Permita-me um gesto antigo: estenda a mão. Vamos caminhar juntos, mas não para a Nova York dos cartões-postais ou das comédias românticas. Quero levá-lo para a cidade onde o vapor dos bueiros tem gosto de ferro e a esperança precisa ser servida em conchas de sopa. Para entender a liturgia que se desenrola no asfalto molhado, preciso que você vista isto: um Walkman Sony prateado. Sinta o peso do plástico frio. Agora, aperte o play. Ouça o clique mecânico, o leve chiado da fita magnética girando. Estamos no Lado B do álbum Thriller, faixa 3.
Quando os sintetizadores de Human Nature começarem a cair como uma chuva azulada, não olhe para os arranha-céus. Olhe para baixo. Neste conto de Natal que atravessa o tempo — da neve suja de 1982 à chuva ácida de 2025 —, o Menino Deus não nasce num berço de ouro, mas na “manjedoura de isopor” de uma missão jesuíta na Rua 16. Do soluço rítmico de Michael Jackson à teologia silenciosa de Santo Inácio de Loyola, convidamos você a testemunhar o milagre da “Encarnação Suja”: o momento exato em que a glória de Deus se esvazia para caber num copo de café oferecido a um estranho. É uma jornada sobre a fome, a música e a teimosia da graça em germinar no concreto.
O historiador Thiago Gama, doutorando pelo Programa de Pós-graduação em História Comparada da UFRJ, oferece este breve e intenso Auto de Natal a todos os leitores e leitoras do Instituto Humanitas Unisinos — IHU, aos seus jornalistas, editores, diagramadores, corpo de funcionários, equipe de apoio do setor de serviços gerais, equipe de limpeza, equipe de T.I., contribuintes e colaboradores. Esta oferta reside na certeza de que continuaremos juntos na travessia para 2026, interpretando as dores da realidade, consolando-nos mutuamente na esperança e na Caridade de Cristo, estudando com rigor, questionando com mansidão e sabedoria, com discretio inaciana, sempre em profunda comunhão com a Igreja Católica e a Espiritualidade Jesuíta. Que esta leitura seja, antes de tudo, um ato de amor e inteligência para a maior Glória de Deus! Se ela puder aquecer o coração de apenas um leitor atento, de uma leitora atenta, independente de quem seja, o autor considerará estar combatendo o bom combate.
Sente-se aqui, leitor. Não no banco de veludo vermelho do Radio City Music Hall, onde as Rockettes chutam o ar com uma simetria fascista para celebrar um feriado que foi sequestrado pela Coca-Cola. Sente-se aqui, no meio-fio molhado da Rua 16, esquina com a Sexta Avenida. O relógio marca seis da manhã desta véspera de Natal de 2025, e o céu sobre Manhattan não tem a cor de um manto sagrado; tem a cor de um hematoma antigo, um roxo-acinzentado que promete chuva, não neve.
Esqueça os filmes da Hallmark. Deus não nasce na neve fofa e cenográfica que cai suavemente sobre o Central Park. Deus nasce na chuva gelada, aquela agulha líquida que entra pelo colarinho, encharca a meia e lembra aos ossos que somos pó e, pior, pó molhado. O “peso úmido” de agosto que Michael Jackson cantava em 1982 congelou, virou uma lâmina de gelo invisível que corta a pele do rosto.
Ouça. A cidade ainda está em coma induzido. O zumbido do metrô subterrâneo é o respirador artificial que a mantém viva. E, flutuando sobre esse silêncio de concreto úmido, vem o som. Não são sinos de bronze. É um sintetizador.
É aquela cascata descendente, azulada e líquida de Steve Porcaro. Human Nature. Mas aqui, nesta manhã de 2025, a música não sai de um rádio boombox cromado de 1982; ela sai abafada dos fones de ouvido de cancelamento de ruído de um jovem executivo que caminha de cabeça baixa, o rosto iluminado apenas pela luz espectral da tela do smartphone. Ele não olha para a rua.
