A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho da Sagrada Família, ciclo A do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de Mateus 2,13-15.19-23.
“Levanta-te, pega o menino e sua mãe e foge para o Egito!” (Mt 2,13)
O relato evangélico indicado para a festa da Sagrada Família é como o espelho de nossa história violenta, que avança sobre cadáveres de crianças sacrificadas, de inocentes fugitivos, de homens e mulheres errantes, perseguidos, em busca de uma pátria. Nossa história do “falso natal” avança sobre o Natal verdadeiro que continua acontecendo nos caminhos dos fugitivos e dos clandestinos deste mundo.
O alarme diante da notícia do nascimento do “rei dos judeus” encaixa perfeitamente no contexto de mentiras e complôs, de terrores e furores dos últimos anos do rei Herodes.
Jesus, já na sua infância, se fez presente no lugar onde se encontravam aqueles que não tinham “lugar”, os “deslocados”, os socialmente rejeitados e que serão, mais tarde, a razão de seu amor e do seu cuidado. Porque fez a experiência da exclusão (exílio) é que Jesus irá desencadear, com sua vida e missão, um movimento de inclusão.
A perseguição e o exílio logo no início de sua vida revelam o realismo da Encarnação. Ao entrar na nossa história, o Filho de Deus esvaziou-se de sua glória e assumiu nossa condição humana, com todas as consequências: pobreza e impotência, perseguições e ameaças de morte por parte dos poderosos de turno.
Jesus nasceu num mundo hostil. Ele foi perseguido pelos “donos do poder” desde o início de sua vida.
O não reconhecimento d’Ele por Herodes e por Jerusalém antecipa sua rejeição, sua condenação e sua morte na Cidade Santa, no lugar onde Ele encontrará a maior hostilidade.
O paralelismo entre Jesus e Moisés, de um lado, e entre Herodes e Faraó, de outro, é claro.
Há também um paralelismo entre Jesus e o povo de Israel: Jesus revive na sua própria história a travessia do seu povo, chamado por Deus do Egito. “Do Egito chamei meu filho” (Os. 11,1).
Nessa escola de perseguição cresceu o Messias, compartilhando assim a sorte dos hebreus oprimidos no Egito; crescendo nela pode entender e interpretar nossa história por dentro. Entre fugitivos e perseguidos, cresceu Jesus, nas fronteiras da desumanização; ali vai sendo gestada a história da nova humanidade.
Se a história da Encarnação começa lá “embaixo”, na periferia, quer dizer que a fé em Deus implica prestar atenção e voltar a cabeça em direção aos “últimos”, aos que vivem “deslocados”. É por esse caminho que podemos chegar à descoberta e à experiência de Deus; é também por este caminho que podemos chegar ao conhecimento de nós mesmos e nos fazermos mais “humanos” e “solidários”. No momento em que o Verbo de Deus assume um rosto, todo ser humano chega à plenitude de sua realização: entra em comunhão com o Infinito e recebe uma dignidade infinita.
O relato do exílio interpela a nossa liberdade e a nossa fé. Jesus continua batendo à porta e pedindo hospitalidade na ponta dos pés. São rostos desfigurados pela fome e pobreza, rostos aterrorizados pela violência diária, rostos angustiados de menores carentes, rostos humilhados e ofendidos na sua dignidade... Podemos fechar-Lhe a porta e condená-Lo ao exílio, que é uma atitude gravíssima na relação com Deus.
Aqui se condena uma criança. Se não entendermos essa lição, nada mais conseguiremos entender. Nesta nossa ignorância e insensibilidade a respeito do presente divino que é a Criança de Belém, estão as raízes de nossas maiores desgraças, injustiças, violências...
E Deus não pode abençoar uma sociedade que não sabe valorizar e proteger suas crianças...
O Evangelho de hoje termina com três indicações geográficas, que são como que a espinha dorsal da narrativa. Antes de tudo, o anjo diz a José que deve retornar à terra de Israel: é a pátria mais genérica de Jesus e da revelação bíblica. Depois José é advertido em sonho para ficar no território da Galileia.
