Afroativos ressignifica racismo em protagonismo estudantil na periferia de Porto Alegre

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30 Dezembro 2025

Projeto da Escola Saint Hilaire fortalece identidades negras e transforma trajetórias de estudantes e da comunidade.

A informação é publicada por Brasil de Fato, 18-12-2025. 

Na Lomba do Pinheiro, bairro da periferia de Porto Alegre, a educação antirracista ganhou forma concreta dentro da escola pública. Na Escola Municipal de Ensino Fundamental Saint Hilaire, o Projeto Afroativos atua desde 2017 como uma proposta integrada ao currículo e oferecida como opção de contraturno para estudantes do ensino fundamental. Mais do que um espaço educativo complementar, o projeto se consolidou como um ambiente de pertencimento, formação crítica e protagonismo estudantil, com reflexos diretos na vida de crianças, adolescentes e da comunidade do entorno.

Articulado ao Espaço Educativo Afro-Brasileiro e Indígena (EEABI), o Afroativos desenvolve atividades semanais que incluem rodas de conversa, estudos dirigidos, oficinas, palestras, visitas pedagógicas e contações de histórias, dentro e fora da escola. As ações são conduzidas de forma integrada entre estudantes, educadores, coordenação pedagógica e direção, reforçando a educação antirracista como prática cotidiana e contínua.

O projeto surgiu a partir de uma situação de racismo vivida dentro da própria escola, quando estudantes presenciaram uma colega sofrer racismo por usar o cabelo natural. Em 2017, Kherollen Barbosa, na época com 10 anos, escreveu uma carta relatando o sofrimento vivido na escola por conta das piadas que sofria.

“Quando falam do meu cabelo, eu fico com aperto no coração. Não consigo acreditar que isso me machuca muito. O que tem meu cabelo? Eu não sei mesmo”, dizia o texto da jovem que chegou até as mãos da idealizadora do Coletivo Afroativos, a professora Larisse Moraes.

Segundo a griô e coordenadora do Afroativos, Maria Luísa, conhecida como Maísa, o episódio mobilizou o grupo a buscar uma resposta coletiva, a partir da provocação da professora. “Os colegas acharam que não dava mais para aguentar esse tipo de coisa em pleno século que a gente está.” A reação veio da escuta e do diálogo entre os próprios estudantes. “Começaram a raciocinar, a pensar juntos: ‘vamos pensar juntos, não vamos perder a calma’”, conta Maísa.

A proposta construída coletivamente foi a realização de um manifesto fotográfico, convidando todas as pessoas que chegavam à escola a soltarem o cabelo para registrar a imagem. A campanha “Solte o cabelo, prenda o preconceito” envolveu mães, pais, professores, funcionários e moradores da comunidade, marcando o início de um projeto que cresceria junto com os estudantes.

Educação, território e pertencimento

A idealizadora Larisse Moraes destaca a relevância da prática pedagógica a partir da vivência no território. Ela se assume no conceito de “perifessora”, ligado à construção de vínculos e ao reconhecimento das realidades locais. “Ser uma ‘perifessora’ não tem a ver com local geográfico, tampouco apenas com a origem territorial. ‘Perifessorar’ é diferente de ‘professorar’. As relações se constroem pelo pertencimento e pela proximidade entre as realidades das partes envolvidas”, afirma.

Moradora da Lomba do Pinheiro, e mãe atípica de um menino de 13 anos, Moraes acompanhou de perto a trajetória do filho na Escola Saint Hilaire e construiu o Afroativos a partir do contato com os alunos e as demandas e potências do bairro. “Vivemos dentro e é com essa propriedade que falo”, destaca.

A professora recorda a trajetória de oito anos do Afroativos como um período de transformações que dão sentido à caminhada. “Alguém precisa abrir as portas pelo lado de dentro”, afirma. Uma das motivações centrais do trabalho, segundo Moraes, é garantir que crianças e adolescentes tenham acesso a oportunidades antes do que tiveram gerações anteriores, ampliando horizontes educacionais, culturais e simbólicos.

