American Revolution. Artigo de Samuel Kilsztajn

Zohran Mamdani | Foto: Wikimedia

06 Novembro 2025

Zohran Mamdani foi eleito prefeito da Cidade de Nova York – jovem imigrante naturalizado, filiado ao Democratic Socialists of America (leia-se comunista, termo proibido nos Estados Unidos), além de muçulmano e pró-palestino – “Deus salve a América”.

O artigo é de Samuel Kilsztajnprofessor titular em economia política. Autor, entre outros livros, New York, New York. O texto foi publicado por Le Monde Diplomatique Brasil, 06-08-2025, e enviado pelo autor ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Eis o artigo. 

Os Estados Unidos da América sempre constituíram uma nação violenta, que exterminou os povos indígenas nativos das Américas; promoveu a trágica imigração compulsória e a escravidão dos povos da África Subsaariana; incorporou os territórios colonizados por espanhóis e franceses; e promoveu a Marcha para o Oeste. Os norte-americanos, em sua história, assistiram a vários assassinatos de presidentes, candidatos e figuras públicas. Quatro presidentes foram assassinados em exercício, Abraham Lincoln em 1865, James Abram Garfield em 1881, William McKinley em 1901 e John Fitzgerald Kennedy em 1963. A América, “terra dos livres e lar dos valentes”, que se transformou no país imperialista por excelência, interfere na economia e na política de todos os demais países, explora o mundo inteiro e intervém militarmente em outras nações de acordo com a sua conveniência. Os norte-americanos são racistas em relação a afrodescendentes, hispanos, orientais etc. e, com seus dólares, acham que são os donos do universo. Yankee go home!

Os militares brasileiros, por sua vez, acham que “o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Mas os mineiros de Governador Valadares foram mais longe ainda e acham que melhor mesmo é viver na América, em Orlando ou em Boston, assim como os brasileiros ricos acham que melhor mesmo é viver em Miami.

Contudo, além de violentos e imperialistas, os Estados Unidos também sempre foram uma nação revolucionária, a começar por abrigar os europeus expulsos pelo processo de acumulação primitiva do capital e os indesejados por questões religiosas – ingleses, holandeses, alemães, escoceses, irlandeses, suíços e franceses. Soma-se a Revolução Americana de 1776 e a guerra de independência em relação à Inglaterra; a Guerra Civil com a vitória dos estados do norte, progressistas e contrários à escravidão; a abertura dos portos para os novos imigrantes da Itália e do Leste Europeu etc.

O movimento libertário anarquista era muito expressivo entre os operários nos Estados Unidos no final do século XIX e início do século XX. A Chacina de Chicago de 1886 foi responsável pela instituição do 1º de maio como Dia Internacional dos Trabalhadores. Os anarquistas eram socialistas, contra qualquer forma de opressão, principalmente do Estado; e antimilitaristas por natureza, contra as guerras entre os estados nacionais. Depois da Primeira Guerra Mundial e da Revolução Russa, os anarquistas foram duramente reprimidos na América, que temia uma revolução em escala mundial, foram presos e deportados, numa perseguição muito mais dura que aos comunistas no período do macarthismo da Guerra Fria.

Após a Segunda Guerra Mundial, em que desempenharam um papel decisivo para a derrota do Eixo e a libertação da Europa Continental, os Estados Unidos e a União Soviética passaram a dividir o globo terrestre. Nos anos 1960, em plena Guerra Fria, cresceu o movimento contracultura e contra a Guerra do Vietnã nos Estados Unidos. Em 1971, enquanto Imagine do inglês John Lennon, em ritmo zen, se transformava no hino internacional contra as guerras, sugerindo que as pessoas imaginassem o mundo todo vivendo a vida em paz; nos Estados Unidos, Blowin’ in the wind de Bob Dylan, inspirado no ritmo spiritual negro revolucionário de No More Auction Block, incendiava os jovens, desde 1963, perguntando quantas mortes ainda serão necessárias até que se saiba que muitas pessoas já morreram.

