10 Dezembro 2025
"Nos humildes e luminosos santuários dos mártires se anuncia a memória subversiva de Jesus de Nazaré que enfrenta o templo, o palácio e o quartel em todas as estações da história, desde a libertação da escravidão do Egito até os nossos dias", escreve Flávio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Eis o artigo.
Acontece com frequência de me sentir perdido diante das conjunturas geopolíticas atuais. Trata-se da perplexidade diante dos efeitos da redefinição do tabuleiro das relações entre impérios e estados, que se apresentam como fatos tão vis e rasteiros, ao ponto que chego a me convencer que não mereçam a atenção cotidiana de pesquisadores e intérpretes. Aliás, todos os especialistas que se aplicam diariamente ao esforço interpretativo produzem textos que, contrariando as nossas expectativas, não só não contribuem para a compreensão, mas, na maioria dos casos, alimentam uma babel meramente descritiva e cínica, longe da busca e do encontro com o sentido e o desejo de transformação da vida e da história.
Em suma, somos submersos por uma avalanche de fatos brutos que expressam despudoradamente a supremacia do poder econômico, político e militar, a eficácia incontestável da violência, da guerra, do extermínio e da devastação da natureza, sem falar no tempero religioso de uma renovada submissão de ‘deus’ ao projeto diabólico de redução violenta da história a favor dos privilegiados, via genocídio dos pobres e das massas descartáveis.
A possibilidade da existência de narrativas dialéticas sobre a invasão da Ucrânia, que continuam dividindo o que sobra da esquerda mundial, se revela inviável porque é amplamente negada pelo impacto da brutalidade absoluta da guerra que impede qualquer abordagem hermenêutica e toda busca de sentido. Bem como as imposturas narrativas, funérea criatividade negacionista, que tentam justificar e maquiar o extermínio dos palestinos na Terra Santa.
Ou a insistência de quem acredita na proximidade do início de um Nova Era, quando, pelo contrário, o que a gente consegue enxergar é a proximidade distópica do fim do mundo.
Sem esquecer o despudorado processo da COP30 em Belém, Brasil, em que a perspectiva negacionista não se dá pela falsificação dos dados, mas, com uma renovada radicalidade, através do escandaloso silêncio sobre a inominável e deletéria existência dos hidrocarbonetos e de seus impactos mortais sobre o planeta.
É inegável que não tendo narrativas alternativas à denúncia dos riscos da vida no Planeta, o negacionismo se dê simplesmente no cancelamento de qualquer narrativa.
E isso acontece num País que, defendendo o legado da Constituição de 88, o estado de direito e a democracia, acaba de julgar, condenar e prender quem tentou organizar um golpe de estado. Assim à luz da conclusiva censura do petróleo na COP30, vem me visitar a impressão de que defender a democracia é sem dúvida necessário, mas dramaticamente insuficiente, como se estivéssemos ignorando a armadilha, que quer resumir as lutas populares à mera tutela do status quo, à manutenção do mundo assim come ele é. No fundo, um convite à obediência e à renúncia a qualquer pretensão antissistêmica.
Fenômenos que me convencem de que a questão não se resolve no âmbito dos discursos. Se sociologias e psicanalises sérias não estão a me ajudar na minha tentativa de compreensão, imaginemos a serventia de invencionices do tipo “os pobres de direita”,[i] que pretenderiam explicar a crise de credibilidade da esquerda ou a “ideologia da vergonha”[ii] que explicaria a virada eclesiástica católica para a direita.
A mesma sensação da irrelevância das abordagens acadêmicas se insinua diante da brutalidade da megaoperação policial nos complexos da Penha e do Alemão, na zona norte do Rio de Janeiro, que, em 28 de outubro deste ano, se concluiu com o assassinato de mais de cento e vinte pessoas e a aprovação incondicional do massacre da Operação Contenção pelos participantes da Missa, no Domingo 2 de novembro, na Paróquia Santa Rosa de Lima, Barra da Tijuca. Esta é a igreja que o governador Castro, membro da RCC e envolvido no ministério da música, costuma frequentar com a família. Castro, que goza da familiaridade não simplesmente institucional do próprio arcebispo, cardeal Orani Tempesta, foi aplaudido pelos católicos presentes e abençoado pelo padre Marcelo Araujo, capelão da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Infelizmente as estatísticas nos revelam que a Igreja católica do Rio não é uma exceção, porque, em todo canto do Brasil, não só traiu-se a liturgia do dia de Finados, em que a memória dos mortos e da nossa morte não poderia permitir a cumplicidade com os mandantes e os executores de assassinatos em massa, mas negou-se diabolicamente o Santo Evangelho.
Também neste caso, a sociologia não consegue me ajudar a contornar e a explicar a tragédia e a dor, e o que sobra é um sentimento atordoado e escandalizado diante da leviandade de tantos irmãos e irmãs que conseguem conciliar o Anticristo da violência e da guerra com a pessoa de Jesus de Nazaré.
