25 Novembro 2025
Será o tema do abuso espiritual a próxima grande purificação da Igreja Católica, após os escândalos de pedofilia?
O artigo é de Luís Alberto Bassoli, graduando em Teologia pela UCB, licenciado em Filosofia e Pedagogia. Educador desde 1989, vive a espiritualidade carismática católica desde 1983.
Eis o artigo.
Os exorcistas são, na doutrina da Igreja Católica, um pequeno grupo de padres escolhidos a dedo pelos bispos para acompanhar casos de pessoas com comportamentos inusuais. Devem discernir e descobrir a origem dos fenômenos para, sendo o caso, libertar o infiel da influência maligna.
Fora do Direito Canônico, no senso comum da população exorcistas são padres, pastores ou leigos e leigas que expulsam espíritos de pessoas endemoniadas, até com algum espetáculo, como se vê em cultos e programas da TV.
E tais espetáculos são tão ‘diabólicos’ que fica a pergunta: quem vai exorcizar os exorcistas?
Lembrei-me desta frase que eu e Antônio Carlos Santini lemos quando evangelizávamos juntos na Belo Horizonte dos anos 80 ao ler o livro Abuso Espiritual: A Manipulação Invisível, de Gabriel Perissé [1].
Livro: "Abuso Espiritual: a manipulação invisível", de Gabriel Perisse (Paulus Editora, 2024).
O autor, renomado educador, psicanalista e teólogo [2], adentra um tema que aflorou não só na Igreja Católica, mas em diferentes denominações e religiões a partir de inúmeras denúncias e abordagens mundo afora.
São abusadores anônimos ou famosos, como o caso do goiano João Teixeira Faria, o João de Deus, líder espiritual inclusive de muitas celebridades, denunciado por inúmeros estupros.
Na Igreja Católica vieram à tona mundo afora neste século denúncias de abusos sexuais, depois de abafados por décadas, inicialmente contra menores e depois também contra religiosas.
O tema do livro é a gênese do abuso. Que envolve, além de possíveis intimidades sexuais, a vida profissional e financeira, vocacional e estudantil, familiar e em especial a própria consciência do indivíduo: o uso da autoridade religiosa, do nome de Deus, para manipular o fiel seguidor.
O autor discorre sobre a relação entre os vários abusos e o abuso espiritual; o perfil do fiel manipulável; como se dá a manipulação no dia a dia; as características sociológicas, psicológicas, teológicas e pastorais de grupos onde a manipulação ocorre. Por fim, sugere dois caminhos para a defesa contra a manipulação: a libertação do medo (arma principal no processo de abuso) e a prática de um maduro discernimento.
Este último permite que não se confundam normais ‘embates’ da vida social como se fossem abusos espirituais, para evitar o risco de uma caça às bruxas devido às nuances do tema.
Discordâncias, algumas acaloradas, sempre vão acontecer. Nem tudo é abuso.
Com extensa bibliografia e a partir de sua vivência educacional, profissional e pastoral, o autor permeia o livro de experiências dolorosas e práticas de um fenômeno ainda não enfrentado diretamente pelas autoridades da Igreja Católica.
Abuso espiritual é um tema conhecido, mas normalmente tratado como de ‘casos isolados e lamentáveis’, ou seja, são pessoas isoladas que abusam de sua autoridade, ministério e ou carisma, e isso é triste. E, o quanto e quando possível, minimizado.
Observe que esta abordagem foi a mesma sobre os abusos contra menores no século passado: não seria um problema institucional, mas localizado em alguns elementos que ‘caíram em pecado’.
O tempo mostrou o que a sociologia já ensina desde o fim do século XIX: fenômenos ‘isolados’ que se repetem frequentemente em determinada realidade não são ‘isolados’. Possuem uma explicação sistêmica.
Isso é percebido mais facilmente por pessoas que foram abusadas, ou ainda seus filhos e filhas, do que pelos praticantes da fé, que tendem sempre a relativizar os abusos que se passam em seu ambiente.
Enquanto congregações e ordens religiosas caminharam após o Concílio Vaticano II para uma abordagem menos rigorista sobre a obediência [3], buscando uma maturidade maior do indivíduo ao se posicionar diante do chamado de Deus por meio do carisma institucional, o fenômeno das Novas Comunidades (nem todas, mas muitas delas ligadas à Renovação Carismática Católica) tem trazido à tona inúmeros relatos de abusos no ambiente religioso na relação de obediência/autoridade.
Perissé não nomina quase nenhuma instituição em sua obra, que tem uma abordagem mais estrutural sobre o tema. E isso é muito bom, já que como ele demonstra o problema não seria o Monsenhor X, a Irmã Y, o Frei Z, o leigo 0: é uma dinâmica construída em relações que se baseiam em falsas premissas e pode acontecer em qualquer grupo religioso.
