No Equador, a oposição de esquerda “ao governo que presume ser o que não é”. Entrevista com Alberto Acosta

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Por: Jonas | 05 Fevereiro 2013

No Equador, a “revolução cidadã” é um dos símbolos das experiências “pós-neoliberais” sul-americanas e o governo de Rafael Correa é, frequentemente, considerado uma referência por numerosas esquerdas europeias. Neste país, as próximas eleições presidenciais acontecerão no dia 17 de fevereiro de 2013, numa conjuntura política em que a oposição conservadora foi incapaz de apresentar uma candidatura única e o governo mantém uma vantagem muito forte nas pesquisas, mesmo com um considerável descenso, após seis anos no poder.

Há dois anos, fizemos um primeiro balanço crítico da experiência equatoriana por meio de uma conversa com o intelectual e ex-presidente da Assembleia Constituinte, Alberto Acosta. Agora, ele é candidato à presidência pela Unidade Plurinacional das Esquerdas, coalizão que agrupa uma dezena de organizações que agregam desde a centro-esquerda, esquerda radical, entre elas Pachakutik (partido indígena considerado o braço político da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador, CONAIE) e o Movimento Popular Democrático, de origem maoísta, que conta com uma destacada fundação sindical (sobretudo no ensino).

Agora pudemos continuar essa conversa e o debate fraternal, que havíamos iniciado, para compreender os processos em curso no campo político das esquerdas equatorianas.

A entrevista é de Franck Gaudichaud, publicada na revista Viento Sur, 01-02-2013. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Alberto, estamos em pleno processo político eleitoral nacional no Equador, pois as eleições presidenciais acontecerão no próximo mês de fevereiro. Você foi uma figura de destaque da Aliança País, ministro congressista, presidente da assembleia constituinte, e agora aparece como cabeça de uma candidatura de oposição de esquerda ao governo do presidente Rafael Correa. O que foi que aconteceu? Como explicar esta situação e seu próprio percurso político?

Na atualidade, o governo de Rafael Correa se assemelha a um mau motorista de ônibus... desses que coloca direções à esquerda, quando na realidade vira à direita. O governo de Correa não é mais um governo das esquerdas, muito menos revolucionário e menos ainda dos “cidadãos”. Este é um governo que perdeu sua bússola pelo caminho e que em máxima expressão de sua contradição, agora pretende destroçar uma das maiores conquistas deste processo: a Constituição de Montecristi, aprovada pela ampla maioria do povo equatoriano, em setembro de 2008. Neste sentido, cabe destacar que as violações à Constituição do Equador, por parte do governo do presidente Correa, são múltiplas e eu poderia passar horas falando sobre elas.

O próprio presidente da República, que quatro anos atrás defendeu a Constituição, qualificando-a como “a melhor do mundo”, e que segundo ele duraria “trezentos anos”, agora aponta que esta Constituição possui muitos direitos, que é “protecionista” e que, portanto, precisa ser modificada. Esta ladainha não lhe parece semelhante ao discurso que os governos chamados liberais ou neoliberais expressaram em outras ocasiões, em relação às leis que os condicionavam, pois garantiam os direitos dos cidadãos ou dos consumidores? Correa se converteu em alguém que já não almeja proteger a Constituição que ele mesmo ajudou a elaborar e aprovar. Esse é o sinal da evolução do governo equatoriano.

Porém, no plano internacional e nas fileiras de grande parte das esquerdas mundiais, em particular na França, ele é descrito como um governo progressista consequente, em ação. O governo da “revolução cidadã” aparece como um governo de mudança social, que poderíamos qualificar do tipo “pós-neoliberal”. E é correto – de acordo com o que pude comprovar aqui, em Quito, e no resto do país – que aconteceram avanços concretos em várias temáticas: mudanças fiscais progressivas, reformas sociais reais, programas públicos destinados aos setores mais pobres, grandes programas de construção de infraestruturas, em especial nas regiões preteridas até o momento (como em parte da costa ou da Amazônia)...

