24 Novembro 2025
"A excelente radiografia feita pelo nosso autor é fundamental para que os padres possam rever sua trajetória pessoal, honrar suas origens, cultura e familiares, identificar como esses diversos processos e dimensões atravessaram suas vidas, levantar elementos importantes para um processo de reelaboração pessoal, como também para oferecer subsídios fundamentais para se repensar a formação do clero", escreve Eduardo Mourão Vasconcelos, psicólogo, cientista político, doutor pela London School of Economics and Political Science, professor aposentado da UFRJ, e ativista do movimento antimanicomial. Publicou, entre muitas outras obras, Karl Marx e a subjetividade humana (3 vols, Hucitec, 2010), e Religiões e o paradoxo apoio social-intolerância (Hucitec, 2019).
O autor do artigo participará do evento "A ideologia da vergonha e o clero do Brasil" onde ele debaterá com William Cesar Castilho Pereira o livro com o mesmo título, que será realizado no dia 25 de novembro, às 10h, no Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Livro "A ideologia da vergonha e o clero do Brasil". (Foto: Reprodução/Editora Vozes)
Eis o artigo.
1) A importância da trajetória de práxis, de escrita e desse último livro de William
Acompanho o ativismo e os trabalhos de William há quase 50 anos. Na época em que nos conhecemos, na segunda metade da década de 1970, ainda em plena ditadura, era um militante ativíssimo dos trabalhos sociais na Cidade Industrial de Belo Horizonte, Contagem e Betim. Atuava em várias iniciativas de educação popular, de trabalho comunitário, de reorganização de movimentos sociais, como também de pastorais sociais da Igreja Católica.
Essa práxis autêntica do William não ficou restrita à ação e militância. Ele sempre procurou sistematizar suas ações, dar sustentação teórica e conceitual, e vêm publicando livros e artigos. No seu currículo, consegui contar pelo menos 13 livros de autoria exclusiva, praticamente todos publicados pela Editora Vozes, que gosta muito de seus livros por suas ideias e por que vendem várias edições, e mais uns tantos em coautoria e organização com parceiros(as), e numerosos artigos e capítulos de livros.
A maioria de seus últimos livros é dedicada à pesquisa sociológica, psicanalítica e em análise institucional sobre a Igreja Católica e seus presbíteros (sacerdotes). Eles livros são clássicos, alguns deles chegaram às mãos do Papa Francisco, e eu chamaria a atenção para os que considero mais importantes:
- A formação religiosa em questão;
- O sofrimento psíquico dos presbíteros;
- Os sete pecados capitais à luz da psicanálise, esse com temática mais ampla, mas ainda também relacionado com a religião.
Todos esses livros se sustentam em pesquisas extensas, ouvindo os atores envolvidos, e em vasta pesquisa documental e bibliográfica.
Essa pesquisa envolve sempre algo fundamental vindo de sua formação em Análise Institucional e prática clínica: a escuta sensível das pessoas, mas particularmente do não-dito, do reprimido, daquilo que as instituições fazem tudo para silenciar.
2) Breve comentário inicial sobre o conteúdo esse livro, a Ideologia da vergonha e o clero do Brasil
No presente evento virtual, William já deu uma boa ideia do conteúdo desse livro. É uma radiografia detalhada das pastorais e principalmente dos processos históricos, sociais, demográficos, culturais e subjetivos que atravessam a vida dos padres católicos desde suas origens até a vida sacerdotal.
De minha parte, queria chamar a atenção sobre os dois termos chaves dessa sua obra e que estão no seu título, ideologia e vergonha, que geram estranhamento entre as pessoas que têm um primeiro contato com o livro. São termos que que têm origens muito diferentes, e as pessoas sentem um certo incômodo com essa aproximação proposta por William.
Ideologia, como ele revisa bem, tem diferentes origens na história da filosofia e da sociologia, mas constitui um conceito mais associado nos dois últimos séculos à tradição marxista. Nela, apesar de diferentes sentidos na obra de Marx e seguidores, e em termos bastante sintéticos, está mais associado às ideias e representações das diferentes classes e grupos sociais em luta, com maior ênfase na dimensão do pensamento e da práxis, no campo dos fenômenos sociais.
Por outro lado, o termo vergonha é mais conhecido no senso comum, como um comportamento ou traço da personalidade de uma pessoa ou de grupos sociais específicos, e portanto, mais associado ao campo psicológico.
