Grokipedia, a enciclopédia que destrói o conhecimento. Artigo de Antonio Spadaro

Foto: Salvador Rios/Unplash

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17 Dezembro 2025

"A chegada da Grokipedia é um sintoma sísmico que nos força a reformular algumas perguntas fundamentais sobre o conhecimento, como o construímos e como o compartilhamos. A Wikipédia, para o bem ou para o mal, tem sido uma extraordinária máquina cultural por mais de 20 anos, um laboratório vivo onde o conhecimento não só era acumulado, mas também continuamente discutido, refinado, contestado e recomposto".

O artigo é de Antonio Spadaro, jesuíta e ex-diretor da revista La Civiltà Cattolica, publicado por La Repubblica, 15-12-2025. A tradução é de Luisa Rabolini

Spadaro ainda adverte sobre o perigo da enciclopédia de Musk. "Cada época, ao construir sua própria enciclopédia, expressa quem ela é. A Grokipedia nos diz que estamos imaginando um mundo em que a cultura pode ser gerada sem pessoas e consumida sem debate. É um alerta. Se aceitarmos que o conhecimento se torne um fluxo anônimo produzido por sistemas opacos, perdemos o fio que nos mantêm juntos. A única condição para que o conhecimento permaneça vivo, plural e humano é que alguém continue a se expor, a discutir, a deixar vestígios visíveis". 

Eis o artigo. 

Quando o franciscano Vincenzo Maria Coronelli publicou sua Biblioteca universal sagrado-profana em Veneza, no final do século XVII, não estava simplesmente compilando um repertório de conhecimentos: estava imaginando a ordem possível do mundo. O impulso era o de alguém que, diante da proliferação dos conhecimentos, sente a necessidade de um atlas mental capaz de orientar o ser humano em um universo repentinamente mais vasto. O mesmo espírito animou, um século depois, a empreitada de Diderot e d'Alembert: a Encyclopédie não era apenas um repositório de noções, mas um manifesto cultural, um convite à confiança no debate público, à coragem de propor novas perguntas. Afinal, cada época constrói sua própria enciclopédia para expressar quem é e o que pensa sobre o conhecimento.

É com essa longa memória que devemos observar o aparecimento, em outubro passado, da Grokipedia, a plataforma lançada por Elon Musk com o objetivo de ser "um passo necessário para a compreensão do Universo". Para quem ainda não ouviu falar, ela se apresenta como uma enciclopédia online, cujos conteúdos, no entanto, não são redigidos por uma comunidade de voluntários: são gerados pelo modelo linguístico Grok, o mesmo que alimenta os chatbots de Musk.

A Grokipedia nasce com a intenção de ser uma alternativa à Wikipédia, acusada de ser demasiado lenta, politizada e filtrada. É, em suas intenções, uma "enciclopédia IA": textos longos e aparentemente coerentes, produzidos por um algoritmo que imita a lógica do artigo enciclopédico sem qualquer autoria humana identificável.

Mas isso é apenas um fragmento de um cenário maior. Entre a Geração Z, está se espalhando o que a revista New Yorker chamou de "posting zero": as pessoas não postam mais, apenas rolam a tela. As redes sociais, nascidas como espaços do "sem humano em conexão”, tornaram-se corredores de passividade, rios de conteúdo sem paternidade. E é justamente à medida que o ‘eu’ sai de cena que chegam plataformas pensadas para substituí-lo completamente. O Sora, da OpenAI, usado por um milhão de usuários em cinco dias, gera vídeos em poucos segundos; o Vibes, da Meta, preenche automaticamente o feed com conteúdos criados por inteligência artificial. Não pedem mais que você se expresse, mas que se deixe atravessar por um fluxo anônimo. Nesse regime de visibilidade, tudo pode acontecer, até mesmo "ressuscitar" atores como Robin Williams com voz e rosto intactos. A identidade digital se torna um material sintético, infinitamente maleável. O futuro das redes sociais parece cada vez mais um universo povoado não por pessoas, mas por conteúdos, onde a presença humana é totalmente opcional. Será que o futuro do conhecimento também será assim?