Ele não vê o vapor que sobe dos bueiros como incenso de uma missa subterrânea. Ele está sozinho numa multidão de fantasmas digitais, deslizando o dedo sobre o vidro, procurando conexão num algoritmo que só vende solidão. Michael canta no ouvido dele: “Looking out, across the nighttime / The city winks a sleepless eye...”.
Aquele “piscar de olhos” da cidade mudou. Nos anos 80, era o neon nervoso da Times Square, o crack e a adrenalina. Hoje, em 2025, o piscar é o LED frio das notificações que não param, a dopamina barata que nos impede de dormir e de rezar. A insônia teológica de Nova York se tornou crônica. A cidade não dorme porque tem pavor de fechar os olhos e perceber que, no escuro do seu quarto de vidro na Billionaires’ Row, ela é órfã.
Mas Inácio de Loyola está acordado. O fundador da Companhia de Jesus, se estivesse encarnado hoje, ignoraria o presépio de tamanho real e gesso polido da Catedral de São Patrício. Inácio, o homem que mancava por causa de uma bala de canhão e que aprendeu a ver Deus na poeira da estrada, estaria aqui, encostado na parede de tijolos fuliginosos da Igreja de São Francisco Xavier. Ele estaria olhando para a chuva que lava a sarjeta e diria: “Hoc est enim Corpus meum”.
Esta sujeira é o meu Corpo. Esta cidade quebrada é a manjedoura. Para Inácio, a Encarnação não é um evento “bonito”; é um escândalo. É o Infinito se comprimindo na carne finita, suja e vulnerável. É o Deus que troca a galáxia por uma fralda. E Nova York, nesta manhã de véspera, é o palco perfeito para esse drama, porque aqui a humanidade está exposta em carne viva.
O incenso do asfalto: em Nova York, a oração sobe com o vapor do metrô e o rosto humano invisível (Foto: Unsplash)
Michael Jackson entra na música. E agora, leitor, preste atenção na teologia do som. A voz dele não é apenas afinação; é Pneumatologia (a ciência do Espírito). Ouça o soluço. Aquele ‘hiccup’ rítmico, aquela quebra na respiração que ele faz antes de dizer “Why, why?”.
Aquilo não é estilo. Aquilo é a Glotologia da Angústia. É o som de uma alma que tenta respirar num mundo que lhe aperta a traqueia. É o Espírito Santo (Ruah, o sopro) tentando entrar num corpo que a fama, o dinheiro e a cidade tentam asfixiar. Michael soluça ritmicamente, transformando a falta de ar em liturgia. Ele canta como quem confessa um pecado que não é dele, mas de toda a civilização ocidental: o pecado de ter tudo e não sentir nada.
Em 1982, ele cantava para uma cidade violenta, cheia de medo físico. Em 2025, a violência mudou. A AIDS não é mais a sentença de morte que assombrava o Village, mas uma nova pandemia silenciosa tomou conta: a Atrofia do Toque.
“Reaching out to touch a stranger...” (Estendendo a mão para tocar um estranho...). Hoje, tocar um estranho é um ato terrorista. Ninguém se toca. Os corpos deslizam blindados por roupas de marca e ironia. O “estranho” é uma ameaça sanitária ou ideológica. Mas a música insiste, teimosa, pairando no ar gelado das seis da manhã: Toque. Toque. A carne quer pele.
E é aqui, na fricção entre a voz suplicante de Michael e o frio cortante da Rua 16, que a Companhia de Jesus abre a porta. Não a porta do céu, mas a porta da cozinha. O cheiro que invade a rua não é de mirra, nem de pinheiro de Natal. É cheiro de cebola refogada em caldeirões industriais, cheiro de café forte e barato, cheiro de roupa úmida secando num corpo quente.
É o cheiro da Xavier Mission. Enquanto a cidade alta dorme em seus lençóis de linho egípcio, sonhando com o Papai Noel da Amazon, os jesuítas estão acordados, preparando a manjedoura real.
