Vozes de Emaús: Natal - uma festa perigosa. Artigo de Luiz Carlos Susin

Arte: Lauren Palma | IHU

18 Dezembro 2025

"Fica claro: Natal é solidariedade e esperança na periferia, é lá onde está o menino-Deus. O resto é cerimônia – belas, mas com perigo de atoleiro!", escreve Luiz Carlos Susin, doutor em Teologia e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Luiz Carlos Susin (Foto: Arquivo PUCRS).

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Eis o artigo.

O Natal porta um enigma e um perigo. Mas primeiro, um olhar sobre como se transformou e o que resta do Natal. Os detalhes mais originais do Natal podem ser encontrados nas narrativas cuidadosamente simbólicas de Lucas e Mateus. Desde a Idade Média, o presépio é a invenção visual daquelas singelas narrativas.

Natal é festa de presentes? Gênesis 49 prometia que “os povos trarão seus tributos” a Judá. Bem, lá estão os sábios de outras religiões, em seus camelos, trazendo presentes ao menino sem teto. Hoje presente é para renovar laços de família, relações afetivas com quem desejamos ter prazer de conviver. E o menino sem teto, nascido no estábulo porque não tinha lugar em casa alguma? Sim, a gente providencia alguns presentes para crianças pobres.

Natal, agora, é ceia natalina, com peru e vinho especial ou churrasco e cerveja. Em Isaías 1,3 o profeta esbravejava: “O boi conhece o seu dono, e o jumento, a manjedoura de seu senhor, mas Israel é incapaz de conhecer!” Lá está o menino em pleno inverno na casa do boi e do burro, com um pouco de aconchego e calor. Natal de hoje, o boi vai para a mesa com o peru.

Natal é festa de luz? Na Bíblia há uma recorrente promessa messiânica, sobretudo no livro de Isaías: Ele seria “luz das nações”. Mas os sábios se guiaram pela luz da estrela, uma crença de outra religião, que soava superstição na religião dos povos da Bíblia. Foram, então, ao palácio de Herodes: “Estrela grande no céu, gente grande na terra”, acreditavam. Herodes, com maldade, preferiu a leitura contida no Antigo Testamento. Mas foi a luz da superstição com boa vontade e bom coração que levou até Belém. E o que era superstição se tornou a luz que encontrou o menino! Já hoje as luzes brilham nos shoppings e avenidas, mas o caminho para o menino periférico, o cometa com a cauda apontando para o beco escuro, tem “luz precária”, como dizem na vila, às vezes com “gatos”.

Natal é festa de paz e alegria? Na chegada inesperada dos sábios estranhos à sua religião, Jerusalém ficou perturbada com Herodes, diz a narrativa de Mateus, portanto nada de alegria por lá no Natal. Lucas conta que pastores, gente de periferia, que lidava com trabalho sujo, foram os que se surpreenderam com a notícia: na mesma região nasceu “para vocês”, diz o anjo, um salvador, um menino envolto em pobres panos. Foram ver e voltaram maravilhados, contando pra todo mundo: isso é alegria!

Natal é festa da família reunida? As famílias de Belém não receberam o menino porque deviam estar reunidas, porque havia recenseamento e muito movimento. Não tinham lugar para eles, diz a narrativa de Lucas. E a família do Natal, Jesus, Maria e José... mais parece um “arranjo” bem heterodoxo de família: José não era bem o pai, Maria engravidou antes de coabitarem, por obra do Espírito, a quem o filho não chamaria propriamente de Pai... Pensando em família biológica, está tudo errado. Família de Jesus é quem crê e pratica a Palavra de Deus, diria ele mesmo mais tarde. A mãe foi elogiada pela parente Isabel por ter acreditado, não por ser mãe biológica. Tanto não era uma família “certinha” que houve o sério risco de mal-entendido, e José, por ser justo, ao invés de cumprir a lei, não expôs a noiva publicamente. Sua fé é que superou sua angústia. 

