O envio do Filho de Deus ao mundo através de uma mulher é "momento de evidenciar o princípio no materno, que dele tudo surge, que dele vem todas as coisas, e que nele se reconhece a Mãe de todos, em todo tempo e lugar, por isso, a Mãe de Deus, a Grande Mãe. Esse princípio é reafirmado na cruz de Jesus, que a reconhece e a enaltece, como a Mãe de todos nós, propondo uma filiação salvadora, contínua, sob a sua maternalidade universal.
Nessa cena, estaria Jesus querendo unir o que o homem um dia separou? De um tempo, em o patriarcado separou as pessoas, distinguindo-as umas das outras? Estaria Jesus, ressignificando os dois grandes princípios, masculino e feminino através do seu sofrimento de cruz? Estaria promovendo uma unidade restauradora dos princípios norteadores da vida humana, onde não se separa a Mãe do Pai ou o Pai da Mãe, nem o homem da mulher?"
A reflexão é de Perla Cabral Duarte Doneda. Ela é doutora (2024) e mestra (2019) em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo, bacharel em Teologia pelo Centro Universitário Claretiano Batatais-EAD (2016) e bacharel em Ciências Religiosas pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (2007). Com viés teológico que perpassa pela Teologia da Libertação, com ênfase hermenêutica para a Teologia Feminista, sua pesquisa acadêmica compreende o campo da história, especialmente, o período Colonial do Brasil (Sec. XVI), no campo da mariologia de José de Anchieta. Aborda questões de gênero, no campo das violências e injustiças contra as mulheres. Atualmente é sócia da SOTER (Sociedade de Teologia e Ciências da Religião) e membra ativa da Rede Brasileira de Teólogas.
Primeira leitura: Nm 6,22-27
Salmo: Sl 66(67),2-3.5.6.8 (R. 2a)
Seguda leitura: Gl 4,4-7
Evangelho: Lc 2,16-21
Na liturgia de hoje, 01 de janeiro, se celebra, talvez, uma das mais significativas para a Igreja Católica. É uma data significativa e profunda porque se professa o primeiro dogma de Maria, o da Santa Maria Mãe de Deus. Daquela que foi proclamada a Rainha da Paz, por isso o dia Mundial da Paz. No início do ano, é a Ela que invocamos nossas preces e a reconhecemos como parte fundamental no plano da salvação.
Nessa liturgia é muito importante reconhecer que não haveria início ou “fim” da salvação humana, se essa jovem mulher judia não tivesse concedido o seu SIM, amoroso e responsável, que no seu discernimento, se fez presença angelical. Então na liturgia de hoje, podemos verificar que há eixos fundantes e centrais da fé cristã, em todas as leituras bíblicas.
Somos convidados a recordar afirmações preciosas sobre essa jovem mulher de Nazaré. Sua graça diante de Deus, é confirmada quando se diz: que o Senhor te abençoe e te guarde, que o Senhor faça resplandecer o seu rosto sobre ti e tenha misericórdia de ti, e o Senhor, sobre ti, levante o seu rosto e te dê a paz! Isso nos mostra que somente uma pessoa muito especial e de grandes potenciais poderia receber tamanha prece. Ela não deveria sentir-se humilhada, nunca, e em nenhuma circunstância, pois era grandiosa em seu Deus.
Nesse sentido, é por isso que temos o salmista suplicando que as nações a glorifiquem, para que se possa receber dela a sua graça e a sua benção, que só dela pode vir, pois, Ela é aquela que traz o Mensageiro da paz. Sua grandeza está em se fazer casa, em ser morada e em ser o vínculo de formação e educação daquele que vem, do Salvador do mundo. Na comunidade de Gálatas, se afirma que, o envio do Filho de Deus é para resgatar a humanidade da escravidão da lei, das aflições e injustiças daquele tempo. Ela é o meio, o modo que isso se dará, e está com ela, essa verdade salvadora. Por isso, em Deus e no Filho, é Mãe de Deus, com Deus e para o Filho, assim como, Mãe de toda a humanidade: “Eis aí tua Mãe”.