Acho que talvez por isso temos esse estranhamento inicial. No entanto, quero dizer que William vem da tradição dos analistas institucionais, que há décadas promovem uma aproximação complexa entre as teorias sociais críticas e versões mais comprometidas da psicanálise, visando intervir na subjetividade e na práxis das pessoas, grupos e instituições. A vergonha então ganha um status de fenômeno complexo, descrito por meio de conceitos rigorosos que aproximam a psicanálise do marxismo, e perfeitamente coerente com uma análise rigorosa e crítica do que acontece com o clero católico no Brasil. Não quero dar mais spoilers, quem quiser saber mais, recomendo muito a leitura do livro.
3) Aspectos históricos e contextuais importantes para melhor compreender o conteúdo do livro e procurar discutir e promover mudanças no quadro descrito sobre o clero no Brasil
Considero que, se as instituições da Igreja Católica e particularmente seus atores e movimentos sociais quiserem discutir e efetivamente tentar fazer mudanças no quadro do clero descrito por William, eles devem ter a coragem de incluir na discussão os seguintes temas e desafios:
3.1) O livro se sustenta na identificação de uma dialética central e polarizada em toda a história do cristianismo e suas instituições
Essa dialética já fora identificada em livro de Leonardo Boff, Igreja, carisma e poder, de 1981, que provocou grave censura por parte do então cardeal Ratzinger, titular da Congregação para a Doutrina da Fé no Vaticano, e depois Papa Bento XVI:
a) De um lado, a mensagem do Jesus histórico altamente simbólica e que mobiliza intensamente a subjetividade, o inconsciente e espiritualidade das pessoas e coletividades, com base em seu exemplo de vida, de:
- nascer, fazer parte, valorização e defesa dos pobres e oprimidos da sociedade em que viveu;
- desenvolvimento e conquista de uma liberdade radical nas escolhas de vida, por mais dolorosas que fossem;
- e distanciamento dos poderes constituídos da época, que acabaram por persegui-lo e crucificá-lo.
Tudo isso constituiu o marco fundador e insubstituível da tradição cristã, que inspirou posteriormente importantes formas de viver o cristianismo, cujo exemplo mais arquetípico foi Francisco de Assis, ou algumas manifestações mais recentes, como o Concílio Vaticanos II, a Teologia da Libertação e o legado do Papa Francisco.
b) De outro, o longo processo de institucionalização da Igreja formada após a sua morte, gerando hierarquias e poderes constituídos que se iniciaram principalmente com a associação ao Império Romano, como religião de Estado, reprimindo as demais religiões e formas de espiritualidade. Esse foi o ponto de partida para um distanciamento radical da mensagem original, transformando:
- a própria Igreja Católica em Estado Imperial, ou aliando-a às monarquias absolutas da Europa, ajudando-as a legitimar as guerras de conquista;
- a promover a Inquisição, que por séculos torturou e queimou milhares de pessoas consideradas dissidentes da tradição aceita pelas autoridades eclesiásticas;
- a criar e promover as Cruzadas, que expulsaram judeus e a população árabe pacífica da Europa e Oriente próximo, estimulando a radicalização da religião islâmica, que até então sustentava a continuidade da herança iluminista greco-romana e era muito tolerante com outras culturas e religiões;
- a estimular e legitimar a conquista colonial nas Américas, África e países da Ásia, incluindo a escravização e amplo extermínio de populações negras e de povos originários;
- a manter uma hierarquia e cultura patriarcal, machista, repressora da sexualidade e homofóbica durante toda essa trajetória, não reconhecendo e mesmo negando os direitos das mulheres e das pessoas com identidades sexuais diversas, dentro e fora da instituição, como também sendo hoje a única religião cristã no mundo que reprime integralmente o direito à vida sexual e conjugal dos padres.
Essa dialética continua inexoravelmente hoje, e William foca mais particularmente nos processos sociais, culturais e subjetivos que atravessam a formação e o perfil atual do clero católico no Brasil.
Seu livro, baseada nesta dialética de base, mesmo que implícita, revela assim fenômenos essenciais nos dias de hoje para contribuir na elaboração pessoal de seus sacerdotes e para se repensar o processo de formação inicial nos seminários, nas universidades e na formação continuada dentro da Igreja, e nos seus demais processos institucionais.