Mas o Natal, que virou festa de consumo por baixo da necessidade de dar presentes e assim criar ou renovar laços afetivos, tem um problema mais profundo. Claro que contemplar o presépio tão singelo, com a mãe de olhar doce voltado para a inocência do menino de bracinhos abertos, e a paisagem bucólica com pastores e suas ovelhas, com sábios e seus camelos pelos caminhos rurais, tudo encimado pelo anjo que anuncia a visita dos céus à terra, um Deus que se torna criança na simplicidade de uma cabana, é o gozo de uma festa de nascimento e inocência. O Natal, porém, lá no fundo da alma, tem algo de melancólico, de luto doloroso por sonhos de um mundo inocente, uma infância tranquila, um mundo de paz, de pureza e de fraternidade que até desejamos, mas que sabemos ser apenas desejo: a realidade é outra coisa.

O que está acontecendo na raiz da melancolia do Natal, no latejar oculto de uma “síndrome de depressão natalina”, como advertem alguns psicólogos, deve, portanto, ser buscado mais abaixo, talvez em nosso inconsciente ancestral e coletivo. É que o Natal nos remete à nossa própria inocência, à nossa infância, irremediavelmente perdida, extraviada e sepultada sob as exigências da vida dura e seus conflitos. Eles, os conflitos, estão por toda parte, na família, nos laços afetivos, nos trabalhos que precisam dar conta do custo de viver, no diário de notícias de um mundo que insiste na corrupção e na injustiça. E a tentação é de que passe de uma vez esta festa que toca as feridas. Afinal, desejamos a paz e a reconciliação, e o que temos - e persiste - é o conflito e a dor de viver sem realizar os melhores bens que desejamos. E a tentação de desistir, de beber além da conta, de ideias autodestrutivas: o Natal é um evento que produz um pico de ideações suicidas.

Parece mau gosto destampar esse lado perigoso da festa. Que esfinge enigmática pode nos devorar no Natal? É bastante simples: ele corre o risco de nos induzir a uma “festa de origem”. Nos remete a um tempo paradisíaco retratado no presépio, nas músicas, nas homilias, um paraíso perdido. Mas é um passado e uma saudade do que na verdade nunca fomos. Em muitas religiões arcaicas, as origens são ritualizadas com narrativas e símbolos heroicos de batalhas sobre cadáveres, de fundações de cidades e impérios com altas doses de violência conquistadora. São origens triunfais e violências elogiadas pela história dos vencedores. Basta ler Heródoto para constatar. Na cultura romana, o Natal cristão substituiu a festa do Natalis invicti solis, uma saturnal (ou bacanal, na versão latina) no coração do inverno, que terminava na imolação do “rei momo” e na oferta do seu sangue para a revitalização do sol que renasceria. Os cristãos entenderam que o novo sol nasce sem precisar nosso sangue, nem de criação de caos bacanal. O sol que nasce é o Menino de Belém, doce, pacífico, inocente e amável. Não é mítico, é histórico. Não é um arquétipo de origem, é uma promessa divina. Mas porque a melancolia insiste e obriga ao luto de uma vida que não se tem?

É que o Natal, na verdade, não é uma festa triunfal de origens, uma inauguração grandiosa, e aqui está a confusão. Ele é o primeiro passo de um caminho divino sobre a terra. É o começo de uma vida cotidiana em Nazaré sob o peso do império romano e da hipocrisia de muitos religiosos, é o começo de uma missão cheia de trabalho e fadiga na dependência da adesão e da generosidade de outros, é o abraço ao risco que acabou se concretizando na injustiça e no abandono a uma execução terrível de crucificação no meio da vida.

O sol de justiça e de paz só brilha inteiro e sem perturbação na manhã da Páscoa. Por isso o Natal, não sendo uma festa de origens, não é um convite a olhar para o passado. É o convite a começar a olhar para o compromisso de Deus com o futuro da terra, dos que peregrinam em aflições. Natal é apenas o começo de um caminho em que o principal está no futuro, no “por-vir” da Páscoa, em Pentecostes. Sem olhar para frente, sem a Páscoa e Pentecostes, o Natal se perde numa regressão impossível e doentia às origens. Aqui reside seu enigma e seu perigo. No Natal, são, de fato, os pastores, companheiros impuros de periferia, com seus animais de sobrevivência, e os sábios, vindos de outras religiões e seus estranhos presentes, que ajudam a dar sentido de festa sem correr risco de depressão natalina. Fica claro: Natal é solidariedade e esperança na periferia, é lá onde está o menino-Deus. O resto é cerimônia – belas, mas com perigo de atoleiro!

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