Deus escolhe um corpo que se estica e entra em trabalho de parto como o primeiro santuário do divino. Artigo de Kat Armas

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18 Dezembro 2025

A cada Advento, somos convidados a olhar novamente para uma cena que achamos que conhecemos: a Natividade. Uma criança de aparência angelical, envolta em panos limpos; animais dispostos como se estivessem em posição; e Maria, recém-saída do parto, ajoelhada em serena compostura. É uma imagem construída para nos acalmar, uma estética de paz e santidade.

O artigo é de Kat Armas, publicada por National Catholic Reporter, 17-12-2025. 

Kat Armas é uma autora, palestrante, podcaster, esposa e mãe cubano-americana (de dois filhos e vários animais de estimação, como galinhas, cabras, porcos, cachorros, gatos e abelhas), e uma aspirante a teóloga avó. Ela possui um mestrado em Teologia pela Vanderbilt Divinity School e um mestrado duplo em Divindade e mestrado em Artes em Teologia pelo Fuller Theological Seminary, onde recebeu o Prêmio Frederick Buechner de Excelência em Escrita. Kat é autora de três livros: Abuelita FaithSacred Belonging e seu lançamento mais recente, Liturgies for Resisting Empire.

Eis o artigo. 

Mas depois que dei à luz meu primeiro filho, pouco antes do Advento de 2021, esse quadro familiar me inquietou. A dissonância foi imediata. Depois de experimentar o sangue, o suor, o medo e o enorme esforço do parto, a Natividade polida pareceu desonesta — não de modo malicioso, mas porque flutua acima do mundo real, acima do mundo no qual Jesus de fato nasceu.

Por que isso importa? Porque o império constrói imagens da realidade que deseja que acreditemos. Essa Natividade higienizada comunica que a santidade existe apenas onde os corpos não suam, não sangram, não doem nem se quebram, como se a chegada de Deus tivesse de ser limpa de tudo o que é cru e real.

Mas a Encarnação é santa precisamente porque é humana.

Antes de os anjos anunciarem a boa notícia e os pastores correrem dos campos, Maria carregou o peso ordinário e extraordinário da gravidez. Sua pele se esticou para dar lugar a Deus. Sua respiração ficou mais curta à medida que a divindade pressionava seus pulmões. Ela provavelmente enfrentou noites sem dormir e o conhecimento aterrador de que o parto poderia matá-la, como matou tantas mulheres de seu tempo. Maria sustentou todo esse risco em seu corpo jovem e vulnerável.

Os relatos evangélicos não se detêm nesses detalhes, mas eles pulsam sob a história: o recenseamento que a deslocou, a longa viagem, o abrigo instável. Escritores antigos raramente descreviam a verdade carnal do trabalho de parto — gemidos, suor, laceração, sangue — talvez porque tais realidades fossem consideradas ordinárias demais, terrenas demais, profanas demais para histórias sagradas. E assim herdamos uma Encarnação suspensa do chão, como se santidade e humanidade não pudessem ocupar o mesmo espaço.

No entanto, o Advento insiste que são inseparáveis. Deus escolhe um corpo que se estica e entra em trabalho de parto como o primeiro santuário do divino.

O império, seja a Roma antiga ou as potências coloniais que mais tarde levaram símbolos cristãos pelo mundo, sempre tentou moldar a história da vinda de Deus. O mesmo império que controlava terras, deslocamentos e corpos é o tipo de poder que depois refez Maria à sua própria imagem; não como a corajosa jovem judia de pele morena que disse sim a Deus, mas como um ideal inalcançável usado para disciplinar mulheres ao silêncio.

Em grande parte da América Latina, onde a devoção mariana floresceu sob a conquista espanhola, Maria foi apresentada como a filha, a virgem e a mãe perfeitas — uma imagem instrumentalizada para impor normas ocidentais e reduzir a vida das mulheres a binarismos estreitos. Mas a Maria real dos Evangelhos está fora das tentativas do império de domesticá-la. Ela não é uma “quase-mulher” despojada de luta. É uma jovem camponesa cujo sim a Deus foi um ato de agência, coragem e resistência.