Eles sabem que o Menino Jesus não vai nascer num berço de ouro. Ele vai chegar a qualquer momento, talvez disfarçado naquele homem que dorme sobre o papelão da saída de ventilação do metrô, coberto por um cobertor térmico prateado que parece um manto espacial futurista e sagrado.
A manhã avança. A chuva aperta. A cidade pisca seu olho insone, cínica e cansada. Mas a música não para. O baixo de Human Nature pulsa como um coração que se recusa a infartar. E Inácio de Loyola, invisível na neblina, sorri. Porque ele sabe que é exatamente neste cenário de desolação e isopor, onde a esperança parece ter sido despejada por falta de pagamento, que o Milagre gosta de acontecer.
O palco está montado. A Babilônia está pronta para ser batizada, não com água benta, mas com a chuva ácida da realidade e a sopa quente da caridade.
O meio-dia em Nova York não traz o sol a pino; traz apenas uma mudança na tonalidade do cinza. A chuva engrossou. Agora é uma cortina de água gelada que lava a fuligem das gárgulas Art Déco e escorre para as sarjetas, levando consigo pontas de cigarro, recibos de compras de Natal de última hora e a ilusão de que esta cidade é limpa.
A música nos fones do executivo solitário muda de tom. Os acordes de teclado descem para uma região grave, úmida e pressagiosa, como se a cidade estivesse prendendo a respiração antes de um golpe de misericórdia. Michael canta, com aquela inocência quase suicida: “If this town is just an apple / Then let me take a bite...” (Se esta cidade é apenas uma maçã / Então deixe-me dar uma mordida...).
Ele canta sobre morder a fruta com uma fome edênica, acreditando que o suco será doce. Mas Inácio de Loyola, observando da esquina da West 15th Street, sabe a verdade que a teologia e a rua ensinam: a maçã está envenenada até o caroço.
Esta “Grande Maçã” de 2025 é brilhante por fora, polida por trilhões de dólares de capital especulativo, mas por dentro, na polpa, ela fermenta. Se nos anos 80 o veneno era o crack e o descarte dos doentes mentais jogados nas calçadas por cortes orçamentários, hoje o veneno é mais sutil e letal: é a Indiferença Sistêmica.
A cidade morde seus filhos de volta. Ela cobra aluguéis que devoram a alma e expulsa para o frio quem não tem o código de barras da prosperidade tatuado no pulso. Mas é aqui, exatamente aqui, na fissura purulenta da “Maçã”, que a mística inaciana deixa de ser teoria de seminário e vira sangue.
Caminhemos alguns metros. Entre na Igreja de São Francisco Xavier. Não pela porta principal, onde os turistas tiram fotos, mas pela porta lateral, aquela que range como ossos velhos e que leva ao subsolo. Ali, desde 1983, opera a Xavier Mission. Eles não chamam de “refeitório”; chamam de Welcome Table (Mesa de Acolhida). O nome é uma tese eclesiológica.
A cena se desenrola sem trilha sonora épica, abafada pelo som da chuva lá fora. Um padre jesuíta — talvez um jovem escolástico em formação ou um veterano de cabelos brancos que já viu todas as crises desta cidade — está com a batina ou o avental manchado de sopa de lentilha. O cheiro é denso: legumes cozidos, vapor, roupas molhadas de lã velha e humanidade não lavada.
O padre serve o almoço de Natal para um homem que fala sozinho, que gesticula para inimigos invisíveis, cujos demônios são mais reais que os prédios de Midtown. Esse homem é o “estranho” que Michael queria tocar. Ele cheira a álcool barato, feridas não tratadas e dias sem banho — o odor do Cristo em putrefação na tumba antes da Ressurreição.
O padre não lhe dá um sermão sobre virtudes cívicas ou meritocracia; dá-lhe um prato quente. E, mais importante, dá-lhe um olhar que não julga, um olhar que diz: “Você existe”.
É aqui que acontece o milagre que Michael Jackson buscava tateando no escuro com sua luva de lantejoulas. Esqueça os ostensórios de ouro e os cálices de prata da missa do Galo no Vaticano. O verdadeiro milagre de Natal acontece agora: a Transubstanciação do Isopor.