Em sua dissertação de mestrado, construída com Dona Maísa, reconhecida como griô do coletivo, e com a adolescente integrante do grupo Ketlyn Vieira, Moraes aborda o chamado efeito bumerangue entre mulheres negras. “Entre dores e ‘em-poder-ação’, transformamos realidades, nos empoderamos pelo conhecimento e pela Afrobetização, passando a limpo a história que nos foi contada”, explica.

A educadora destaca que pertencimento, permanência e sucesso escolar estão diretamente relacionados. “Ver a gurizada construindo sua identidade, com autonomia e criticidade, enche o meu coração de orgulho e esperança. Esperança do verbo ‘esperançar’”, diz, citando Paulo Freire.

Atualmente professora efetiva do Instituto Federal Farroupilha (IFFar), campus Alegrete, Moraes recebeu dos estudantes a garantia de continuidade do trabalho. “O Afroativos não está acabando, estamos ampliando as ações”, ouviu do grupo. A coordenação segue com a comunidade, com Dona Maísa à frente, apoio do EEABI e da direção da escola.

Inspirada em um provérbio africano, ela conclui: “Se você quer ir mais rápido, vá sozinho. Se quer ir mais longe, vá em grupo. Que sigamos caminhando juntos, com uma educação que protege as almas e traz a periferia para o centro da narrativa.”

Vivências que transformam trajetórias

Dona Maísa chegou ao Afroativos por meio de uma neta, ex-integrante do grupo. “Através do projeto, conheceram ela e a chamaram para trabalhar como estagiária. Hoje está se formando em jornalismo e propaganda e trabalha no Internacional. Foi o Afroativos que abriu esse caminho.”

A própria griô retomou a escrita ao integrar o coletivo. “Eu já escrevia, mas estava parada. Voltei em 2018 e lancei meu livro de memórias, o décimo. Agora estou lançando o décimo terceiro.” Para ela, o centro do Afroativos são as crianças. “Quando a gente vai numa escola falar alguma coisa, eu falar é uma coisa, tu falar é outra. Mas a criança falar de igual para igual com os colegas, com os adolescentes, é outra conversa.”

Os encontros semanais acontecem em uma sala que funciona como espaço simbólico do projeto. O ambiente é repleto de livros de autores negros e de temáticas relacionadas à história e cultura afro-brasileira e africana, além de cartazes, fotografias, desenhos, trabalhos produzidos pelos estudantes e jogos utilizados nas atividades. Alguns desses jogos foram criados ou adaptados pelo próprio grupo, com mudanças nas regras para questionar aspectos racistas presentes em brincadeiras tradicionais.

“O coletivo é minha segunda família”

A estudante Maria Antônia Passos, de 11 anos, explica a importância dos jogos afrocentrados, um dos eixos do projeto. “A gente chama de jogos afrocentrados porque, se jogar no Google, vai aparecer ‘amarelinha africana’, mas a gente não sabe de qual lugar da África. Então a gente prefere chamar de brincadeiras afrocentradas”, diz.

Entre as brincadeiras estão o Guerreiros Nagô e a Amarelinha do Afro, criadas pelo grupo. “O Guerreiros Nagô é uma réplica dos escravos de , só que a gente não queria falar sobre o triste tempo da escravidão. A gente queria falar sobre guerreiros”, explica.

No coletivo há cerca de três anos, Passos conta que entrou após sofrer racismo por causa do cabelo. “A minha mãe falou que era para eu entrar porque já conhecia a professora Larisse. Eu sofria isso e falava só para a minha mãe.” Hoje, diz se sentir diferente. “Agora eu me sinto bem melhor. A professora Larisse conversa com a gente, com todos do coletivo que precisam de ajuda. Pra mim é minha segunda família.”

O aprendizado também chega em casa. “Eu levo para os meus irmãos, para minha casa, para todo mundo ficar ciente.” Sobre o futuro, afirma já ter planos. “Quero ser psicóloga ou designer. Psicóloga para tratar o problema dos outros, como fizeram comigo. Eu ajudo porque eu quero, nunca espero ganhar alguma coisa em troca.”