3.2) As relações entre a Igreja Católica e o regime republicano e o secularismo na modernidade, e a continuidade da pretensão hegemônica e do conservadorismo católico
O regime republicano proclamou formalmente a liberdade religiosa, a separação entre as igrejas e o poder de Estado e suas políticas públicas e sociais, que deveriam ser orientadas pelo secularismo, laicidade e a livre competição entre as diferentes religiões na sociedade civil. No entanto, a Igreja Católica resistiu fortemente à laicização na educação, na assistência social, e na influência junto aos governos constituídos e na sociedade civil em geral. Como exemplo, no Brasil, a perseguição das religiões e rituais de origem africana e espíritas continuou por décadas após a Proclamação da República.
O Concílio Vaticano II significou uma tentativa de reconhecimento do legado histórico de Jesus, o espírito republicano e das preocupações sociais na igreja, mas logo depois, dois longos papados conservadores, de João Paulo II e de Bento XVI, praticamente bloquearam os ventos renovadores de João XXIII. No Brasil, isso representou:
- o isolamento da CNBB nas relações com o Vaticano;
- o bloqueio na indicação de bispos mais progressistas, o que afetou claramente a formação e o perfil dos novos sacerdotes formados sob a direção desses bispos mais conservadores;
- a censura à Teologia da Libertação;
- o desestímulo às Comunidades Eclesiais de Base e suas práticas pastorais e litúrgicas renovadas e mais livres;
- e o estímulo a abordagens individualistas e mais conservadoras, como o Movimento Carismático.
Na linha histórica desse conservadorismo, a Igreja Católica acabou se associando mais às classes médias e altas das cidades médias e grandes, e as periferias urbanas e cidades pequenas e zonas rurais das regiões mais pauperizadas no Brasil passaram a ser ocupadas pelas igrejas evangélicas.
3.3) A ascensão do neoliberalismo a partir da década de 1980, o avanço gradual da crise das políticas sociais universais e a expansão das formas religiosas mais conservadoras, particularmente neopentecostais
Para além da abordagem dos fenômenos internos à Igreja Católica, considero fundamental compreender também os processos históricos e societários recentes mais amplos. A década de 1980 foi testemunha de uma crescente crise fiscal do Estado nos países ocidentais e de um desfinanciamento e sucateamento gradual das políticas sociais universais, características centrais do neoliberalismo.
Essas mudanças implicaram em restringir cada vez mais o acesso às políticas, serviços e direitos sociais universais de Estado, particularmente nos países periféricos e semiperiféricos, como o Brasil. Isso aumentou ainda mais a pobreza; a exclusão social; o desemprego; a deterioração do meio ambiente e a maior frequência e gravidade dos fenômenos climáticos radicais; e a exposição à violência cotidiana, acompanhada da ineficácia das instituições de segurança e Justiça para lidar com tais violências. Tudo isso potencializou a sensação de desamparo na maioria da população, principalmente a mais pauperizada. Essas vivências, quando são contínuas e não deixam vislumbrar saídas possíveis, quebram o pacto mútuo de cidadania (o reconhecimento dos direitos de cada cidadão, que por sua vez é levado a aceitar e introjetar limites e deveres), pacto esse que sustenta a regulação social republicana e laica. Essa regressão dá espaço para a anomia (transgressão delinquencial ou criminosa) ou para as formas pré-republicanas, sustentadas no imaginário religioso, estimulando maior rigidez psíquica e a intolerância social, moral e religiosa em relação à diversidade da vida humana.
Procurei sistematizar esse processo em meu livro "Religiões e o paradoxo apoio social – intolerância", de 2019, no qual mostro que as religiões constituem também aparelhos psíquicos compartilhados de regulação moral e social das relações de cada pessoa consigo mesmo, com seus desejos, impulsos e valores, introjetadas na estrutura da personalidade, como também das relações e normas sociais. É por isso que essa regressão do pacto social republicano implica mobilizar a herança das formas anteriores de regulação, em que o imaginário religioso é hegemônico. Não é aleatório que a população mais empobrecida no Brasil, diante dos desafios mais dramáticos da vida, exclama: “só Deus mesmo”, ou “só Jesus na causa”.
Esse imaginário religioso pré-republicano, e principalmente suas formas de interpelá-lo através da conversão religiosa radical para lidar com situações existenciais e sociais limite, como a adesão ao crime e o uso problemático de drogas, é interpelado mais intensamente pelas igrejas neopentecostais mais rígidas, intolerantes, conservadoras e, ou centradas na teologia da prosperidade, ou secundariamente, pelas formas de catolicismo mais tradicionais e valorizadoras de rituais mais emotivos e espetacularizados.