Não são ‘fatos isolados e lamentáveis’.
E isso provoca bastante o leitor.
Ao ler o livro termina-se por lidar com as próprias histórias de abusos (em maior ou menor grau), ou mesmo fazendo um exame de consciência, levando o leitor a rever suas ações abusivas.
Quem viveu ou vive a espiritualidade da Renovação Carismática Católica, como eu desde 1983, alguns insights são oportunos. Sobre esta espiritualidade, a monja beneditina Irmã Blandina, do Mosteiro de Nossa Senhora das Graças de Belo Horizonte, sintetizava que deveria ser como aquela que a trajetória da espiritualidade da vida religiosa oriental tanto valorizou, ou seja, a da iluminação pessoal pelo Espírito Santo, de forma a amadurecer a vida espiritual do fiel a ponto de não ‘depender’ totalmente da obediência cega ao superior. Algo impensável na vida religiosa do Ocidente, segundo ela.
Isso coincidia com aqueles que viam na espiritualidade carismática a vivência da Nova Aliança, expressa no capítulo 31 do livro de Jeremias:
Eis que dias virão—oráculo de Iahweh—em que selarei com a casa de Israel (e com a casa de Judá) uma aliança nova. [32] Não como a aliança que selei com seus pais, no dia em que os tomei pela mão para fazê-los sair da terra do Egito — minha aliança que eles mesmos romperam, embora eu fosse o seu Senhor, oráculo de Iahweh! [33] Porque esta é a aliança que selarei com a casa de Israel depois desses dias, oráculo de Iahweh. Eu porei minha lei no seu seio e a escreverei em seu coração. Então eu serei seu Deus e eles serão meu povo. [34] Eles não terão mais que instruir seu próximo ou seu irmão, dizendo: “Conhecei a Iahweh!” Porque todos me conhecerão, dos menores aos maiores, (grifo do autor) — oráculo de Iahweh — porque vou perdoar sua culpa e não me lembrarei mais de seu pecado.
Isso destoa completamente de alguns fenômenos na história da RCC no Brasil, que se configuram praticamente em um novo clericalismo, agora também de leigos, sobre o qual o Papa Francisco alertou os riscos [4]:
“O clericalismo deve ser expulso. Um sacerdote, um bispo que cai nesta atitude faz muito mal à Igreja. Mas é uma doença contagiosa e pior que um padre ou bispo clerical são os leigos clericalizados: por favor, são uma peste na Igreja. Leigo é leigo.”
No início do movimento aspirava-se ouvir o Espírito Santo. Depois, parecia aspirar-se a ouvir o que o líder ouviu do Espírito. E, após isso, há líderes que fazem parecer de que querem deixar claro que o Espírito que fala a ele é mais do que o dos ouvintes.
O falecido Dom Mário Gurgel, bispo da Diocese de Itabira-Fabriciano, dizia existir um ditado na igreja da Alemanha que ensinava que todo mundo tem um ‘passarinho doido’ na cabeça, mas os bispos pensam que o ‘passarinho doido’ deles é o Espírito Santo. Alertava aos carismáticos o risco sobre o próprio ‘passarinho doido’.
Voltando ao tema do livro. Sinto que se pode ainda aprofundar em sua abordagem um fenômeno (cabe continuação!): enquanto enfatiza o abuso, visando o apoio a abusados, podemos e devemos nos voltar também à gênese do próprio abusador e abusadora.
Considerando que necessariamente não são todos e todas sociopatas, como pode uma religiosa piedosa se transformar em uma impiedosa líder de comunidade, vivendo no oculto uma vida ‘folgada’ (embora com uma imagem pública de ‘santinha’), ao mesmo tempo que suas noviças são massacradas no dia a dia? Como uma comunidade que começa vivendo pela Providência Divina se torna uma empresa capitalista que, após pedir ouro aos seus seguidores, busca dinheiro público indevido? Como um piedoso sacerdote que se dedica aos pobres mais excluídos, mimetizando um Francisco de Assis do século XX, revela-se abusador de suas seguidoras? Como uma carreira política de um católico se inicia com apelo do testemunho cristão em busca de uma civilização do amor se transforma em discurso de ódio a demonizar os opositores, abusando de sua condição de católico até apoiar um golpe de Estado que incluía assassinato dos adversários?
E abuso não é exclusividade do âmbito de apenas ‘uma linha pastoral’ na Igreja. Certa vez um político entrou na escola de Ensino Médio em que eu trabalhava com ódio mortal sobre mim (segundo a diretora, se estivesse armado ele teria atirado) devido a um mal-entendido sobre uma aula que eu dera ao seu filho. A diretora que o recebeu o ouviu e percebeu que o descontrole tinha origem emocional do fato de que uma freira ligada à Teologia da Libertação (TdL) usava as aulas de religião em uma escola pública para atacá-lo, quando ele era prefeito de uma pequena cidade. Na sala do filho dele. De 10 anos de idade.