Observe a cena com os olhos espirituais de Inácio. Ali, na fila da sopa, uma mão calejada, trêmula de frio e abstinência, recebe um copo de café fumegante. O vapor sobe em espirais, misturando-se com a neblina que entra pela porta aberta.
Por um instante, aquele copo de isopor barato, branco, poroso e descartável, brilha sob a luz fluorescente da cantina. Ele brilha como o Santo Graal da Rua 16.
A Kenosis do Isopor: Deus se faz embalagem descartável para que possa ser segurado por mãos trêmulas sem queimá-las com Sua glória (Foto: Unsplash)
Não há pedras preciosas. Há apenas o poliestireno expandido, o material mais humilde e desprezível da era industrial. Mas ali, naquela liturgia do descartável, o Deus de Inácio se faz presente não na Majestade, mas na Kenosis absoluta — o esvaziamento total.
O Verbo não se fez apenas carne; Ele se fez embalagem barata. Deus virou isopor para que pudesse ser segurado por mãos sujas sem queimá-las com Sua glória insuportável. Ele aceitou ser descartável para que aquele homem, considerado “lixo” pela cidade, pudesse beber o calor da vida.
Santo Inácio, que em seus dias de mendicante em Manresa comia ervas e pedia esmolas, reconheceria essa missa. Ele veria naquele padre servindo a sopa a realização suprema dos Exercícios Espirituais: a Contemplação para Alcançar o Amor. O amor não está nas palavras; o amor está na logística da misericórdia. Fazer sopa para 2.000 pessoas num domingo de chuva é uma operação de guerra onde a munição é o feijão e a vitória é um estômago cheio por mais três horas.
E Michael, o menino-rei quebrado, canta ao fundo na playlist da alma da cidade: “I like livin’ this way...” (Eu gosto de viver assim...). Talvez ele não gostasse. Talvez fosse um grito de socorro disfarçado de hedonismo. Mas a frase ecoa na cantina com um novo sentido: viver “assim”, na mistura, no perigo, na dependência radical uns dos outros, é a única forma de vida cristã possível numa cidade que decretou a morte de Deus e a ascensão do Mercado.
O “Eu” solitário do refrão se dissolve no “Nós” da fila da sopa. A cidade tenta nos isolar em cubículos de vidro, tenta nos vender a solidão como “privacidade exclusiva”. Mas a “natureza humana”, essa força gravitacional da fome e do afeto que Michael canta, nos empurra uns contra os outros.
Nesse esbarrão, nesse atrito acidental e sagrado de ombros molhados na fila da Welcome Table, a cidade sobrevive à sua própria maldição. A Maçã foi mordida, o veneno foi ingerido, mas o antídoto está sendo servido numa concha de sopa.
A tarde cai cedo no inverno de Nova York. Às três horas, a luz já está morrendo, tingindo os prédios de um azul hematoma. Michael canta no ouvido do mundo: “Reaching out to touch a stranger...” (Estendendo a mão para tocar um estranho...).
Em 2025, tocar um estranho é um ato de insurreição biológica. Vivemos na era da assepsia, onde o “outro” é um vetor de vírus ou de ideias perigosas. A cidade se blindou. Mas o Natal é, por definição teológica, o Fim da Distância. Deus “tocou” o estranho (a humanidade caída) tornando-se carne. Ele rompeu o protocolo de segurança do Céu.
E quem entende de tocar a carne da cidade? As mulheres. Não as da capa da Vogue digital, retocadas por inteligência artificial, mas as que sustentam o peso do concreto com os quadris, a coragem e o terço no bolso do uniforme.
Penso na energia vulcânica de uma Rosie Perez dançando contra o ar sufocante do Brooklyn, mas transposta para hoje. Ela não é uma vítima; ela é uma Odēgētria (a “Condutora”, a Virgem que aponta o Caminho) latina. Diferente da Virgem bizantina que aponta serenamente para o Cristo Pantocrator num ícone dourado, essa Odēgētria do Bronx aponta para a dignidade da terra, exigindo respeito no grito e no suor.