As reformas que você menciona estão corretas. E se compararmos o governo de Correa com os governos anteriores, chegaremos à conclusão de que este é um melhor governo do que aqueles que tínhamos antes, que certamente foram tão ruins, que esta comparação é, em si mesmo, quase um insulto. Se você me perguntar se o governo de Correa é melhor do que o de Gustavo Noboa, de Lucio Gutiérrez ou de outros do mesmo estilo, eu direi que sim, mas também vou lhe perguntar: qual o mérito que existe nisto? Nós, que nos comprometemos com a proposta de mudança, que inicialmente o projeto da Aliança País propunha, não almejávamos apenas um governo melhor, queríamos um governo que transformasse as estruturas do país, fazendo uma verdadeira revolução democrática, baseada na participação cidadã. Na atualidade, a Unidade Plurinacional das Esquerdas pensa um governo no qual as decisões sejam tomadas de forma democrática, participativa, acordada, e não um governo de estilo personalista, autoritário ou caudilho, que é isso que temos agora.

Em revistas acadêmicas e sob a pluma de alguns autores da esquerda crítica a Correa, muitas vezes, lê-se que este governo teria “traços autoritários”. Em que sentido é realmente justificável afirmar isso, se a “revolução cidadã” parece ser antes de qualquer coisa um processo eleitoral democrático, que, inclusive, abriu algumas instâncias de consulta da população?

É verdade que existiram muitos processos eleitorais e referendos neste período, mas as eleições não garantem a democracia. Lembremos que, muitas vezes, os tiranos e ditadores recorreram às eleições e aos plebiscitos e apelaram para este tipo de legitimação institucional. Portanto, e longe de questionar os processos de votação protagonizados pelos cidadãos no Equador, digo que a democracia entendida desta forma teria que avaliar também se os dissidentes possuem a mesma abertura para informar os cidadãos sobre suas posições, da maneira como o governo possui, e se a utilização do aparato do Estado, para as campanhas eleitorais por parte do partido de governo, não é uma deslegitimação do processo, etc.

Nossa aposta vai além da democracia representativa e de plebiscitos, em que se utilizam desproporcionalmente as ferramentas do Estado para intoxicar a informação destinada aos cidadãos e cidadãs. Para ser sincero, em nenhuma parte deste governo ainda há espaços reais de tomada de decisões junto aos cidadãos. Por isso, nós nos articulamos por uma democracia radical. Talvez você diga que sou utópico, mas se vivesse aqui o ano todo, verificaria que a propaganda governamental é uma farsa. Como pensadores antifascistas da escola de Frankfurt, como Adorno ou Horkheimer, teorizavam há muitos anos: “a propaganda manipula os homens; ao gritar “liberdade”, contradiz a si mesma”. Em resumo, a falsidade é inseparável da propaganda. É precisamente esta situação que permite que muitos dos direitos constitucionais não sejam respeitados, inclusive os mais básicos, seja o direito ao trabalho ou o direito à resistência, ambos reconhecidos em nossa Constituição.

Para oferecer alguns exemplos em relação à violação do direito ao trabalho, posso apresentar-lhe como a partir da emissão do decreto presidencial 813, que estabelece “renúncias obrigatórias” na função pública, habilitou-se uma lógica perversa de demissões, que já deixou muitos funcionários fora do serviço público e que continuará servindo como ferramenta para despedir mais trabalhadores. Nem os neoliberais se atreveram a proceder com demissões intempestivas, de funcionários públicos, deste jeito. Da mesma forma, o presidente Correa, há pouco mais de um ano, vetou a lei do comerciante varejista, que garantia para todos os comerciantes varejistas – que são a maioria no país – seguridade social e outros benefícios. Enquanto isso, tanto o governo [de Correa], como os governos municipais, continuam perseguindo os trabalhadores informais nas ruas e apreendendo os produtos que vendem, ao contrário do que diz a Constituição.

No que diz respeito ao âmbito das dissidências, hoje há mais de duzentos líderes populares nos bancos dos tribunais, acusados, inclusive, por “sabotagem” e “terrorismo”, utilizando-se leis da época dos governos oligárquicos, num país onde não há terrorismo. O direito à resistência ficou proscrito e nas prisões equatorianas há mais de uma dezena de jovens detida sem justificativas legais. Elementos como estes, que destaco, mostram que já não falamos de um governo revolucionário, eu atreveria a dizer que nem sequer de esquerda.

