11 Dezembro 2025
A tese ruralista, aprovada como PEC pelo Senado, só se sustenta quando o país aceita um pacto de esquecimento. Que o genocídio indígena não existiu. E o desatino vai além: autoriza revisões de terras já homologadas. A sociedade tem responsabilidade de fazer barulho.
O artigo é de Dora Nassif, publicado por Jornal GGN e reproduzido por Outras Palavras, 10-12-2025.
Dora Nassif é advogada, Mestra em Direitos Humanos e Doutoranda em Ciências Jurídicas e Políticas pela Universidad Pablo de Olavide, em Sevilla.
Eis o artigo.
Hoje, o Supremo Tribunal Federal volta a julgar o marco temporal. Nunca, desde a redemocratização, o Brasil esteve tão perto de consolidar em lei uma ideia tão profundamente injusta quanto a de restringir direitos originários a uma data arbitrária. A Lei 14.701/2023, cujo destino agora retorna ao plenário, representa algo inédito no constitucionalismo brasileiro: a tentativa explícita de reescrever a própria lógica da Constituição de 1988, invertendo o sentido dos direitos indígenas e transformando décadas de violações em critério de posse.
Os defensores do marco temporal insistem no discurso da “segurança jurídica”, como se o país estivesse diante de uma ameaça de expansão indefinida de terras ou de um suposto caos fundiário. É um argumento que se repete há anos, sempre revestido de neutralidade técnica, mas cuja base real depende de um apagamento profundo da história. A verdade é que, para os povos indígenas, a insegurança jurídica nunca foi exceção: sempre foi regra. Expulsões forçadas, remoções planejadas pelo Estado, confinamentos, prisões arbitrárias, violências policiais e militares marcaram justamente o período imediatamente anterior a 1988. Exigir que comunidades estivessem em seus territórios nessa data, como condição de direito, é punir os povos pelo próprio esbulho que sofreram. É transformar a violência em prova contra a vítima. É legalizar a lógica colonial sob o verniz da técnica jurídica.
O marco temporal só se sustenta quando o país aceita um pacto de esquecimento. Ele depende da ideia de que os deslocamentos forçados não existiram, de que o Estado não atuou para desestruturar territórios inteiros, de que as remoções conduzidas nas décadas de 1970 e 1980 não deixaram rastros profundos. Sem essa amnésia coletiva, a tese simplesmente não se sustenta. A Constituição de 1988 jamais condicionou os direitos indígenas à presença física em determinado dia; ao contrário, reconheceu que esses direitos são originários, anteriores à formação do próprio Estado brasileiro. E o STF já afirmou isso expressamente em 2023, quando declarou inconstitucional qualquer leitura que pretendesse restringir o alcance do artigo 231.
Mesmo assim, o Congresso aprovou uma lei que revive o marco temporal e vai além: autoriza revisões de terras já homologadas, flexibiliza o usufruto exclusivo, abre brechas para exploração econômica e prevê obras de infraestrutura sem consulta prévia. O país jamais havia produzido uma legislação tão frontalmente incompatível com o texto constitucional. Por isso, o julgamento do STF não é apenas jurídico; é civilizatório. Trata-se de decidir se a Constituição permanece sendo o fundamento último dos direitos indígenas ou se passará a ser reinterpretada ao sabor das maiorias circunstanciais.
As consequências ultrapassam a esfera dos direitos territoriais. As Terras Indígenas são a principal barreira contra o desmatamento na Amazônia, regulam chuvas, protegem rios e sustentam a estabilidade climática de grande parte do território nacional. Enfraquecer esses territórios significa fragilizar a agricultura, a segurança hídrica, o equilíbrio ambiental e a própria capacidade do Brasil de enfrentar a crise climática. Nada disso é opinião: são dados, estudos e evidências acumuladas há décadas.
O que o STF começa a julgar amanhã não é apenas uma lei. É a definição do tipo de país que o Brasil aceita ser. A normalização do marco temporal só avança porque uma parte significativa da sociedade permanece silenciosa, acreditando que se trata de um debate distante, técnico, sem impacto direto no cotidiano. Mas essa percepção é enganosa: os povos indígenas estão, mais uma vez, na linha de frente de uma disputa que determina o futuro de todos. Quando seus direitos são atacados, o que está em risco não é apenas sua memória e sua existência, é a integridade da própria Constituição e a estabilidade ambiental que sustenta o país.
Por isso, a sociedade tem a responsabilidade de fazer barulho. É preciso romper o silêncio que permite que retrocessos dessa magnitude avancem como se fossem temas neutros ou meramente administrativos. O marco temporal não é um detalhe jurídico: é um divisor moral. O Brasil já errou demais ao negar reparação, voz e território aos povos indígenas. Agora, diante de uma lei sem precedentes, que pretende transformar injustiça histórica em norma jurídica, não há espaço para indiferença.
O STF tem, mais uma vez, a oportunidade de impedir que o erro se transforme em política de Estado. E o país tem o dever de não assistir calado.
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