Oração eucarística do século XXI

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20 Janeiro 2017

Um dos maiores desafios litúrgicos da Igreja no século XXI é descobrir como fazer liturgia de um modo que seja significativo às pessoas em um mundo pós-Darwin, pós-Einstein e pós-Hubble.

O artigo é de Thomas Reese, publicada por National Catholic Reporter, 12-01-20-17. Tradução de Isaque Gomes Correa.

A oração litúrgica tradicional, baseada no imaginário bíblico, pressupõe uma cosmovisão pré-científica onde a Terra é o centro do universo e onde o mundo foi criado rapidamente e de modo perfeito. Tudo era maravilhoso até que Adão pecou.

Na realidade, o universo tem cerca de 13.8 bilhões de anos, com a vida orgânica aparecendo a aproximadamente 3 bilhões de anos atrás, e os seres humanos evoluindo mais recentemente em termos relativos. Em vez de aparecer em um paraíso idílico, os humanos rastejaram pela lama em luta, arranhando uma existência em um ambiente brutal e altamente competitivo.

O culto litúrgico atual requer que estacionemos nossas mentes científicas à porta da igreja e adentremos o mundo pré-científico de nossos ancestrais quando rezamos. Esta existência esquizofrênica não é viável no longo prazo. Como fazer liturgia com as pessoas tendo uma “cosmovisão quantum-cosmológica, desenvolvimental-evolucionista”, pergunta-se o padre jesuíta Robert Daly, que tem pensado sobre a questão há vários anos.

Não é uma tarefa fácil. Na verdade, ela faz parte de uma tarefa mais ampla onde os teólogos tentam descobrir como tornar inteligível o cristianismo às pessoas do século XXI.

Daly encontra inspiração para a sua obra em teólogos como Elizabeth Johnson (Ask the Beasts: Darwin and the God of Love), Dawn Nothwehr (Ecological Footprints: An Essential Franciscan Guide for Faith and Sustainable Living) e Dennis Edwards (Partaking of God: Trinity, Evolution, and Ecology).

Aqui temos teólogos lidando com questões antigas de cristologia, eclesiologia e soteriologia no contexto da ciência contemporânea.

Estes teólogos e teólogas estão imitando os grandes teólogos do passado – Agostinho e Tomás de Aquino – que empregaram o pensamento intelectual de suas épocas para explicar o cristianismo a seus contemporâneos. Agostinho usou o neoplatonismo, e Aquino usou o aristotelismo porque estes representavam as cosmovisões intelectuais de seus tempos. Os teólogos de hoje que usam a ciência e o pensamento contemporâneo são bem tradicionais; estão simplesmente seguindo as pegadas de Agostinho e Aquino.

Mas, de certo modo, o desafio de Daly é maior porque o que ele quer fazer vai impactar não só o pensamento do curioso intelectual, mas também a experiência vivida de culto de milhões de cristãos. Se você acha que as guerras tradutórias foram difíceis, então ainda não viu nada.

Daly reconhece este desafio e diz que seu “objetivo tem sido formular uma oração em que tanto as pessoas confortáveis em uma cosmovisão pré-moderna, pré-crítica e pré-científica quanto as pessoas confortáveis em uma cosmovisão quantum-cosmológica, desenvolvimental e evolucionista podem alegremente rezar juntas”.

Ele primeiramente apresentou o seu pensamento em artigo de março de 2015 na revista Worship, intitulado “Ecological Euchology”. “Euchology”, ou Euchologia, é um livro da Igreja Ortodoxa que contém os ritos eucarísticos e outros materiais litúrgicos.

Incluído neste artigo consta um esboço de uma oração eucarística pensada para o culto contemporâneo. Esse esboço não incluía um “prefácio”.

Na semana passada, o Pe. Daly apresentou uma versão revisada com prefácio no Seminário sobre Oração Eucarística e Teologia, da Academia de Liturgia Norte-Americana – NAAL (na sigla em inglês), que se encontrava em Washington, DC. Embora a oração tivesse sido discutida no seminário nos últimos três anos, ele reconhece que era ainda um esboço.

“A sua linguagem, o seu imaginário e seu ritmo precisam ser aprimorados pela experiência orante e proclamada de muitas bocas e comunidades”, ele escreve. “Ela trai a estranheza de uma primeira tentativa de rezar em uma linguagem que não só é tradicionalmente bíblica em sua alusividade, mas que também que seja sensível ecologicamente”.