Penso na nobreza silenciosa das mães solteiras que pegam o trem 7 vindo do Queens. Neste exato momento, enquanto a cidade se prepara para a Ceia, elas estão voltando do turno da limpeza em Wall Street. Elas limparam os templos do dinheiro para que os sacerdotes do mercado pudessem celebrar seus bônus. Elas são as parteiras invisíveis da riqueza alheia.
A teologia do corpo de João Paulo II, que falou de uma “cultura da vida” no meio da “cultura da morte”, ganha carne nelas. Seus corpos cansados no vagão do metrô são tabernáculos vivos transportando a esperança de um presente de Natal humilde para os filhos que esperam em casa. Mas a resistência não se faz apenas com limpeza e sobrevivência; faz-se com a Arma da Letra.
Para que o filho da faxineira não seja devorado pelo Herodes da rua — seja ele o tráfico de fentanil ou a desesperança do algoritmo —, é preciso esconder o Menino. É preciso uma manjedoura blindada.
Foi assim que, no coração do Lower East Side, na Rua 2 (East 2nd Street), floresceu o milagre do Nativity Mission Center. O nome não poderia ser mais profético para esta noite: Centro da Missão da Natividade.
Inácio de Loyola, que começou a ensinar latim para crianças em Barcelona já adulto e humilde, sorriria ao ver a figura do Padre Jack Podsiadlo, SJ. Nos anos de ferro, quando o bairro era uma zona de guerra do crack, Jack e seus companheiros não fugiram. Eles transformaram a escola numa estalagem que não diz “não há vagas”.
A pedagogia ali era a da Cura Pela Presença. O lema não escrito era uma resposta direta ao cinismo da cidade: “A rua quer te matar? Nós vamos te ensinar a viver. Você não sabe nadar? Nós vamos te ensinar, mas você tem que pular na água”.
“O General de Campo: Padre Jack Podsiadlo, SJ, o homem que transformou a educação no Lower East Side em uma trincheira contra o desespero.”
A escola funcionava até a noite, invadindo a escuridão, não por obsessão acadêmica, mas porque a luz da sala de aula era o único escudo contra a treva lá fora. Padre Jack era o São José dessa Sagrada Família estendida, protegendo o “divino menino” (cada aluno latino pobre) dos lobos da noite.
E Michael canta: “Get me out into the nighttime...”. A Nativity respondia levando-os para fora, mas não para a noite do crime. Levava-os para o Camp Monserrate, em Lake Placid. Imagine, leitor: tirar um menino que só conhece o cinza do concreto e jogá-lo na montanha, no silêncio verde de Deus. Ali, a “natureza humana” podia respirar sem a asma da pobreza.
Hoje, em 2025, o “Modelo Nativity” gerou milhares de doutores, advogados e pais de família que quebraram o ciclo da miséria. Eles são os Reis Magos que voltaram por outro caminho.
A melodia de Human Nature flutua sobre essa escola-manjedoura. Os sintetizadores imitam gotas de chuva, mas aqui a chuva não molha; ela batiza. Michael pergunta “Why? Why?”. Os jesuítas da Nativity respondiam com a vida: “Porque cada criança é um universo. E o Natal é a festa de impedir que o universo morra na calçada.”
O Menino Jesus está salvo na Rua 2. Mas a cidade lá fora continua piscando seus olhos elétricos, faminta por mais vítimas.
A noite de Natal desce sobre Manhattan não como um manto de paz, mas como uma rede de captura. As luzes da cidade se acendem todas ao mesmo tempo, um espasmo elétrico que ofusca as estrelas.
A melodia de Human Nature flutua sobre essa tensão racial e social como um incenso que tenta acalmar uma fera enjaulada. Os sintetizadores imitam gotas de chuva batendo em latas de lixo metálicas, mas o que Michael canta corta a neblina com uma precisão cirúrgica: “Electric eyes are everywhere...” (Olhos elétricos estão em toda parte...).