De que tipo de revolução estamos falando? Uma vez que também violam, de forma sistemática, os direitos relacionados com a autonomia dos governos locais e com a descentralização. Somos absolutamente favoráveis ao “retorno do Estado”, depois de ter ficado reduzido em sua mínima expressão, nas quase três décadas de neoliberalismo, mas não concordamos que este Estado minimize o trabalho das prefeituras e dos municípios, que estão sendo esmagados pelo governo central, por um novo processo de centralismo. O governo de Correa está plasmando um tipo de Estado hobbesiano que atenta contra os direitos cidadãos. Um modelo de Estado que sentencia, entre outras barbaridades, que o cidadão seja proibido de tomar uma cerveja ou uma garrafa de vinho nos dias de domingo. Para você, feitos desta natureza definem o Estado como revolucionário? Para mim, ao contrário, dá a sensação de que são próprios de um governo, em essência, bastante conservador.

Então, para você e a aliança que representa nestas eleições, este governo teria deixado de ser um governo de “esquerdas”?

Todos os sábados, nós, equatorianos, já nos acostumamos a ver um presidente cantar, junto com seus ministros, o “Hasta siempre Comandante Che Guevara”, mas também vemos que, enquanto isso, não se faz a reforma agrária, apesar de nossa Constituição proibir os latifúndios, o monopólio e a privatização da água. O próprio presidente da República repetiu, em inumeráveis ocasiões, que ele não acredita na reforma agrária, destacando – como poderia fazer qualquer dono de fazenda equatoriano – que repartir a terra é “repartir miséria”. Cabe indicar que o índice de GINI, da concentração de terra no Equador, é de 0.81. A concentração da água é ainda muito mais acentuada (os camponeses representam 86% dos usuários da água de irrigação, os latifundiários representam menos de 1% das unidades produtivas agrícolas, e controlam 64% da água de irrigação). Ou seja, estamos falando de um país em que a terra e a água se concentram em pouquíssimas mãos, enquanto a miséria indígena – majoritariamente camponeses – é superior a 50%.

Tudo o que expresso, não pretende negar a existência de melhoras em determinados aspectos. Porém, é necessário levar em conta que este governo é o que possui o maior número de receitas fiscais, em toda a história do Equador. Certamente, em grande parte, tem se beneficiado, no âmbito petroleiro, em razão dos aumentos no preço do petróleo no mercado internacional. Esta situação permitiu sustentar uma política de subsídios - não de transformação - que faz com que determinados setores sociais caiam nas redes clientelistas do governo. No entanto, as contradições são de um governo que conta com seis anos de mandato e que define a si mesmo como “revolucionário”. Governo que, além disso, é o que contou com maiores receitas em toda a história da República.

Em meu país, a concentração das vendas é tal, que o decil de empresas maiores controla 96% das vendas. As principais atividades econômicas estão concentradas em poucas empresas: 81% do mercado das bebidas sem álcool estão nas mãos de uma empresa. Igualmente, uma empresa controla 62% do mercado da carne, cinco engenhos (com apenas três donos) controlam 91% do mercado de açúcar. Duas empresas controlam 92% do mercado de óleo, duas empresas controlam 76% do mercado de produtos de higiene e assim poderíamos continuar enumerando, um por um, outros setores produtivos e comerciais. Os lucros dos cem maiores grupos aumentaram 12%, entre 2010 e 2011, e se aproximam do astronômico número de 36 bilhões de dólares. Neste sentido, é necessário destacar que os lucros dos grupos econômicos, no período 2007-2011, cresceram 50% a mais do que nos cinco anos anteriores, ou seja, do que durante o período neoliberal...

Embora, por mandato constitucional, os bancos e os banqueiros já não possam ter propriedades alheias às relacionadas com suas atividades específicas, o crescimento de benefícios ao banco privado foi sustentado. No exercício do ano fiscal 2011, dada a liquidez registrada pela economia equatoriana, o setor bancário aumentou seus lucros em 52,1% em relação ao ano anterior. Entre janeiro e dezembro de 2011, o banco privado registrou lucros superiores aos 400 milhões de dólares. Nestes cinco anos do governo de Rafael Correa, incluindo o ano crítico de 2009, a média anual destes lucros beira os 300 milhões. Curiosamente, mais de 40% dos depósitos à vista e a prazo fixo, da COFIEC, uma entidade financeira do Estado, foram colocados no Banco de Guayaquil, de propriedade do candidato-banqueiro Guillermo Lasso... Banco que, além disso, beneficia-se por ser um dos que entrega o bônus de desenvolvimento humano.