Ela é “no mínimo referencialmente expressiva dos pensamentos e sentimentos de um cientista moderno”, mas, ao mesmo tempo, não tão importuna “a ponto de distanciar aqueles não plenamente à vontade neste mundo de pensamento”.

Em suma, Daly tentou escrever uma “música poética, trinitária de louvor e ação de graças expressando os sentimentos e as aspirações de uma fé judaico-cristã que esteja igualmente confortável com uma cosmovisão quantum-cosmológica, desenvolvimental-evolucionista”.

A oração eucarística de Daly inclui todos os elementos clássicos tradicionais de uma oração eucarística modelo na tradição Basil/Crisóstomo: Diálogo introdutório, prefácio, Sanctus, anamnesis, narrativa institucional, aclamação, epiclesis, preces solenes e doxologia.

Após o diálogo introdutório (“O Senhor esteja convosco...”), ele começa com as palavras de louvor no prefácio:

Pai, nós te louvamos, com todas as tuas criaturas
grandes e pequenas
desde as galáxias imensuráveis
até a menor partícula.
Todas elas decorrem de tua mão.
Repletas com tua presença,
são sinais de teu amor eterno:
Louvado seja!
T. Louvado seja!

Desde a primeira frase, a oração eucarística vai além de um mundo centrado na Terra e visível para incluir “galáxias imensuráveis” e a “menor partícula”. Estas são vistas como “sinais de seu amor eterno” e a congregação responde com “Louvado seja o Senhor!”. A congregação louva não por si mesma, mas “com todas as vossas criaturas”.
Com um foco trinitário, a oração passa a focar Jesus e o Espírito:

Palavra de Deus, Jesus, nós te louvamos.
Através de ti, todas estas coisas foram feitas
e têm o seu ser.
E quando assumiste tua forma corporal
no ventre de Maria nossa mãe,
adentraste o caos de nossas vidas
para trazer-nos a beleza de teu amor:
Louvado seja!
T. Louvado seja!

Espírito Santo, nós te louvamos,
que soprou o caos primordial,
falou a nós através das vozes dos profetas,
pairou sobre o ventre de Maria
e nos fez templos de teu amor:
Louvado seja!
T. Louvado seja!

O indivíduo cientificamente letrado percebe referências à “teoria do caos” nesta seção da oração eucarística, mas não de um modo que marginaliza o não letrado cientificamente.

Após o Sanctus, a oração continua com mais imagens do entendimento contemporâneo da Criação:

Onde certa vez nada era, o teu amor
trouxe matéria para dentro do ser e movimento,
assim criando o próprio tempo,
e incontáveis galáxias, cada uma com suas incontáveis estrelas,
e, para preparar uma casa para nós,
delicadamente circulando em torno de uma estrela singular,
este pequeno globo, a nossa mãe terra.

E sobre este globo, éons mais tarde,
geraste, infinitamente pequenos, mas inexoravelmente crescentes,
os começos da vida que compartilhamos com tudo o que vive.

E então, passados bilhões de anos,
passados éons de desenvolvimentos aparentemente aleatórios,
passados o aparente caos de incontáveis extinções
– mas surgindo destas mortes sempre novas formas de vida –
Tua Palavra soprou não só vida, mas Espírito também
para dentro do homem e da mulher, tua imagem e semelhança.

Portanto, a criação do homem é posta no contexto da Criação não somente das galáxias e estrelas, mas da matéria e do próprio tempo também. Tampouco o homem aparece em algum Éden idílico.

Passadas outras incontáveis gerações, com amor nos viste crescer,
tornando-te parte da vida-morte-vida
de tudo o que vive e cresce na terra,
até, finalmente, fazer uma aliança arco-íris conosco
levando-nos a conhecer-te mais claramente como o nosso Criador
e nós mesmos como o teu povo.

Somente então a oração eucarística nos conecta a Abraão, aos profetas e, por fim, a Jesus, “nascido do Espírito e do SIM de Maria, para entrar no caos de nossas vidas terrenas...”.
Após a narrativa institucional, a aclamação é endereçada ao Pai, e não a Jesus, o que permite que a congregação não apenas recorde a morte e ressureição de Jesus, mas também oferte ao Pai o sacrifício desta Eucaristia:

Lembrando tua cruz e morte,
e cientes de tuas palavras de amor,
nós te louvamos e agradecemos, ó Senhor,
e lhe ofertamos este pão e taça,
enquanto nos ofertamos,
até ele voltar novamente.

