforço. Hoje, estou impressionado com o quanto o seu pensamento era clarividente, até mesmo profético.
Para Legendre, o pano de fundo romano-judaico-cristão (e grego), que no final do século XVI deu o impulso necessário a essa longa sequência ocidental, degradou-se em um “gerenciamento generalizado”, cujo conteúdo cultural é quase nulo. Em sua pressa utilitarista, o chamado “gerenciamento generalizado” livrou-se das principais questões, entre as quais está a seguinte: o que faz o homem manter-se em sua humanidade? Nós somos assim “confrontados com o risco do irreparável: a quebra dos dispositivos que mantêm o sujeito humanizado”. Na realidade, podemos falar em delírio tecnocrático.
As novas recusas que fazem emergir em todas as partes do mundo a perspectiva de tal “ruptura” – e da qual os fundamentalismos terroristas são a expressão máxima – estão testemunhando um temível endurecimento planetário. “A economia tornou-se a nova e única razão de viver”. Estamos muito além dos confrontos religiosos e confessionais. Sob a frivolidade da mensagem gerencial, consumista, propagandística e distraidora, Legendre acredita poder distinguir um novo perigo: desta vez, o obscurantismo estaria emanando do “Centro”, isto é, do Ocidente.
Estamos longe das oposições binárias entre modernidade e tradição, secularismo e clericalismo, democracia e totalitarismo, oposições amplamente focalizadas pelos meios de comunicação. As revoluções tecnológicas e antropológicas contemporâneas (especialmente as manipulações genéticas) tornam possível uma transgressão de natureza completamente diferente: a que acaba desconstruindo o princípio genealógico que funda a humanidade do homem. Essas inovações pretendem tornar o homem o senhor e criador de si mesmo. Elas têm por finalidade apagar sua dívida com a tradição e a transmissão da humanidade aprendida.
Para Legendre, qualquer definição do ser humano é baseada em um sistema de ficções e discursos moldados pelo direito e pelas instituições. Essas ficções são transmitidas, à imagem da linguagem, e permitem instituir a humanidade em sua diferença com a animalidade. Nós sempre herdamos uma humanidade estabelecida especialmente pelo direito. Em base a esse feixe de luz escura que o Ocidente agora emite, Legendre fala do “colapso do arcabouço normativo”. Agora, esse arcabouço que é imprudentemente realizado para desmontar é “a casa da humanidade”. Hoje, ninguém sabe o preço que teremos que pagar por essa devastação acelerada da própria sociedade.
À sua maneira, Legendre descreve o duplo fenômeno da dessimbolização e da dissociação que age profundamente em nossas sociedades desenvolvidas. Uma formidável “descivilização” torna-se imaginável. Para evocar esse tipo de perigo, Julia Kristeva escreveu que “a gestão técnica da espécie humana” nada mais é do que a outra face do obscurantismo. No momento em que estamos nos preparando para revisar as chamadas leis “bioéticas”, tomara que nos lembremos das advertências de Legendre.
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O delírio tecnocrático - Instituto Humanitas Unisinos - IHU