Enfim, de modo mais específico, ele vai morar “numa cidade chamada Nazaré”.
Nazaré está no traçado do retorno-êxodo de Jesus do Egito.
Com a terra de Israel Jesus revive a experiência do Êxodo; com a Galileia dos gentios Jesus abre a salvação aos mais pobres e excluídos; mas, em Nazaré Ele encontra o ambiente favorável à sua humanização. Um povoado insignificante que se torna o ponto de partida do caminho de Jesus, uma vida oculta e corriqueira que é celebrada pelos profetas.
Podemos dizer que Nazaré é, em certo sentido, a “mística do cotidiano”, das horas, dos meses, dos anos escondidos, da vida tranquila, provinciana, não-escrita, de Jesus.
Essa atenção à simplicidade do cotidiano, à natureza da Galileia, à mensagem que Deus esconde no interior das pessoas, nas coisas, nas horas…, é uma constante na pregação de Jesus. Nazaré é o sinal da epifania de Deus nas pequenas coisas, é o sinal da palavra divina escondida nas vestes humildes da vida simples e familiar, é o sinal da presença graciosa de Deus em nossas casas.
Às vezes, as imagens da Sagrada Família nos fazem entendê-la de uma maneira fria, solene e distante. No entanto, não devemos esquecer que Jesus teve uma família e nela viveu muitas das experiências que nós vivemos nas nossas: alegrias e tristezas, dramas e conquistas, perdas e encontros...
A família continua sendo o espaço humanizador privilegiado para o desenvolvimento de cada pessoa, não só durante os anos da infância e da juventude, mas durante todas as etapas de nossa vida.
O ser humano só pode crescer em humanidade através de suas relações sadias com os outros. A família é a atmosfera insubstituível e o lugar de referência para que essas relações profundamente humanas sejam amadurecidas. Seja como casal, como filho, como irmão, como pai ou mãe, como avós..., em cada uma dessas situações a qualidade da relação os fará aproximar da plenitude humana, quando todo encontro com o outro é vivido para destravar e ativar suas ricas possibilidades e sua capacidade de amar.
O espaço familiar des-vela o humano que em todos habita.
Inspirada no lar em Nazaré, cada família se transforma num espaço privilegiado para viver as experiências mais básicas da fé cristã: a confiança num Deus Bom, amigo do ser humano; a atração por um estilo de vida cristificado; a descoberta do projeto de Deus de construir um mundo mais digno, justo e amável para todos; ambiente inspirador para o despertar da criatividade e do espírito de busca; a internalização dos valores do evangelho, etc...
Num lar onde se vive o seguimento de Jesus com fé simples, mas com grande paixão, cresce uma família sempre acolhedora, sensível ao sofrimento dos mais necessitados, que aprende a partilhar e a comprometer-se por um mundo mais humano. Uma família que não se encerra só nos seus interesses, mas que vive aberta à família humana.
A experiência e vivência familiar, portanto, vem responder a uma demanda própria deste momento pós-moderno e se revela capaz de restituir ao ser humano de hoje a espessura de humanidade e os valores que lhe são próprios. O clima familiar não só mobiliza a pessoa em sua integralidade (corporal, afetivo, cognitiva, volitiva...), mas a acompanha para um sentido sapiencial da vida e que a faz saboreá-la como descoberta, como oportunidade, como dom.
A espiritualidade familiar, centralizada em cada um de seus membros, visa mobilizá-los em todas as suas dimensões, promove distensão, paz e alegria, propõe um caminho de plena humanização, forma para a abertura aos outros e para a doação por amor, impele, em suma, a criar as condições para que todos atinjam a maturidade e se realizem como seres humanos.
Contemplar seu espaço familiar: é ambiente instigante, provocativo, inspirador... onde todos se sentem livres para expressar sua identidade e originalidade? Ali educa-se para viver uma consciência moral responsável, sadia, coerente com a fé cristã? Ou favorece um estilo de vida superficial, consumista, sem metas nem ideais, sem critérios e valores evangélicos?
Em que dimensões você sente que sua família pode e deve crescer mais, tendo como referência a Família de Nazaré?