Em paralelo, a expansão mais incisiva das mídias convencionais, rádio e televisão, a partir da década de 1990, acelerou esse processo de expansão das igrejas evangélicas, e dentre elas, as neopentecostais, penetrando em regiões cada vez mais amplas do território nacional. A Igreja Católica logo percebeu que teria de competir nesse campo, e também expandiu seus canais de mídia. Um dos efeitos desse processo foi o uso crescente de música e dos cultos e liturgias com efeitos espetacularizados.
E essas mudanças chegaram então também aos sacerdotes católicos, processos que também estimularam a ideologia da vergonha.
3.4) A expansão do neoliberalismo radical e das forças políticas de ultradireita, associada aos efeitos do uso intensivo das tecnologias digitais e redes sociais, particularmente a partir da década de 2010.
A partir de 2008, tivemos uma crise econômica mundial iniciada por uma bolha imobiliária e financeira dentro dos Estados Unidos, processo que coincidiu com algumas guerras no mundo e processos migratórios em massa para os países centrais. Isso gerou fechamento das fronteiras internas para migrantes, com tons xenofóbicos e racistas, um acirramento da competição econômica entre os países, induzindo novas barreiras comerciais e nacionalismo, como também acentuando a crise fiscal dos governos e maior sucateamento das políticas sociais. Crises profundas como estas estabelecem as condições perfeitas para a ascensão de uma ultradireita radical, com tons fascistas, até em países centrais com longa tradição liberal. Trump, Bolsonaro, Netanyahu, Putin e Milei são alguns exemplos típicos.
A ‘novidade’ desta nova onda ultraconservadora, em relação ao fascismo e nazismo do século XX, tem sido a negação das ciências e um forte apelo e alianças com forças religiosas acentuadamente conservadoras e fundamentalistas, como acontece no Brasil com algumas igrejas neopentecostais e o bolsonarismo, mas também mobilizando setores mais conservadores da Igreja Católica.
Em paralelo, a ampla difusão das tecnologias digitais e uso intensivo das redes sociais estimulou bolhas fechadas de comunicação, as fake news e a desinformação generalizada, a legitimação do cinismo e da quebra de padrões mínimos de ética e a polarização político-ideológica, ameaçando a credibilidade das ciências e do jornalismo de qualidade, desqualificando o debate público e ameaçando os fundamentos da própria vida democrática.
No campo religioso, esse processo estimulou o poder de líderes mais carismáticos com maior destreza no uso das redes sociais e influencers, reproduzindo os componentes de desinformação, cinismo e até mesmo falta de ética, ou seguindo os passos dos artistas e cantores com maior público, acentuando a espetacularização da vida religiosa. Essa tendência é hegemonizada pelas igrejas conservadoras e fundamentalistas, particularmente as neopentecostais, com alianças políticas explícitas com a ultradireita. No entanto, esse processo também atinge os fiéis católicos e setores da Igreja, que fazem demandas a estes padres, estimulando a ideologia da vergonha.
4) Considerações finais
Inserir estes tópicos no debate colocado pelo livro do William implica em desvalorizar sua obra? De forma alguma. A excelente radiografia feita pelo nosso autor é fundamental para que os padres possam rever sua trajetória pessoal, honrar suas origens, cultura e familiares, identificar como esses diversos processos e dimensões atravessaram suas vidas, levantar elementos importantes para um processo de reelaboração pessoal, como também para oferecer subsídios fundamentais para se repensar a formação do clero. William oferece um discurso “por dentro” e profundamente respeitoso da instituição católica, diminuindo resistências para a avaliação e reelaboração dos processos observados.
O perfil de minha abordagem é mais contextual e livre, com uma abordagem mais acadêmica e dirigida para intelectuais, atores e lideranças dos movimentos sociais católicos mais progressistas, mostrando um leque mais amplo e crítico de dimensões a serem incluídos no debate, visando transformações mais profundas no campo da cultura religiosa, das instituições católicas, da formação dos sacerdotes e dos próprios movimentos sociais e pastorais associadas à Igreja.
Espero que esses comentários contribuam para o debate do tema e para subsidiar mudanças, na perspectiva do Jesus histórico, de sua aliança com os pobres e com uma espiritualidade aberta e corajosa, e ao mesmo tempo crítica em relação a este momento sombrio que a humanidade e o planeta atravessam.
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