O Magnificat de Maria deixa isso claro. Seu cântico não é um sentimento suave. É uma proclamação da queda dos poderosos e da elevação dos pobres. Seu corpo — seu corpo quebrado, refugiado, moreno, feminino, nu, esticado, hormonal, marginalizado — torna-se a porta pela qual a divindade entrou no mundo e o lugar onde a lógica imperial começa a se desfazer por dentro.

A Encarnação não é asséptica. Não é simbólica. Não é um quadro de cartão de Natal. É carne, risco, esforço e respiração. E, no caso de Maria, é a vulnerabilidade de uma jovem em uma terra ocupada, dando à luz longe de casa, sem o cuidado de que talvez precisasse, sem saber o que viria a seguir. A santidade nunca foi feita para ser estéril. Santidade é Deus escolhendo nascer exatamente nos lugares que muitas vezes evitamos.

A imaginação cristã muitas vezes preferiu um Deus controlado e ordeiro, um Deus intocado pela necessidade corporal, um Deus que entra em salas limpas em vez de vidas bagunçadas. Mas o nascimento cru e sem edição de Jesus conta outra história.

A cena da Natividade, como muitas vezes a vemos, omite não apenas a verdade corporal do nascimento, mas também a verdade emocional. Nem toda gravidez termina em alegria. Nem todo choro na noite é de celebração. O Advento sempre sustentou o luto e o anseio junto com a esperança. O nascimento de Jesus não é exceção. O mesmo capítulo que nos dá anjos e pastores também nos dá a violência de Herodes, famílias deslocadas, crianças em perigo, uma família santa em fuga. A sombra do império paira sobre a manjedoura. E, ainda assim, é precisamente aqui — no instável, no perigoso, no não planejado — que Deus vem habitar.

A imaginação cristã muitas vezes preferiu um Deus controlado e ordeiro, um Deus intocado pela necessidade corporal, um Deus que entra em salas limpas em vez de vidas bagunçadas. Mas o nascimento cru e sem edição de Jesus revela algo diferente. Ele expõe tanto nosso desconforto com o corpo quanto a forma como fomos treinados a valorizar controle, limpeza e pureza acima da vulnerabilidade física ou emocional.

O império insiste que a santidade pertence aos poderosos, aos polidos, aos protegidos. Mas a Encarnação revela um Deus que se recusa a essa narrativa — que não se ameaça pelas realidades da nossa humanidade, que não está distante de nossos corpos, nossos medos ou nossos anseios. Se a Encarnação revela alguma coisa, é que Deus nos encontra nos espaços que o império desvaloriza: nas dores do parto e nas longas noites, no suor e nas lágrimas e nas perguntas sem resposta. Deus não entra no mundo pela perfeição, mas pela bela e complicada bagunça de ser humano — subvertendo todo sistema que insiste que nosso valor depende de ordem ou obediência.

Isso é boa notícia. Porque a maioria de nós vive longe de cenas perfeitas de Natividade. Conhecemos a dor do anseio, a incerteza da espera, a tensão de esperança e medo mantidas juntas. O Advento nomeia essa tensão. Ele diz a verdade sobre um mundo que anseia por libertação — e sobre um Deus que não espera condições perfeitas para se aproximar.

A paz do Advento não é a paz de imagens higienizadas; é a paz de Deus-conosco em nossa carne, em nossa luta, em nossa vulnerabilidade. Uma paz que nasce não em palácios, mas em estábulos. Uma paz que não se esconde da dor do mundo, mas a habita. Uma paz forte o bastante para sustentar juntos nosso sofrimento e nossa alegria. Ao vivermos este tempo, que nos lembremos de que a Encarnação não é limpa, controlada ou confortável. Ela é tão real quanto sangue e respiração. Tão arriscada quanto o parto. Tão terna quanto os braços de uma mãe.

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