John Lennon, durante a apresentação dos Beatles à Rainha e à família real na Inglaterra, disse: “Gostaria de pedir a ajuda de vocês. Para as pessoas nos assentos mais baratos, batam palmas; e os demais, se quiserem, apenas chacoalhem suas joias”. Os americanos, no entanto, não têm rainha nem corte para se debaterem em vão, sua agressividade flui naturalmente – para um brasileiro, pode ser muito difícil conceber, mas mesmo as pessoas em situação de rua e os indigentes são altivos e possuem um forte senso de seus direitos como cidadãos. Sid Vicious, do Sex Pistol, era uma afronta na Inglaterra, mas não conseguia entender a cultura dos Estados Unidos e teve a sua agressividade neutralizada pela sociedade norte-americana. Agressivo no palco, ele levou uma surra lascada na saída do espetáculo. Sid Vicious morreu de overdose em 1979, quatro meses depois que a sua namorada norte-americana, Nancy Spungen, foi assassinada – Sid era o principal suspeito do crime – no Hotel Chelsea em que viviam, a poucas quadras do apartamento em que eu morava em Nova York. Em 1980, o inglês John Lennon também foi assassinado nos Estados Unidos.

As velhinhas norte-americanas de tailleur são muito mais perigosas do que os punks ingleses. Eu estava num ônibus quando subiu um número exagerado de pessoas. Uma senhora idosa e muito elegante sentou-se a meu lado e contou que o motorista do outro ônibus desceu todos os passageiros porque seu substituto falhara e o carro iria para a garagem. Cansado de ouvir a mulher ficar reclamando, me referi ao bom tempo que fazia. A velhinha não se fez de rogada – “se estivesse chovendo eu teria dado um tiro na cabeça do motorista”. Fiquei torcendo para que o tempo não virasse.

Martin Luther King e Robert Kennedy foram assassinados em 1968 sem que a ordem pública e as instituições dos Estados Unidos fossem abaladas. Pelo contrário, as instituições democráticas norte-americanas foram reforçadas depois desses assassinatos. Numa palestra, conheci um senhor, já muito idoso, que havia sido amigo de Luther King. Contou que fazia parte da primeira turma em que um negro se titulou advogado, talvez na Columbia University, não me recordo exatamente; e, no discurso de formatura, para parabenizar o formando, o reitor disse que esperava que ele emigrasse para a Libéria.

O amigo de Luther King, para elucidar a vitalidade que beira à violência, contou que, uma vez, colocou um anúncio no jornal, para contratar uma secretária, e que apareceu uma candidata que simplesmente não tinha nenhuma das qualificações listadas no anúncio, nenhuma; ele também não teve nenhuma dúvida e contratou a ousada candidata no ato. Outra vez, ele estava na rua esperando um táxi de uma agência, que tinha contatado ao telefone. Um automóvel parou, o motorista abriu a porta e ele entrou, achando que era o táxi que havia solicitado – não era. O motorista, recém-chegado à cidade, sequer conhecia as ruas de Nova York, mas havia percebido que ele estava aguardando um carro. O senhor teve que indicar o caminho e disse para nós que isso é que era o nova-iorquino, que esse motorista furão, com toda sua garra e cara de pau, certamente iria aprender a dirigir na cidade em tempo recorde... e o que mais?

Na época da palestra, 1991, os Estados Unidos estavam metidos numa crise econômica séria e falava-se muito em violência. O senhor idoso disse que, nas primeiras décadas do século XX, no tempo das máfias italianas, judias e irlandesas, nem mesmo a polícia tinha coragem de sair para a rua depois das oito horas da noite. A energia do amigo de Luther King era tão forte, que fiz questão de ir apertar a sua mão no final da palestra. Não falei nada, só queria pegar na mão dele.

Ao visitar o Museu da Imigração em Ellis Island, li um depoimento de uma agente da imigração contando a entrevista com uma senhora recém-chegada nas primeiras décadas do século XX, com suspeita de debilidade mental. Se a suspeita fosse confirmada, a mulher não seria admitida em território americano e teria que retornar ao país de origem. O teste psicológico incluía algumas questões. Perguntaram se, quando ela lavava uma escada, lavava de baixo para cima ou de cima para baixo. A mulher ouviu a pergunta, ficou pensativa e disse, finalmente – “eu não vim para a América para ficar lavando escadas não”.

Para Karl Marx, a Inglaterra, o país que inaugurou o Capitalismo Industrial e que detinha a hegemonia internacional no século XIX, seria o palco da Revolução Socialista. Mas o seu fiel parceiro Friedrich Engels, que lhe sobreviveu, se lamentou que a classe operária inglesa havia se aburguesado. Posso estar errado, mas minha intuição me leva a crer que, com a perda da hegemonia internacional deste tigre de papel e o fiasco Trump, os Estados Unidos estão fadados a herdar o papel atribuído à sua antiga metrópole e liderar a Revolução Socialista Internacional.

Que o povo norte-americano, com coragem, se levante na luta final pela Internacional!

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