Observe até onde chega o poder dos grandes grupos do capital equatoriano: a Constituição de Montecristi proíbe o cultivo de transgênicos no país, no entanto, nesse momento, Correa quer permitir estes cultivos por meio de uma reforma constitucional. A quem isto interessa? Há uma empresa nacional, que tem a representação da Monsanto no Equador e que domina 62% do mercado de carne, que poderia ser a grande beneficiada.

Os dados com os quais lido são oficiais, provenientes de instituições públicas. Se determinados analistas políticos – dentro e fora do país –, que se definem como progressistas, pretendem continuar definindo este governo como um governo de “esquerdas”, em meu parecer, tal situação não demonstra mais do que a lamentável situação em que se encontra a esquerda, em nível internacional.

Na realidade, em razão deste governo querer ampliar a fronteira petroleira e forjar a grande mineração, mais do que falar em “socialismo do século XXI”, deveríamos estar falando de “extrativismo do século XXI”. Ou seja, este governo ao invés de reconverter sua economia nacional num sistema produtivo dinâmico, que gere postos de trabalho e que exporte produtos com valor agregado, diminuindo a dependência do capital transnacional, continua sendo um governo dependente das transnacionais e fornecedor de seus recursos naturais para aliviar as necessidades do mercado mundial capitalista. De verdade, você acredita que é possível construir o socialismo alimentando o sistema capitalista global, com matérias-primas como o petróleo e os minerais que servem, inclusive, para suas necessidades especulativas?

Exato, porém, ao mesmo tempo, sabemos que um pequeno país dependente e empobrecido, como o Equador, precisa utilizar seus recursos para responder a imensa urgência social e a pobreza que a “longa noite neoliberal” deixou. Quais são as suas propostas em relação ao extrativismo, e como construir alternativas populares e democráticas para este modelo de desenvolvimento, efetivamente predador e insustentável?

A partir das esquerdas que fomos encontrando à margem do governo de Rafael Correa, acreditamos que é fundamental ter clareza na necessidade de superar o extrativismo, e isto é necessário fazer com políticas claras. Em primeiro lugar, é preciso colocar a casa em ordem. O Equador extrai petróleo com um custo social e ambiental altíssimo, exportamos petróleo e importamos derivados de petróleo. No ano de 2011, importamos quatro bilhões de dólares: isto é muito dinheiro, muito dinheiro atrever-me-ia afirmar. Então, chegamos à conclusão de que um país que extrai petróleo, mas que tem que importar derivados, vive um absurdo. É preciso estimular a modernização da infraestrutura de refinamento, o que implica na reabilitação e potencialização da Refinaria Estatal de Esmeraldas. Certamente, será necessária outra refinaria, por isso é imperativo revisar o que foi feito para a construção da Refinaria do Pacífico, procurando sua continuação, caso convenha aos interesses nacionais, sem provocar graves impactos ambientais em razão do lugar equivocadamente escolhido. Este governo conta com seis anos de gestão, onde está a nova refinaria? Já repararam a refinaria existente no país - a de Esmeraldas? A resposta é não.

Aqui, existe um problema ainda mais grave, pois queimamos os derivados do petróleo, incluindo os importados, para gerar eletricidade. Em seis anos de governo, avançou-se muito lentamente nas obras de construção de usinas hidrelétricas, continua-se sem aproveitar adequadamente a energia solar, muito menos a energia geotérmica; algo foi feito no âmbito da [energia] eólica. Não há uma política de uso eficiente da energia.

Este governo introduziu algumas reformas tributárias importantes, mas insuficientes. Para além da taxa de pressão fiscal no Equador (14%), distancia-se muito da mais alta da região (22%), ainda se mantém 40% de evasão fiscal. Em nosso governo, os que mais têm deveriam ser os que mais pagam, sobretudo diante dos níveis de concentração econômica que citamos antes. Se você eleva a pressão fiscal aos níveis que existem, na atualidade, como exemplo a Bolívia, contaria com recursos suficientes para financiar o investimento e gasto públicos, sem apostar em projetos extrativistas com os da megamineração, que constituem uma tremenda irresponsabilidade ambiental para as futuras gerações. Além de não cumprirem com as perspectivas econômicas com as quais são apresentados. Cabe lembrar, neste sentido, que a pressão tributária na Europa é acima dos 40%, nos Estados Unidos 36%, num país como a Suécia está em torno de 50% e pouco.