Faz mister reavivar a lembrança de uma desumanidade que, na Abya Ayala, nos atormenta desde 1492, mas que se concretiza na história da Europa, como algo constitutivo e de difícil enfrentamento, a partir de 376, quando a Igreja se submete ao Império.
‘Nihil sub sole novi’ : o movimento progressivo da história humana é mera aparência
José Comblin nos alertava sobre o sequestro de Jesus praticado pelos que se acham senhores do mundo: “O general Videla dizia “Cristo é Senhor”. O general Pinochet dizia “Cristo é Senhor” Era fé? Ou era blasfêmia? A elite latino-americana que oprimiu os povos durante 500 anos sempre proclamou: “Cristo é Senhor”. Era ato de fé? Ainda é ato de fé? Este é o nosso problema. Os teólogos latino-americanos afirmaram: quem pode dizer “Cristo é Senhor” com sinceridade, como expressão de toda a sua vida, são os pobres... Os poderosos proclamam “Cristo é Senhor”, mas a sua vida diz: “Senhor, sou eu!” O grito de Paulo “Cristo é Senhor” é um protesto contra todos os “Senhores”, uma denúncia da opressão, um desafio lançado contra os que se acham os Senhores.”[iii]
Temos mais um acontecimento relevante no mês de novembro. Os parlamentares brasileiros Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e Eduardo Bolsonaro (PL-SP), em 17 de novembro, viajaram a El Salvador para se reunir com o presidente Nayib Bukele, em uma visita institucional de intercâmbio de experiências sobre políticas de segurança pública, sistema penitenciário e legislação penal. A visita ocorreu um dia antes da votação do PL Anti-facção na Câmara dos Deputados, projeto que busca endurecer medidas contra o crime organizado no Brasil.
Bukele é conhecido por sua política de encarceramento em massa e pela construção de um megacomplexo penitenciário inaugurado em 2023.
Desde 2022, El Salvador vive sob um regime de exceção, que levou à prisão de cerca de 88 mil pessoas ligadas a gangues.
Apesar de críticas de organizações de direitos humanos sobre prisões arbitrárias, torturas e mortes de encarcerados, Bukele mantém alta popularidade interna.
A visita brasileira não traduz simplesmente a admiração do clã do Bolsonaro pelo Bukele, mas parece revelar que a estratégia política fundamental da direita latino-americana verte sobre o tema da segurança, viabilizada por políticas públicas autoritárias, arbitrárias e extremamente violentas. Uma guerra civil entre os “cidadãos de bem” e os bandidos. Guerra à criminalidade que segundo ‘os salvadores da pátria’ se resolveria mediante a criação de lager e de gulag. Este parece ser o mais recente e árduo desafio da justiça, da igualdade e da fraternidade.
Contudo, por incrível que possa aparecer, para mim, El Salvador não fica confinado ao legado sombrio da administração do Bukele, mas continua a evocar o sacrário de testemunhas memoráveis que me acolhem, me consolam e me fortalecem: Beato Rutílio Grande SJ, Manoel Solorzano, Nelson Rutílio Lemos martirizados em 1977; Santo Óscar Romero, assassinato em 1980; as irmãs Maura Clarke, Ita Ford, Dorothy Kazel e a leiga Jean Donovan, martirizadas em dezembro de 1980, Ignacio Ellacuría, Ignacio Martin-Baró, Segundo Montes, Joan Ramón Moreno, Joaquin López y López, Amando López, padres jesuítas, e a cozinheira Elba Ramos e sua filha Celina Ramos, os mártires da Uca, 1989.
El Paisnal, onde Rutílio Grande foi morto, o Hospitalito Divina Providencia, onde Romero foi assassinado e a UCA, cenário do massacre dos jesuítas, continuam falando mais alto do que os delírios políticos de Bukele e dos que administram o sistema de morte, embora insistam em reafirmar que a política adotada é algo necessário para ‘salvar’ a nação. ‘Salvadores’ jamais institucionalizam a violência para legitimar uma suposta ‘salvação’ da pátria!
Nos humildes e luminosos santuários dos mártires se anuncia a memória subversiva de Jesus de Nazaré que enfrenta o templo, o palácio e o quartel em todas as estações da história, desde a libertação da escravidão do Egito até os nossos dias.
Em San Salvador, como em todo canto da Pátria Grande, as testemunhas do Reino, nos repetem insistentemente que a Cruz do Ressuscitado é a chave para revelar os segredos da história da humanidade e iluminar “a derrota vitoriosa dos profetas e dos lutadores a serviço de uma causa invencivel.[iv]
Notas
[i] Souza Jessé, O pobre de direita: a vingança dos bastardos, Civilização Brasileira, São Paulo, 2024
[ii] Castilho Pereira, William César, A ideologia da vergonha e o clero do Brasil, Vozes, Petrópolis, 2025
[iii] Acesse aqui.
[iv] Citando um pensamento de dom Pedro Casaldáliga.
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