A chegada da Grokipedia é um sintoma sísmico que nos força a reformular algumas perguntas fundamentais sobre o conhecimento, como o construímos e como o compartilhamos. A Wikipédia, para o bem ou para o mal, tem sido uma extraordinária máquina cultural por mais de 20 anos, um laboratório vivo onde o conhecimento não só era acumulado, mas também continuamente discutido, refinado, contestado e recomposto.

Certamente, uma utopia concreta, um dispositivo que combina duas tensões cruciais: por um lado, a abertura radical à contribuição de todos; por outro, a busca sempre frágil por uma possível neutralidade. Sua arquitetura aberta encarnou a convicção de que o conhecimento, para estar vivo, precisa ser manejado por muitas mãos e mentes. É uma ideia simples e revolucionária: o conhecimento não é um objeto finito, mas um processo no qual a própria comunidade se torna inteligência coletiva.

A Grokipedia subitamente subverte essa premissa. Não é mais uma enciclopédia escrita por humanos, mas produzida por um modelo linguístico que reelabora enormes quantidades de dados para retornar conteúdos pré-formatados. Não uma comunidade que constrói, mas um algoritmo que gera. Não um lugar para discussão, mas um lugar para consumo. A epistemologia da IA tende a ser lisa, polida, desprovida de conflitos visíveis: as contradições são absorvidas, simplificadas ou agregadas em um texto que parece coerente mesmo quando não o é. A discussão — o coração pulsante do conhecimento — é automatizada a ponto de desaparecer.

A diferença, portanto, não é meramente técnica. É antropológica. A Wikipédia nasce da crença de que cada um, com suas próprias competências e limitações, pode deixar uma marca. Seu aviso "editar esta página" é uma declaração de confiança no leitor: o conhecimento pertence a quem o utiliza, e a autoridade emerge de uma comunidade plural, às vezes briguenta, mas transparente. Você pode ver quem mudou o quê, quando e por quê; você pode contestar, adicionar e reescrever. Não é um sistema perfeito: a neutralidade continua sendo um ideal, e o erro é sempre possível.

A Grokipedia, ao contrário, oferece conhecimento já pronto: não é construído, é recebido. E por trás do texto está uma única entidade algorítmica cuja lógica permanece invisível. Se a Wikipédia é uma praça, a Grokipedia é um teatro: você se senta, assiste, e o que acontece já foi decidido em outro lugar. O desafio cultural é evidente: o desaparecimento do “eu” e o desaparecimento do "nós” não são fenômenos separados. As redes sociais se tornam fluxos impessoais; as identidades digitais se dissolvem em imagens sintéticas; e agora o conhecimento é oferecido na forma de um produto anônimo, sem autores e sem comunidade.

Uma enciclopédia gerada por um algoritmo reflete um mundo em que o conhecimento não é mais um bem comum, mas um serviço, conteúdo a ser fornecido, uma experiência sem responsabilidade. E quando uma sociedade delega completamente a construção do conhecimento, de certa forma, ela também renuncia à sua própria capacidade de imaginá-lo.

Cada época, ao construir sua própria enciclopédia, expressa quem ela é. A Grokipedia nos diz que estamos imaginando um mundo em que a cultura pode ser gerada sem pessoas e consumida sem debate. É um alerta. Se aceitarmos que o conhecimento se torne um fluxo anônimo produzido por sistemas opacos, perdemos o fio que nos mantêm juntos. A única condição para que o conhecimento permaneça vivo, plural e humano é que alguém continue a se expor, a discutir, a deixar vestígios visíveis. Que alguém, em algum lugar, continue a ter a coragem de dizer "eu" e de dizer "nós".

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