No Equador, embora tenha se arrecadado notavelmente mais neste governo do que em anteriores, volto a perguntar: parece-lhe que estejamos diante de um governo revolucionário? Vamos lembrar que nós entendemos por “reformas” a correção de erros do sistema vigente, sendo que quando falamos de “revolução” nos referimos a transpassar o poder de alguns atores para outros.

Diante desta situação, que programa político vocês defendem coletivamente? Você pode nos apresentar um pouco do que é a Unidade Plurinacional, e quais são as perspectivas pelas quais se mobilizam?

A Unidade Plurinacional das Esquerdas surge como resposta a um governo que se distancia de seus princípios básicos e que começa a violentar sistematicamente a Constituição. A partir da Unidade Plurinacional começa-se a aglutinar forças progressistas e movimentos sociais com a intenção de enfrentar as agressões deste governo.

Nossa primeira ação coletiva acontece no marco da consulta popular, que o presidente convocou em maio do ano de 2011. Nós, das organizações que hoje fazem parte da Unidade Plurinacional, juntamo-nos na iniciativa “Desta vez Não senhor Presidente”, dando uma mensagem muito clara aos cidadãos do país: não continue com suas práticas autoritárias, senhor Presidente, nós somos contra a ideia de que tome a justiça, atentando contra a independência dos poderes do Estado.

Meses depois, em agosto de 2011, a Unidade Plurinacional se consolidaria por meio de um documento com 12 pontos básicos, que em seguida serviram como base para a mobilização popular denominada “Marcha pela Vida, Água e Dignidade dos povos”, em março de 2012. A mobilização foi um importante triunfo dos movimentos sociais, que resistiram provocações, repressão e contramarchas que, da mesma forma como Lucio Gutiérrez fazia, o governo de Correa realizou.

Em agosto de 2012, a Unidade Plurinacional decide empreender um processo extraordinário no Equador: nomear seu candidato presidencial, por meio de um processo de primárias, percorrendo todo o país com seus seis pré-candidatos, entre os quais eu estava. Já eleito como candidato da Unidade Plurinacional, para as eleições presidenciais de fevereiro de 2013, o Conselho Nacional Eleitoral, organismo que se presume que deveria ter autonomia em relação ao Estado, questionou as assinaturas que legalizavam as duas mais importantes organizações políticas no interior da Unidade Plurinacional, o Pachakutik e o Movimento Popular Democrático. Basta dizer que o presidente e os porta-vozes do CNE estão todos ligados ao partido da situação, sendo seu presidente um ex-ministro de Correa e seu segundo, um operador político do atual chanceler da República. Todos nós tivemos que sair às ruas, para recolher assinatura dos cidadãos, demonstrando novamente ao governo que não iria nos atemorizar, nem amordaçar. Superado este abrolho, inscrevemos nossas candidaturas no dia 13 de outubro de 2012. A unidade se consolidou em 34 das 36 listas possíveis de congressistas – nacionais, provinciais e da migração -, além do binômio presidencial, é claro. Na atualidade, continuamos elaborando, junto com os cidadãos e o tecido social organizado, o programa de governo, enquanto percorremos o país falando com os cidadãos e cidadãs e construindo uma infinidade de solidariedades com nossa proposta política, que não se distancia muito das propostas básicas que, em sua origem, a revolução cidadã possuía. Um curioso paradoxo, não é verdade?

Não obstante, se analisamos as pesquisas e enquetes de opinião independentes, podemos constatar que Rafael Correa continua tendo uma popularidade muito alta, inclusive depois destes anos de governo. Não teria sido mais efetivo politicamente tentar construir uma esquerda radical dentro da Aliança País (AP), e assim tentar disputar a hegemonia com Correa sobre a maioria das classes populares, com propostas alternativas que venham da ala esquerda da AP?

Essa é uma pergunta que poderia ser incorporada num livro, que escreverei algum dia, e que se chamará “Reflexões para depois de morto”... Como todos os mortais, querido amigo, cometi muitos erros em minha vida e possivelmente continuarei cometendo-os. Pensar agora se Alberto Acosta deveria ter ficado no interior da Aliança País para lutar com um regime que se torna cada vez mais autoritário, ou com um líder que se distanciou da participação democrática interna e se torna um caudilho, é uma coisa que não serve para nada. Hoje estamos aqui, dinamizando junto com outros e outras, uma perspectiva de oposição de esquerda ao governo que presume ser o que não é.