Eles veem tudo. Na Nova York de 1982, esses “olhos elétricos” eram os postes de luz de vapor de sódio. Hoje, em 2025, eles são o Panóptico Digital. Câmeras de reconhecimento facial em cada esquina, drones da NYPD pairando silenciosos como gárgulas futuristas sob a chuva, o algoritmo que rastreia o passo do imigrante ilegal.
Eles veem a brutalidade policial na esquina escura, o jovem negro encostado na parede sem motivo, revistado com a presunção de culpa tatuada na pele. Michael, o homem negro mais famoso do mundo que aos poucos embranquecia sob os holofotes numa tentativa desesperada de ser “universal” (ou invisível?), cantava essa paranoia com a suavidade de quem sabe que está sendo caçado.
Mas esses olhos... ah, eles são cegos para o mistério. Eles registram o movimento, mas perdem a graça. Eles veem o crime, mas não veem a resistência barroca de Little Italy.
Caminhemos para o sul, leitor. Esqueça a Times Square. A teologia real acontece na Rua Mulberry. Mesmo fora da época da festa, a presença de San Gennaro permeia o asfalto. Ali, a fé opera uma transação que escandalizaria um puritano de Boston, mas que um católico — e um jesuíta — entende visceralmente.
Imagine a estátua do Santo sendo carregada, coberta de notas alfinetadas no manto — armadura de papel-moeda sobre o bispo mártir. Para o puritano, isso é simonia. Para Inácio, é a Encarnação Suja da Graça: o suor do trabalho oferecido como materialidade da fé. O Santo, coberto de dinheiro sob a chuva de Natal, carrega o peso econômico de seus devotos. É um “Cristo Econômico” que assume as dívidas do povo.
A Encarnação Suja da Graça: em Little Italy, a fé não é abstrata; ela é alfinetada no manto do santo com o suor do trabalho diário (Foto: Wikimedia Commons)
Nova York é essa Babel onde Buda e Cristo dividem a calçada sem brigar por território. Atravesse a rua Canal e você sai de Nápoles e cai em Cantão.
Em Chinatown, o Natal tem cheiro de sândalo e peixe cru. E ali, na Igreja da Transfiguração (Church of the Transfiguration) na Mott Street, os jesuítas e o clero local operam outro milagre cotidiano. A Missa do Galo será rezada em cantonês para uma congregação que chora em dialeto chinês, pensa em mandarim e reza a liturgia latina.
O Espírito Santo aqui se revela como o Grande Poliglota. Ele reverte a maldição de Babel não fazendo todos falarem a mesma língua (como quer o imperialismo do inglês corporativo), mas fazendo com que todos se entendam na Linguagem da Necessidade.
A missão jesuíta sempre foi a da Inculturação — Matteo Ricci vestido de mandarim na China, Roberto de Nobili de brâmane na Índia. Em Nova York, o jesuíta veste-se de Nova York: rápido, prático, místico. Deus está tanto no peixe morto da banca quanto no dólar alfinetado no manto do santo.
A cidade tenta nos isolar em cubículos de vidro, vender a solidão como “segurança”. Mas a “natureza humana” (Human Nature), essa força gravitacional do afeto que Michael canta, nos empurra uns contra os outros.
Desça ao metrô desta véspera de Natal. Linha 6. Cheiro de ozônio, roupa molhada, humanidade cansada. Corpos se tocam sem querer. O suor do executivo mistura-se com o da faxineira. Michael pergunta "Why, why?". A resposta está na física dos corpos: somos seres magnéticos. Nesse esbarrão sagrado no vagão lotado, a cidade sobrevive.
Ela não é feita de aço; é feita de gente que se recusa a ir embora, mesmo quando a “Grande Maçã” está podre. Porque o povo sabe que é na podridão que a semente germina. E Nova York tem restos de sobra para alimentar uma floresta inteira de santos anônimos.
Michael termina o verso pedindo para ser levado para a noite, porque “quatro paredes não vão me segurar”. Ele está certo. A igreja de pedra não segura Deus; ela apenas O aponta. O Deus do Natal está lá fora, na fricção, no perigo, na eletricidade estática de oito milhões de solidões que, por um milagre da graça, decidem, dia após dia, não desistir.