Fundamentalmente, essa mulher é presença real divina e é anúncio. Ela é a manifestação do divino para anunciar a salvação ao mundo. Essa manifestação se opera nela e com seu filho, mulher e homem, mãe e filho, com o pai, ambos marcam um novo tempo, geográfico, temporal e espiritual, ao mesmo tempo que se desdobra na concretude de todos os tempos. Logo, somos todos chamados a não temer esse acontecimento que se operou nesse lugar da história e que todo ano reafirmamos na liturgia.
Momento de evidenciar o princípio no materno, que dele tudo surge, que dele vem todas as coisas, e que nele se reconhece a Mãe de todos, em todo tempo e lugar, por isso, a Mãe de Deus, a Grande Mãe. Esse princípio é reafirmado na cruz de Jesus, que a reconhece e a enaltece, como a Mãe de todos nós, propondo uma filiação salvadora, contínua, sob a sua maternalidade universal.
Nessa cena, estaria Jesus querendo unir o que o homem um dia separou? De um tempo, em o patriarcado separou as pessoas, distinguindo-as umas das outras? Estaria Jesus, ressignificando os dois grandes princípios, masculino e feminino através do seu sofrimento de cruz? Estaria promovendo uma unidade restauradora dos princípios norteadores da vida humana, onde não se separa a Mãe do Pai ou o Pai da Mãe, nem o homem da mulher?
Jesus rememora um tempo de unidade: ele nasce para unir e não para acirrar binarismos, justamente afirmando que isso escraviza o homem e a mulher. Somente os dois princípios são uma força una, potente, sem perder a capacidade criadora e geradora de mais vida, e vida em abundância. Essa unidade expressa autenticidade, na formação e criação do gênero humano. Pai e Mãe são um, por isso o Filho salva, porque é o resultado do amor. Não há ser humano, sem masculino e feminino, não há vida humana sem homem e mulher.
Outro fundamento importante desse dia aqui celebrado, é o nascimento como sinal da vida daquele que vem, que se faz presença, que se torna anúncio real, concreto, de que a consciência salvadora chegou, naquele exato momento. Esse anúncio consciente se fundamenta na presença testemunhal dos pobres pastores, e em uma humilde manjedoura. Ali nasce o menino para os pequenos, para as pessoas, e para todos que vieram lhe visitar, ou seja, das outras criaturas ali presentes, testemunhas do mundo animal na estrebaria, bem como de toda natureza que os circundavam. Céu, astros e terra testemunham a salvação, como um marco da consciência humana, em favor dos mais excluídos e injustiçados.
A centralidade do texto, está na relação da mãe e do filho. José acompanha e garante a possibilidade dessa vinda em abundância. Maria guardava todas essas coisas ditas e as não ditas, refletindo em seu coração. A grandeza dessa jovem mulher, de uma consciência em expansão, a coloca em pleno estado de graça virginal, o que significa que tudo nela, com ela e por ela, é gestado na sua mente e no seu coração, portanto, nasce uma nova consciência! Nada acontece de modo inerte, mas na explosão das dores do parto, o seu espírito se transforma em abundância, ofertada a pessoas de todos os lugares, sem separação e sem distinção. A sua materna virgindade, consiste nessa capacidade de ser e estar inteira, completa, totalmente centrada em si, ao mesmo tempo que está para fora de si. A Mãe Maria é doação, é para todas e todos. Por isso, seu rosto resplandece desde sempre, porque o divino está nela e ela está nele. Nessa relação, consiste seu estar em pé diante do divino, grandiosa, uma verdadeira rainha da paz. Quem viu/reconheceu e acreditou, saiu glorificando.
Que assim, todos e todas nós, no início de mais um tempo, possamos dar graças pelo dom da vida, o dom de pessoas que se conscientizam na promoção da paz, acreditando que há um mistério muito maior entre o Pai, a Mãe, o Filho e, que só o Espírito Santo poderá nos ensinar cada vez mais, a fim de que possamos diminuir drasticamente as dores entre homens e mulheres. Que possamos reconhecer que, as injustiças também nascem de imagens e sinais distorcidos, muitas vezes pela própria religião. Que não haja superioridade do Pai, em detrimento da Mãe. Um feliz e abençoado ano novo, que ele seja mais justo e fraterno para todas e todos nós!
Santa Maria Mãe de Deus – Ano C – Mulher de discernimento, modelo de discipulado. Reflexão de Ceci Maria Costa Baptista Mariani.