A oração continua com o chamado do Espírito na epíclese:

Cientes, então, de teu dom amoroso,
e em louvor impressionante do caos-beleza
da constante morte para a vida
deste teu globo jardim,
e cientes também de teu mandado a abençoar e a guardá-lo
com o mesmo cuidado amoroso com o qual
tu nos abençoas e nos guardas, oramos:

Mande sobre nós e sobre estes dons
porções plenas de teu Espírito Santo
com o qual tua Palavra e antes de todos os tempos
criaste as galáxias
sopraste sobre as águas primordiais,
veio de encontro aos profetas
e pairou sobre o ventre de Maria.

O Espírito nesta epíclese é o mesmo Espírito que esteve presente na Criação e que tem estado ativo através dos tempos. Na oração, a congregação pede que este mesmo Espírito possa nos ajudar a “conhecer o nosso lugar neste teu universo, sobre esta tua terra, e nesta tua Igreja”. Isso tudo “para que no e através do nosso viver, morrer e ressurgir com o teu Filho, possamos aprender a cultivar e guardar esta terra com o mesmo amor com o qual nos cultivaste e guardaste”.

Essa oração eucarística é uma primeira tentativa de imitar os primeiros padres da Igreja que escreveram orações semelhantes para se enquadrarem em seus contextos históricos e culturais. Daly entende que o papel dos liturgistas não é simplesmente aprender com o passado, mas também falar ao presente em oração e em música de um modo que responda à nossa cosmovisão transformada.

A oração, como Daly reconhece, não é perfeita. Para ler a versão completa, em inglês, clique aqui. Por exemplo, considero impossível proclamar a frase que começa “Onde certa vez nada era...”. Um dos participantes do seminário sugeriu que esta fosse dividida em frases menores.

Um outro questionou o direcionamento da oração no prefácio e na doxologia à Trindade, em lugar de somente ao Pai, como é tradicional nas orações eucarísticas desde o século V em diante. A maior parte das orações eucarísticas são dirigidas ao Pai, através do Filho, no Espírito. Alguns acharam desconcertante romper com esta tradição.

Os comentários mais interessantes vieram dos membros do seminário da NAAL sobre liturgia e meio ambiente que se juntaram ao debate.

Um deles sugeriu que a oração reflita a ideia de que a encarnação começou com o Big Bang e que empregue a linguagem da energia quando falar do Espírito.

Um outro sugeriu que quando empregar o pronome “nós”, a oração possa incluir não só os humanos, mas toda a Criação. Da mesma forma, o Espírito seria descrito com habitando em toda a natureza, não somente os humanos. Um ainda sugeriu que quando falar do Pai que envia os patriarcas e profetas para nos ensinar, a oração também recorde o envio de gafanhotos, inundações e outros fenômenos naturais.

Um outro participante sugeriu que a oração fosse mais explicitamente ambiental do que basicamente científica. Em outras palavras, que ela reflita o pensamento de ambientalistas como John Muir ao invés de somente cientistas como Darwin.

Apesar das sugestões, todos os participantes concordaram que esta é uma tentativa admirável de criar uma oração eucarística para o século XXI, uma oração que pode ressoar entre os letrados cientificamente e os ambientalmente sensíveis.

Membros do seminário igualmente reconheceram que oração alguma pode incluir tudo sem se tornar demasiado longa e demasiado complicada. Ao invés de tentar colocar tudo dentro de uma oração, melhor seria ter uma série de orações.

Imediatamente após o Vaticano II, muitos celebrantes se puseram a escrever as suas próprias orações eucarísticas com pouco conhecimento do que estavam fazendo. Ao suprimir estes excessos, o Vaticano também encerrou experimentações mais inteligentes. Os liturgistas concluíram que era perda de tempo trabalhar em novas orações eucarísticas que jamais seriam aprovadas. A criatividade continuou em igrejas protestantes, mas não no catolicismo.

Com o papado de Francisco, talvez a Igreja esteja pronta para um período de experimentação limitada por profissionais litúrgicos trabalhando em congregações dispostas a ser como os programas/aplicativos “beta” para novas práticas litúrgicas.

Isso permitiria a criatividade, a testagem e ajustes antes que uma prática renovada esteja disponível a toda a Igreja.

Enquanto isso, os profissionais litúrgicos estão fazendo o trabalho lento de pensar sobre e discutir o como fazer liturgia no século XXI.

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