10 Dezembro 2025
"É necessário que a justiça esteja ao lado dos primeiros moradores destas terras. Povos que, através dos séculos, foram massacrados e eliminados justamente por reivindicarem seus espaços. Quando haverá justiça para os indígenas que vivem no Brasil?"
O artigo é do cardeal Leonardo Steiner, arcebispo de Manaus (AM) e presidente do Cimi, publicado por Le Monde Diplomatique e reproduzido por Conselho Indigenista Missionário (Cimi), 09-12-2025.
O presidente do Cimi, cardeal Leonardo Steiner, pede justiça aos povos indígenas e denuncia retaliação no Senado pela PEC 48.
Eis o artigo.
Viver em democracia exige uma ética que consiga ver no bem comum, e não no interesse particular, o caminho da verdadeira convivência. Não se constrói uma sociedade justa priorizando o lucro e a ganância de uns poucos por cima do sofrimento da maioria
Os povos indígenas sempre têm apontado para nós um horizonte diferente. Quando estão na posse livre de seus territórios, são os que melhor conseguem conviver com seu entorno, ministrando saberes e conhecimentos próprios, preservando a vida em toda sua complexidade e diversidade. Seu sentido coletivo da terra desafia nosso imaginário ocidental, mercantilista e privatista, que só consegue ver exploração e riquezas onde os povos constatam o sustento da vida, a continuidade do que somos. São duas lógicas diferentes.
A questão fundamental é que o pensamento do mercado nos está conduzindo a um colapso ambiental de consequências irreversíveis enquanto a perspectiva ética dos povos indígenas nos releva saídas coletivas. Saídas que passam, de forma inexorável, pela demarcação e proteção de suas terras.
Esta semana estamos, mais uma vez, diante de um momento em que os direitos dos povos indígenas a seus territórios voltam a estar questionados. Em 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) já declarou inconstitucional a chamada tese do marco temporal. Ela não é só inconstitucional; é imoral e perversa. Apaga a história de violência contra os povos indígenas para entregar seus territórios aos algozes e criminosos.
Contudo, a própria Corte permitiu que o marco temporal prevalecesse até agora com a Lei 14.701/2023, que tantos sofrimentos e tanta violência têm causado aos povos indígenas desde que foi promulgada pelo Congresso, em dezembro de 2023. Precisamos dar um basta nisto! E o Supremo tem essa oportunidade, e também essa responsabilidade, no julgamento que se inicia nesta quarta-feira, 10 de dezembro, sobre a constitucionalidade dessa Lei.
Desta vez, não será suficiente afastar, de novo, o marco temporal. A Lei 14.701 também pretende que os territórios indígenas sejam explorados por terceiros, roubando aos povos o direito a usufruir deles de forma exclusiva, conforme seus saberes e tradições.
O que está por trás dessa lei é a ideia de satisfazer e garantir os interesses dos grandes poderes econômicos de nosso país, que assolam a terra, a envenenam, a destroem, a depredam, para produzir commodities que só alimentam o mercado mundial – enquanto condenam a todos e todas a um futuro sem vida, sem floresta, sem sustento. Não pode haver maior cegueira. A Lei 14.701 deve ser declarada inconstitucional sem ressalvas. As leis injustas precisam ser vencidas pelo direito e a justiça.
Enquanto aguardamos que a Corte Suprema decida, de forma definitiva, pela preservação dos direitos dos povos indígenas, o Senado pautou para esta terça-feira, 9 de dezembro, justo um dia antes do julgamento, a votação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 48. Essa PEC pretende justamente impor o marco temporal na Constituição. É inadmissível, porque não é permitido, a ninguém, emendar a Constituição para reduzir direitos fundamentais, cláusulas pétreas da Carta Maior. Em um momento de tensionamento entre os Poderes da República, é cruel que o Senado utilize a vida e o futuro dos povos indígenas como pressão no tabuleiro político. É a mesma manobra que fizeram em 2023 antes do julgamento do Recurso Extraordinário em que o STF declarou o marco temporal inconstitucional.
O maior obstáculo para a democracia é a ganância de uns poucos e a forma como esses interesses particulares se apropriam das instituições políticas que deveriam representar-nos; que deveriam prezar pela convivência e o bem comum. É necessário que a justiça esteja ao lado dos primeiros moradores destas terras. Povos que, através dos séculos, foram massacrados e eliminados justamente por reivindicarem seus espaços. Quando haverá justiça para os indígenas que vivem no Brasil?
A sociedade brasileira já se manifestou muitas vezes a favor da demarcação dos territórios indígenas. Não queremos que a violência continue ceifando vidas de povos que lutam por aquilo que lhes pertence por direito. Os povos indígenas continuarão defendendo seus territórios e seus projetos de vida, com a mesma resistência e a audácia de sempre. E todos nós somos chamados a unir-nos a eles, com coragem e determinação, para que ninguém roube de nós a esperança de um Brasil mais justo e plural.
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