“Get me out into the nighttime / Four walls won't hold me tonight...” Michael canta como um prisioneiro que serra as grades da própria fama. Onze da noite. Falta uma hora para o Natal. A cidade vertical mergulhou no coma.
Olhe para cima agora, leitor. As catedrais de vidro da Park Avenue e da Billionaires’ Row são mausoléus refrigerados. As luzes dos escritórios estão acesas — o capital tem um pavor infantil do escuro —, mas não há ninguém lá.
São torres fantasmas. O medo de novas pandemias e a fobia do contato transformaram os arranha-céus em lápides de LED. O executivo fugiu para os Hamptons, blindado em seu condomínio asséptico. As “quatro paredes” do escritório não o seguraram; o pavor do “estranho” foi mais forte.
Mas o vácuo não dura. A natureza (humana e divina) abomina o deserto. No espaço deixado pela fuga do dinheiro covarde, chegaram os novos refugiados — venezuelanos, haitianos, sudaneses —, despejados na cidade no auge do inverno. A estratégia de Herodes mudou: ele não manda matar os inocentes; ele os expõe ao frio, esperando que a cidade colapse e feche o coração. Mas eles subestimaram a Teologia da Permanência. Enquanto a cidade oficial se tranca, a Companhia de Jesus destranca.
No Roosevelt Hotel, transformado em centro de triagem, e na entrada lateral da Xavier Mission, a movimentação às onze da noite é frenética. Não há ceia com peru e vinho caro. Há a logística da sobrevivência.
Os jesuítas não fugiram. Eles praticam o Voto de Estabilidade do Asfalto: quando o último rico apagar a luz e fugir para a fortaleza branca da segurança privada, haverá um padre jesuíta na Rua 16 acendendo uma vela. Haverá um leigo inaciano servindo arroz. Porque eles sabem que o Natal não é a festa da família feliz; é a festa da Sagrada Família Refugiada.
José e Maria estão ali, naquele casal venezuelano tremendo de frio, segurando um filho envolto em mantas térmicas prateadas que refletem as luzes da polícia. Eles não encontraram lugar na estalagem do sistema, mas encontraram lugar na “manjedoura suja” da missão.
O projeto de transformar Nova York num condomínio fechado, numa cidade estéril, falhou. Eles odeiam a Nova York da “natureza humana”, a cidade da fricção, do suor, do “olho elétrico” que vê tudo e não julga nada. Mas eles perderam. Porque Nova York já não é um lugar; é uma categoria espiritual.
A música de Michael começa a desaparecer. O baixo cardíaco desacelera. Os sintetizadores evaporam na neblina gelada. A voz, doce, quebrada e agora eterna, dissolve-se no ar: “Why, why? Tell ‘em that is human nature...”.
A pergunta “Por quê?” fica suspensa sobre o Rio Hudson. Não há resposta teórica. A teologia sistemática cala-se diante do frio de dezembro. O dogma se ajoelha diante da dor.
Faltam cinco minutos para a meia-noite. O silêncio retoma a cidade. Mas não é um silêncio vazio. Na calçada molhada, sob a marquise da igreja, um homem recebe o último presente da noite. Não é ouro, nem incenso, nem mirra. É o copo.
O vapor sobe, misturando-se com a respiração da cidade. O padre entrega o café. As mãos se tocam — pele com pele, a insurreição final contra a assepsia. E ali, naquele instante, o copo de isopor barato, mordido na borda, brilha na escuridão.
Ele não precisa mais ser comparado ao Graal. Ele é. Ali está o Deus de Inácio. Não nas alturas, mas na sarjeta. Não na glória, mas na Kenosis. Deus virou isopor e café quente para que pudesse ser segurado por mãos trêmulas sem queimá-las. Ele se fez descartável para salvar os descartados.
O Natal aconteceu. A carne tocou a carne. E, na polifonia desafinada desta Babel de ferro e chuva, é só isso que temos. E é tudo o que precisamos.
Amém.