Para conquistar construir alternativas democráticas de governo e poder “a partir de baixo”, nós todos sabemos que é preciso forjar espaços políticos com os setores populares mobilizados e organizados. Qual é sua relação com os movimentos sociais?

Nós temos uma ótima relação com os movimentos sociais, que estão sendo fortemente agredidos neste momento pelo governo. Persegui-los, atacá-los, tentar dividir ou controlá-los, é um dos maiores erros históricos deste governo. Se em fevereiro, um dos candidatos da direita vencer as eleições, coisa que espero realmente que não aconteça, a fragilização das resistências protagonizadas historicamente pelos movimentos sociais será a herança mais triste que este governo deixará. Parece-lhe explicável que um governo que ao invés de fortalecer as organizações sociais e empoderar os cidadãos, os fragilizam, defina a si mesmo como revolucionário?

Se compararmos o movimento social – e em particular indígena – atual com o que foram as grandes lutas neoliberais dos anos 1999-2000, é impossível não destacar certa desmobilização e até certa apatia e fragmentação. Vários sociólogos e intelectuais, mais próximos de Correa, dizem que não é o que o governo tenha fragilizado o movimento social, mas sim que, ao contrário, as lutas chegaram ao fim de um ciclo ascendente, e que, além disso, o governo com sua orientação pós-neoliberal respondeu a várias das reivindicações das mobilizações coletivas do período anterior, o que é bem diferente.

Para você, parece estar relacionado ao fim de um ciclo o fato de que os dirigentes mais questionados do movimento indígena, como é o caso de Antonio Vargas, na Amazônia, ou Miguel Lluco, na Serra Central, sejam os baluartes da situação no interior do movimento indígena? É isto que lhe parece fruto do fim de um ciclo, o fato dos funcionários do governo estarem tentando comprar as vontades das comunidades indígenas, oferecendo cheques provenientes do excedente petroleiro? Parece ser o fim de um ciclo o fato de haver mais de duzentos líderes sociais com registros abertos por sabotagem e terrorismo, num país onde todos nós sabemos que há anos não existe nenhum grupo armado? Para mim, dá a sensação de que é uma estratégia governamental para atemorizar, dividir e fragilizar os movimentos sociais.

A partir de uma perspectiva estratégica mais ampla, digamos de médio e longo prazo: é possível construir ou aprofundar uma perspectiva realmente pós-neoliberal, com claros objetivos anticapitalistas e ecossocialistas, atualmente, no Equador?

Não apenas penso que é possível, como também penso que é indispensável. Do contrário, não haverá futuro para o país, para a democracia, para a vida com dignidade e não haverá “Bem Viver”. Digo que é indispensável porque temos que avançar numa forma alternativa de organizar a sociedade. No Equador, e outros países da região, estamos num momento que poderíamos denominar como uma fase pós-neoliberal, mas não pós-capitalista. Isso deve ficar muito claro para nossos amigos no exterior. Nós estamos vendo como muito positivo o fato do governo não estar atado ao Consenso de Washington, mas no momento se impõe outras contradições provenientes da China, sobretudo relacionada com os créditos. A envergadura destes problemas está relacionada com o quanto somam os créditos chineses e qual é sua importância para o país. Este é um tema interessantíssimo para averiguar. É por isso que a partir da Unidade Plurinacional, nós sugerimos completar e atualizar a auditoria da dívida externa e nos comprometemos com a auditoria dos créditos chineses e de todos os créditos que virão no futuro. Como não é demais falar das condições desses créditos, que tem a ver com petróleo, mineração, grandes obras de infraestrutura, taxas de juros elevadíssimas (acima de 9% como é o caso do financiamento do megaprojeto Sopladora). Embora tenhamos que reconhecer avanços em relação a governo anteriores, quais são as mudanças estruturais reais que se deram no Equador, durante os últimos seis anos?

Caso revisemos a estrutura de importações e exportações, estas mudanças não existem, e mais, permitiu-se que cresça aceleradamente o déficit comercial não petroleiro, que se aproxima de oito bilhões de dólares. Agora, o governo procura tomar algumas medidas, com as quais estou de acordo, mas são insuficientes, pois não transformam a estrutura do sistema econômico, nem do modelo de acumulação, algo que o próprio presidente da República reconhece. Por outro lado, destacaria alguns aspectos em que o fracasso do governo de Correa é claro, por exemplo, no âmbito da produção. Não apenas não há mudanças na estrutura da produção, como o país continua sendo dependente dos produtos primários, da lógica da dependência, e continuamos mantendo uma economia rentista e inerte, em que apenas se investe para produzir. Seguimos atados nas condicionalidades do capital estrangeiro e do mercado mundial. Não há nenhum esforço real, em termos de política exterior e comércio, como também não há uma proposta real e séria no âmbito da produção. O fracasso é generalizado.

