Vozes de Emaús. Apocalipse em nossos dias: uma comunidade que experimentou o martírio. Artigo de Tereza Cavalcanti

Arte: Lauren Palma | IHU

16 Dezembro 2025

"A comunidade local, atendida pelo padre italiano Costanzo Bruno, ficou fortemente impactada pelo grau de violência dos assassinos", escreve Tereza Cavalcanti, teóloga católica leiga com experiência em leitura popular da Bíblia.

Tereza Cavalcanti (Foto: Reprodução)

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Eis o artigo. 

No município de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, no dia 5 de maio de 1988, ocorreu a chacina de uma família: o pai, a mãe grávida de 8 meses e 3 filhas com menos de 9 anos. O grau de violência foi extremo e até os pássaros da gaiola foram mortos e as flores do jardim pisoteadas.

A comunidade local, atendida pelo padre italiano Costanzo Bruno, ficou fortemente impactada pelo grau de violência dos assassinos. O fato ocorreu provavelmente devido ao pai, Sebastião, ter se recusado a vender droga em sua birosca. Mas o crime nunca foi totalmente esclarecido. (Assim acontece com os pobres...)

Quando a comunidade teve acesso ao local do crime, cerca de um ano após os acontecimentos, encontrou o quarto das crianças neste estado:

Note-se a tesoura, que Maria das Neves usava para costurar, em cima da cama: estava suja de sangue. Do lado direito aparece um ramo de roseira que atravessara a parede e permanecia vivo e verde, mesmo após tanto tempo do ocorrido no local. Isto foi interpretado como um sinal de vida.

Imagens de arquivo pessoal da autora

A comunidade recolheu o ramo e tentou manter viva a roseira, mas ela não sobreviveu. Então uma nova roseira foi plantada no jardim. Uma celebração religiosa foi feita em frente à casa e o Padre Bruno pensou: “Temos que fazer deste espaço um lugar de vida e ressurreição!”.

A comunidade conseguiu, com o apoio do bispo local, Dom Mauro Morelli, e com ajuda da diocese de Padre Bruno na Itália, assumir aquele espaço da casa e seu terreno e ali construiu uma igreja e um pequeno ginásio com um palco para uso das crianças e jovens. Foi construída uma cozinha e um local de atendimento às crianças, com serviço de pesagem e alimentação, nos moldes da Campanha do Betinho: Ação da cidadania contra a fome e a miséria. Também foram construídas algumas salas para encontros e retiros.

O pequeno quarto das meninas, onde ocorrera o martírio, num primeiro momento foi transformado num local de silêncio e oração. Uma imagem de N. Sra. Aparecida foi colocada sobre um móvel e as pessoas da comunidade, ao passar por ali, se ajoelhavam e rezavam em silêncio.

Mais tarde uma parede do quarto foi derrubada, abrindo-se ali um espaço para um pequeno santuário.

Imagens de arquivo pessoal da autora

À frente do quarto das meninas foi construído um memorial do martírio para receber os peregrinos. O Padre Domingos Ormonde, instruído em Liturgia, foi quem concebeu a construção do Santuário.

Lamparinas foram colocadas na parede lateral, simbolizando as meninas, seu irmãozinho morto no ventre da mãe e outras crianças assassinadas na região.

Esse espaço foi chamado de Santuário dos Mártires.

Um rapaz da comunidade – Adão, do Lote XV - desenhou uma imagem de Nossa Senhora de Guadalupe, acrescentando aos seus pés uma foto das três meninas (a mesma foto do jornal).

Provavelmente a escolha da imagem de N. Sra. de Guadalupe se deve à devoção do bispo D. Mauro Morelli, muito ligado à Conferência Episcopal Latino-Americana (CELAM).

Anos depois, mais uma modificação. É que um rapaz que era colega e amigo das três meninas trouxe uma foto onde elas apareciam junto a uma mulher adulta (irmã dele), com outras crianças. Nesta foto, elas estavam maiores, portanto com um perfil mais próximo daquele em que foram martirizadas.

Então Padre Bruno chamou uma pintora de Nova Iguaçu, muito identificada com a Igreja da Libertação, para pintar uma nova imagem de Nossa Senhora relacionada com os fatos da Comunidade. Essa pintora - Celeste Celina – era amiga do Padre Bruno e é muito reconhecida na Baixada, como pintora de arte sacra. Padre Bruno faleceu em 2022.

Celeste construiu uma imagem aproveitando a foto das meninas e substituindo a mulher que aparece ali por Nossa Senhora. A pintora se inspirou numa imagem da Virgem de Guadalupe representada erguendo o bebê para longe do demônio (dragão).

Mas no novo quadro o dragão é substituído por um anjo negro. E note-se os ramos da roseira ali presentes como sinal da memória do martírio.

As imagens lembram a mulher coroada de estrelas, que aparece no Apocalipse cap. 12 e que é ameaçada pelo dragão. Estudando esse texto em grupos, a comunidade identificou o dragão com sistema socioeconômico em que vivemos. As crianças fizeram desenhos em que apareciam muitas lágrimas e também os ramos verdes da roseira...

Neste ano de 2025, a comunidade conseguiu trocar o nome da rua que passa em frente ao santuário: deixa de ser “Estrada Barão do Amapá” e passa a se chamar “Estrada Padre Bruno”.

A comunidade faz parte hoje da “Irmandade dos Mártires da Caminhada”, criada por D. Pedro Casaldáliga e inspirada na Teologia da Libertação.

Abaixo a foto do Padre Bruno diante da pintura da Virgem com as meninas em sua última versão. A pintura fica por trás do altar na igreja da Comunidade.

Imagens de arquivo pessoal da autora

Notas:

Imagens cedidas do arquivo pessoal da autora do artigo, Tereza Cavalcanti:

1. Fotos de Silvia Fernanda da Silva e Pe. Constanzo Bruno

2. Pinturas de Maria Celeste Conceição Silva

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