18 Janeiro 2018
Em dezembro de 2016, uma ação militar da coalizão liderada pela Arábia Saudita nos arredores de duas escolas do Iêmen deixou ao menos dois mortos e dezenas de feridos. Em fevereiro de 2017, uma bomba disparada contra uma zona rural iemenita feriu ao menos duas crianças.
Em comum, esses dois episódios da guerra civil em curso desde 2015 no país asiático têm o fato de as munições empregadas serem bombas cluster de fabricação brasileira, segundo a ONG Human Rights Watch.
Os casos são mencionados no capítulo brasileiro do relatório anual de direitos humanos da organização não governamental, divulgado nesta quinta-feira.
A reportagem é de Paula Adamo Idoeta, publicada por BBC Brasil, 18-01-2018.
As bombas cluster (ou bomba de fragmentação) são armas que, quando disparadas, se abrem e dispersam. Assim, criam centenas de munições menores, ampliando seu poder de alcance e atingindo uma área equivalente a diversos campos de futebol, segundo a Coalizão de Munições Cluster (CMC, na sigla em inglês).
"O uso dessa munição foi documentado 18 vezes no Iêmen e, em duas delas, analistas constataram que a procedência das armas era brasileira", diz à BBC Brasil Maria Laura Canineu, diretora brasileira da Human Rights Watch.
As bombas cluster são proibidas por um tratado internacional de 2008, que tem a adesão de 102 países, mas não do Brasil.
Impacto semelhante a mina
Às críticas a essa munição se devem a seu impacto similar ao de uma mina terrestre, explica o Cristian Wittmann, professor da Universidade Federal do Pampa (Unipampa) e integrante do CMC.
Isso porque suas submunições podem não detonar logo de imediato, mas ficam escondidas e muitas vezes são acionadas acidentalmente anos depois.
"Ela tem efeito humanitário grave mesmo quando não explode no primeiro impacto, porque contamina as áreas afetadas durante décadas (após seu disparo). No sul do Líbano, crianças ainda encontram munições cluster lançadas na guerra de 2006", afirma Wittmann.
Canineu diz ainda que essas armas se espalham de forma "indiscriminada" ao serem disparadas, o que faz com que aumente a chance de que atinjam alvos civis, em vez de apenas militares.
Segundo a convenção internacional de 2008, "restos de munições cluster matam ou mutilam civis, incluindo mulheres e crianças, obstruem o desenvolvimento econômico e social, impedem a reconstrução pós-conflito, retardam o regresso de refugiados e outras consequências que podem persistir por vários anos após seu uso".
Hoje, segundo a CMC, o Brasil é um dose 34 países que produzem ou produziram bombas cluster em algum momento após a Segunda Guerra Mundial.
Um projeto de lei do deputado Rubens Bueno (PPS-PR) prevê a proibição tanto da produção quanto do uso desse tipo de arma no Brasil. O projeto aguarda, desde 2012, parecer na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa da Câmara.
Segundo Wittmann, há poucas informações públicas a respeito da produção e comercialização brasileiras dessas bombas - embora, vale ressaltar, o país nunca tenha usado esse tipo de munição.

Menino ao lado de bomba cluster na Síria, em 2013; Brasil não é signatário de tratado internacional que proíbe as bombas cluster | Foto: Anistia Internacional
Empresa brasileira se posiciona
Atualmente, a única empresa da qual se tem conhecimento que produz essas munições é a Avibras, localizada no interior de São Paulo.
À época que o uso de munição brasileira foi denunciado no Iêmen, a empresa não reconheceu como sendo seus os artefatos descobertos no país árabe.
Em nota à BBC Brasil nesta semana, a Avibras afirma que seus produtos de defesa "atendem aos princípios humanitários preconizados pelos acordos internacionais e contam com dispositivos de autodestruição, (...) que não geram material ativo remanescente no solo que possa vitimar inocentes após os combates".
Canineu, da Human Rights Watch, diz no entanto que o tratado internacional sobre o tema também engloba as armas com poder de autodestruição, uma vez que há documentação de altos índices de falhas técnicas nessas munições.
A Avibras agrega que "todas as exportações da companhia são autorizadas pelos órgãos públicos competentes" e que "inadequadas imputações aos produtos da empresa podem ter origem no desconhecimento dos fatos, refletir disputas comerciais em um mercado de acirrada competição ou simplesmente revelar preconceitos contra a indústria de defesa".
Questionada a respeito de quais países são destino de suas vendas, a empresa afirmou que "os principais compradores de produtos de defesa da Avibras são governos de países com os quais o Brasil mantém relações diplomáticas e para os quais não haja nenhum embargo. Todas as exportações são autorizadas e aprovadas pelo governo brasileiro".
O Itamaraty foi consultado pela reportagem, mas não respondeu até a noite desta quarta-feira.
Sistema judicial
Para Canineu, apesar de o Brasil não usar diretamente essas bombas, o fato de produzi-las e vendê-las o coloca "na contramão" da comunidade internacional e o torna "responsável" pelas mortes causadas pelo armamento.
O relatório da ONG divulgado nesta quinta-feira também faz críticas ao país por seus "problemas crônicos no sistema de Justiça criminal", como execuções extrajudiciais e maus-tratos cometidos por policiais, e pelas más condições dos presídios brasileiros.
"A superlotação e a falta de pessoal tornam impossível que as autoridades prisionais mantenham o controle de muitas prisões, deixando os presos vulneráveis à violência", diz o relatório.
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Relatório internacional condena exportação pelo Brasil de bombas usadas contra civis no Iêmen - Instituto Humanitas Unisinos - IHU