Outro âmbito em que o governo fracassou é no tema da segurança cidadã, violência e criminalidade. Os índices nesta matéria subiram de uma maneira vertiginosa. Embora seja certo que o aumento da insegurança e da violência não é culpa integrante deste governo – estamos falando do crime organizado mundialmente -, o que é indiscutível é a carência de respostas neste aspecto, por parte do Executivo.

Quais seriam as condições mínimas para empreender um processo democrático, a partir da dinâmica atual, que é de caráter pós-neoliberal, para uma dinâmica anticapitalista e pós-extrativista?

Para encontrar o roteiro apropriado para a mudança real do sistema, em momentos como este, serve-nos muito a Constituição de Montecristi. Esta possui vários pontos chaves: por um lado, uma série de direitos que configuram o país que devemos construir – nosso projeto de vida em comum e o modelo de sociedade do futuro -; por sua vez, e para tornar realidade isto, existem as instituições que devem ser construídas. Todas elas foram violentadas pelo controle governamental, durante estes anos, porém seriam nestas que deveríamos encontrar garantias para as e os cidadãos. Por exemplo, a Constituição diz que é proibido o latifúndio e o monopólio da água. Esta situação deveria obrigar um governo coerente com o mandato constitucional a proceder com a redistribuição da água e da terra. De igual maneira, nossa constituição tem mandatos específicos em relação à soberania alimentar. Não estamos falando de qualquer coisa, dado que qualquer modelo de reprodução agrícola, aplicável no país, deveria ser pensado no contexto da soberania alimentar, coisa que choca com a atual proposta vinculada aos biocombustíveis e as sementes transgênicas, que o governo hoje pretende implementar.

Ao contrário disto, o que requeremos na realidade é uma verdadeira reforma agrária, uma resposta que atenda as pequenas e médias empresas do campo e da cidade, as cooperativas, associações, comunidades e todos esses projetos comunitários e associativos que estão marginalizados na atualidade. O mínimo que este governo poderia ter feito é colocar toda essa economia popular e solidária dentro das responsabilidades concernentes ao Ministério da Economia, e não ao Ministério da Inclusão Social, como se encontra no momento. As pequenas e médias empresas geram mais de 76% do emprego no Equador. As pequenas empresas, que representam 95% dos estabelecimentos, apenas participam com 16% das vendas em nível nacional. Essa é a realidade do país, o que evidencia que as mudanças reais não se deram.

O chamado a construir o “bem viver” e o “sumak Kawsay”, reivindicado tanto por dirigentes importantes do governo, como pela oposição de esquerdas, entram nesta perspectiva?

Com este projeto de governo não é possível alcançar o bem viver, caminha-se na direção contrária. Está se aprofundando o “mal viver”. Se a isto se somar o fato do governo ter gerado um ambiente de muito receio e temor entre os cidadãos, concluiremos, então, que o Equador insiste no mal viver, acompanhado de um processo que deixa muito a desejar do ponto de vista democrático.

Depois de fevereiro de 2013, imaginamos (e é o mais provável) que o atual presidente, Rafael Correa, vença novamente. Como você enxerga, a partir da aliança que representa, o futuro ciclo político equatoriano?

Primeiro, vamos esperar que Correa vença as eleições da direita... Embora seja certo que Rafael Correa tem uma alta popularidade, segundo dizem as pesquisas, também é verdade que o presidente da República chegou à consulta popular, de maio do ano 2011, com uma popularidade que beirava 80% e obteve apenas 47% dos votos. De qualquer forma, o futuro para a esquerda política e social equatoriana será continuar lutando.

Somos conscientes de que nossa luta não se acaba num processo eleitoral, por isso dizemos que o problema não é apenas derrotar o presidente Correa, ganhar as eleições é importante, mas não suficiente, pois nosso objetivo é transformar o Equador.

* Texto publicado originalmente em francês pela revista “ContreTemps”, número 16, 1º trimestre 2013: www.contretemps.eu

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