O ambiente dos anos 80 no Brasil, em torno da TdL, era profundamente abusador sobre quem pensava diferente.
Tem que ser assim?!
Não tenho, e talvez nem haja, resposta total para esta pergunta. Mas, se o poder corrompe, talvez haja uma forma de se exercê-lo sem dele abusá-lo.
A leitura de Abuso Espiritual nos faz refletir que temos uma situação muito mais complexa do que de ‘fatos isolados’ para lidar. Talvez mais ampla do que a dos abusos de menores, já que estes eram feitos ocultamente. Os abusos espirituais, no geral, são ‘públicos’ e até mesmo valorizados, por darem a entender que a) são caminhos legítimos de poder, porque quem faz age como iluminado) e b) de santidade para quem recebe o abuso, pois precisa passar por muitas provações para entrar no Reino de Deus.
Aliás, usar versículos da Bíblia para ‘justificar’ o injusto é sintoma deste abuso.
Sonhar e trabalhar para uma Igreja em que o abuso espiritual seja visto de uma forma mais clara e rejeitado por todos é necessário.
Até porque o Mestre dedicou um ensino bem claro contra o abuso espiritual, relatado pelo evangelista Mateus (23):
Jesus então dirigiu-se às multidões e aos seus discípulos: [2] “Os escribas e fariseus estão sentados na cátedra de Moisés. [3] Portanto, fazei e observai tudo quanto vos disserem. Mas não imiteis as suas ações, pois dizem, mas não fazem. [4] Amarram fardos pesados e os põem sobre os ombros dos homens, mas eles mesmos nem com um dedo se dispõem a movê-los. [5] Praticam todas as suas ações com o fim de serem vistos pelos homens. Com efeito, usam largos filactérios e longas franjas. [6] Gostam do lugar de honra nos banquetes, dos primeiros assentos nas sinagogas, [7] de receber as saudações nas praças públicas e de que homens lhes chamem ‘Rabi’.
Agora, parece que está dizendo hoje para nós:
[8] Quanto a vós, não permitais que vos chamem ‘Rabi’, pois um só é o vosso Mestre e todos vós sois irmãos. [9] A ninguém na terra chameis ‘Pai’, pois um só é o vosso Pai, o celeste. [10] Nem permitais que vos chamem ‘Guias’, pois um só é o vosso guia, Cristo. [11] Antes, o maior dentre vós será aquele que vos serve [12]. Aquele que se exaltar será humilhado, e aquele que se humilhar será exaltado.
Francisco de Buenos Aires, ouvindo a Voz do Espírito aos nossos dias, retomou o tema da Sinolidade como forma de vivência do poder e discernimento na Igreja. E praticou isso. É um bom caminho.
Ecoa e muito o ensinamento de Jesus, que parece ter sido esquecido na Igreja que chama seus líderes de pai (papa, padre) e ama exaltar guias, cantores, pregadores e mestres da sua fé.
Afinal de contas, quem vai exorcizar os exorcistas?!
Notas
[1] PERISSÉ, Gabriel. Abuso espiritual: A manipulação invisível. São Paulo: Paulus, 2025.
[2] Gabriel Perissé é mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), doutor em Filosofia da Educação (USP) e doutor em Teologia (PUC-RS). Tem pós-doutorado em Filosofia e História da Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É autor de mais de 25 livros, tradutor e conferencista.
[3] Os Superiores, porém, como quem deverá dar contas das almas que lhes foram confiadas (cfr. Heb. 13,17), dóceis à vontade de Deus no cumprimento do seu cargo, exerçam a autoridade em espírito de serviço a favor de seus irmãos, de tal maneira que sejam a expressão da caridade com que Deus os ama. (grifo meu) Governem os súbditos como filhos de Deus e com respeito pela pessoa humana, promovendo a sua submissão voluntária (grifo meu). Por isso, deixem-lhes de modo particular a devida liberdade no que toca ao sacramento da Penitência e à direcção espiritual. Levem os súbditos a colaborar, com obediência activa e responsável, no desempenho das funções e na aceitação das empresas. Procurem, por isso, os Superiores ouvir de boa vontade os súbditos (grifo meu) e promover a sua colaboração para bem do Instituto e da Igreja, mantendo, todavia, a sua autoridade para decidir e ordenar o que deve fazer-se. Disponível aqui.
[4] Disponível aqui.
Leia mais
- Abuso espiritual: a manipulação invisível. Artigo de Eliseu Wisniewski
- Abuso espiritual: uma oportunidade para uma revolução corajosa. Artigo de Stefania De Vito
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