Coletividade, identidade e permanência

O jovem Marvens Tombeau, de 16 anos, é haitiano e entrou no Afroativos ainda criança, pouco depois de chegar ao Brasil. “Por incrível que pareça, eu não sou brasileiro”, brinca. Ele destaca o papel das rodas de conversa no planejamento das ações. “Para saber em tal data e qual lugar que a gente deve ir para apresentar, para levar aquilo que a gente aprendeu.”

Segundo ele, nada no projeto é decidido individualmente. “Ninguém nunca trabalha sozinho. Cada um tem uma ideia diferente. A gente testa e aprova. É assim que vão surgindo as ideias para que o projeto continue crescendo.”

Tombeau chegou ao Brasil aos 9 anos e enfrentou dificuldades de adaptação cultural e linguística. “Para uma criança de 9 anos sair da sua cultura para se adaptar a algo completamente diferente… tu tem que ser aceito.” Ele conta que muitas vezes a língua crioulo haitiano era confundida com briga. Hoje, vive com a família na Lomba do Pinheiro e segue no projeto mesmo após concluir o ensino fundamental. “O Afroativos representa muita coisa, desde símbolo de guerras até conquistas. Uma conquista que é para um vale para todo mundo.”

Educação antirracista como prática cotidiana

A coordenadora do EEABI, Maria do Carmo Aguilar, destaca que a presença de crianças e adolescentes no processo formativo amplia o diálogo. “É diferente quando um adulto chega para falar com as crianças e quando chegam outras crianças e adolescentes. Há um entendimento maior, um acolhimento.”

Segundo ela, a escola aplica integralmente a Lei 10.639/03, que determina o ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena em sala de aula. “O Saint Hilaire é uma escola em que os professores abraçaram isso. Aqui não se fala da trajetória e da riqueza da cultura negra apenas em novembro. O trabalho acontece o ano inteiro.”

Aguilar reforça que situações de racismo ocorrem porque a escola reflete a sociedade. “A questão é como lidamos com isso.” Para ela, o Afroativos atua diretamente na construção da identidade. “Eles entram sabendo-se negros e saem tornando-se negros. E também cidadãos.

Entre as atividades desenvolvidas pelos estudantes estão exposições sobre mulheres negras, localizadas na Galeria Afro-indígena Maíza Lemos, que ocupa um corredor inteiro da escola. Lá estão expostos trabalhos como resgate da história de vida de trabalhadoras da escola de setores como limpeza e alimentação, de personalidades da cultura como as musicistas Loma Pereira e a rapper Cristal, e a apresentante regional no RS da Fundação Palmares, Maria Conceição Lopes Fontoura, e mesmo de colegas que integram o grupo.

Reconhecimento e impacto comunitário

O vice-diretor Lucas Morone atua na escola há 12 anos e observa a importância do projeto. “É um orgulho termos um projeto que defende o nosso povo.” Ele cita o exemplo de Marvens como símbolo da transformação possibilitada pelo Afroativos. “Hoje está no ensino médio, permanece no projeto e se tornou referência na escola.”

As ações do Afroativos extrapolam os muros da escola. O grupo realiza palestras, oficinas, rodas de conversa e apresentações em outros espaços educativos e comunitários. A experiência do coletivo já foi compartilhada em escolas de diversas cidades do Rio Grande do Sul e também em outros estados, como Natal (RN) e Cotia (SP), ampliando o alcance do debate sobre educação antirracista a partir da vivência do território periférico de Porto Alegre.

Dona Maísa reitera que o projeto amplia horizontes concretos. “Muitas crianças entraram pela primeira vez na Assembleia Legislativa por causa do projeto. Foram à Expofavela.” Segundo ela, cada atividade envolve pesquisa, organização e responsabilidade coletiva.

Entre as iniciativas desenvolvidas está o subprojeto “O Haiti que a mídia não mostra”, que inclui contações de histórias bilíngues. O grupo chegou a ser convidado para uma atividade no arquipélago de São Tomé e Príncipe, na África Ocidental, mas a viagem não se concretizou por dificuldades financeiras.

Além das atividades formativas, o Afroativos também produz e sistematiza conhecimento. O coletivo já lançou três livros com registros das experiências, reflexões e produções construídas ao longo do projeto e se prepara para a publicação do quarto volume, reforçando o compromisso com a memória, a circulação de saberes e o protagonismo estudantil.

Relatos que revelam transformação

Os efeitos do Afroativos se manifestam de forma concreta nas experiências de crianças e adolescentes que participam do projeto. Os relatos atravessam autoestima, pertencimento e enfrentamento cotidiano ao racismo, dentro da escola e nos bairros onde vivem.

Jamíly Rodrigues de Oliveira, 14 anos, entrou no Afroativos em 2025 e afirma que o coletivo transformou a forma como se enxerga e se relaciona com outras crianças. “Uma coisa que eu achei muito importante aqui do Afro é que, que nem a ‘sora’ falou, não é um professor falando com a gente.” Segundo ela, cada integrante assume responsabilidades no grupo. “É tão bom nós ensinar outras crianças. A gente consegue entender o lado delas também, porque a gente já se passou por aquilo.”

Oliveira diz que chegou ao projeto com receio, mas encontrou acolhimento. Moradora da Restinga, ela afirma que o Afroativos foi decisivo para enfrentar o racismo. “Meu propósito foi parar com esse racismo, porque muitas vezes eu sofria.” Também relata mudanças na relação com o próprio corpo. “Eu era muito quieta, calada, não aceitava meu cabelo.” Segundo ela, o acolhimento da professora Larisse marcou uma virada.

Maria Sofia Assunção Rodrigues, 13 anos, participa do Afroativos há cerca de dois anos. Ela conta que chegou ao coletivo após sofrer racismo na escola. “Sofria com o que falavam do meu cabelo e minha mãe chorava por causa de mim.” Para ela, o projeto representou apoio e proteção. “A ‘sora’ Larisse me defendeu em momentos que eu estava chorando.” Filha única, diz que encontrou pertencimento. “Quando eu entrei, me senti bem e melhor do que eu estava.”

Helena Fraga de Oliveira, 11 anos, chegou ao Afroativos por meio do Livro Pop, projeto de leitura criado por sua turma. “A gente lia para crianças, adultos, adolescentes.” Moradora da Lomba do Pinheiro, ela conta que leva os aprendizados para casa. “Eu sempre levo para ele que não pode falar isso”, diz sobre o irmão mais novo. Sobre o projeto de leitura, explica: “Levamos leitura e muitos livros de racismo pra lá.”

Valentina Félix, 11 anos, entrou no Afroativos após sofrer agressões racistas na antiga escola. “Ela dizia que meu cabelo era feio e sempre me batia.” A mudança de escola e o ingresso no projeto, segundo ela, trouxeram mais segurança. “Agora eu ando de short, estou me acostumando a usar manga curta na rua.”

Maria Clara Moraes Freitas Bart, 8 anos, participa do Afroativos há dois anos. “Eu entrei porque não me aceitavam como filha da minha mãe. Minha mãe é branca e eu sou negra. Eu sofri muito por causa da minha testa e da minha cor.” Ela afirma que o projeto contribuiu para fortalecer a autoestima. “Agora eu estou me aceitando mais e gostando de mim.”

Um aluno que não será identificado, de 10 anos, entrou no Afroativos no início do ano e define o espaço como um lugar de acolhimento. “Eu sou uma pessoa da comunidade trans. No começo da transição eu sofri muito.” Ele afirma que encontrou respeito no coletivo. “Aqui, na chamada, me chamam pelo nome que eu me identifico, tudo certinho.” Em casa, enfrenta rejeição. “Aqui é uma segunda família. Toda vez que eu me sinto mal, eu conto para alguém.”

Ao final, as crianças e adolescentes sintetizam o sentido do coletivo em uma mensagem direta para colegas, o território e quem quer que os escute: “Nós somos Afroativos. A gente luta pelo respeito. Tem que soltar o cabelo e prender o preconceito.”

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