29 Outubro 2025
"Gaza está virando a página, mas é necessário um salto geracional, e decidir sobre seu futuro não cabe à liderança que transformou a Faixa em um monte de escombros", afirma o Cardeal Pierbattista Pizzaballa, Patriarca de Jerusalém dos Latinos, membro dos dicastérios do Vaticano para as Igrejas Orientais e para a Unidade dos Cristãos, figura de referência para todo o cristianismo na Terra Santa: "A reconstrução de Gaza não será feita por Kushner ou Blair. A verdadeira reconstrução será feita por aqueles voluntários que no próprio local, um após o outro, sujando as mãos, serão capazes de reconstruir o tecido civil e humano que a guerra destruiu."
A entrevista é de Giacomo Galeazzi, publicada por La Stampa, 28-10-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
"Ousar a Paz", como reza o encontro de Santo Egídio, do qual o senhor é palestrante, também é um desafio religioso?
Uma nova fase está começando, não apenas do ponto de vista geopolítico, mas também para o diálogo entre as religiões, e devemos levar em conta o que aconteceu em um período objetivamente complicado. Neste momento, o Vaticano celebra o 60º aniversário da ‘Nostra Aetate’, o documento conciliar que foi uma pedra angular do diálogo inter-religioso. Abrir uma nova fase significa incluir tudo o que aconteceu para que possa ajudar a reconstruir, começando justamente pela superação das incompreensões que sofremos em um período feito de lágrimas, sangue, sofrimento, destruição, esperanças repetidamente frustradas e planos destruídos de paz e de justiça.
A reconstrução está começando?
Estamos lidando com destroços humanos além de materiais. Escolas, hospitais e casas não existem mais. Há um ódio que foi desencadeado pela guerra e que, por sua vez, gerou novo ódio. E o ódio destrói você por dentro e também destrói o outro. Portanto, agora tudo está por ser reconstruído, começando pela confiança. Porque o ódio destrói a confiança, e é impossível reconstruir sem um mínimo de confiança no futuro, nos outros, na família, em todo o tecido social.
A guerra de Gaza também foi uma guerra de palavras?
Justiça, paz e verdade não podem ser separadas. Mas a verdade muitas vezes faltou em um período tão doloroso. Cada um tinha sua própria verdade e não queria se relacionar com os outros, mas a verdade precisa levá-la em conta. Em tal contexto, a verdade é muito difícil, mas todas as vozes devem ser ouvidas e, acima de tudo, devemos encontrar a verdade dentro de nós mesmos para tentar interpretar bem um tempo difícil. A verdade exige coragem, mas é sempre necessária.
Que tipo de paz existe agora na Faixa?
Uma paz a ser implementada, que também foi fruto do multilateralismo e que agora precisa ser colocada em prática. Não há bombardeios como antes, não há a operação como antes, mas é uma trégua muito frágil, com confrontos e provocações contínuas. Na cúpula de Sharm el-Sheikh, muitos países árabes também assinaram. Houve envolvimento, uma determinação comum que levou ao fim da guerra, ou pelo menos dessa fase da guerra. É lógico perguntar-se por que agora e não antes, mas é ainda mais lógico perguntar-se o que fazer agora e como reconstruir a sociedade. Muitas vezes, nestes meses, me perguntei como lidar com a desagradável sensação da inutilidade das palavras, mesmo aquelas da fé, diante da dureza da realidade e da evidência de um sofrimento que parece interminável. O caminho é longo e levará tempo, mas estamos começando a olhar para o futuro.
Qual o papel dos cristãos?
Além daquele oferecido pelos cristãos, há muitos outros exemplos de convivência na Terra Santa. Nossa tarefa, mais do que mediar e ‘pontificar’ no sentido de construir pontes, é facilitar, ajudar na compreensão, favorecer oportunidades de encontro, formar uma espécie de coordenação para reconstruir as relações essenciais. Uma fase terminou, a situação não poderá ser como antes. Dois anos não podem ser esquecidos, mas também não podem se tornar recriminação de um contra o outro.
Leão ofereceu o Vaticano como um lugar onde os inimigos podem se encontrar.
A Santa Sé pode ajudar na paz, pode ser um espaço de diálogo, assim como todas as outras realidades onde podemos nos encontrar. É necessário criar uma rede. Não apenas a Santa Sé, mas as Igrejas, as realidades religiosas. Precisamos delinear um contexto onde possamos nos escutar e também reconstruir uma nova linguagem e narrativa. Até agora, porém, deixamos a narrativa apenas aos extremistas.
É necessário ser neutros?
Neutro não significa ser 'super partes'. Quando há uma guerra, você tem que estar ali, tem que estar dentro. O pior período foi dos primeiros seis meses. Levou tempo para entender a dimensão do que estava acontecendo. O ecumenismo é um problema ocidental; aqui na Terra Santa, cristãos de diferentes confissões já estão juntos. A paz desarmada e desarmante de que o Papa fala é muito mais do que a ausência de guerra.
No diálogo entre as religiões, é preciso partir do fracasso experimentado nestes dois anos para superá-lo, ir além e crescer na compreensão mútua. As causas do conflito entre israelenses e palestinos foram narradas pelo Hamas e pelos colonos.
Quais são os obstáculos?
As divisões entre israelenses e palestinos são fortes e, neste momento, não há sinal de uma liderança com visão política e religiosa. Somente uma pacificação autêntica pode silenciar de forma duradoura os rumores da guerra e a retórica vazia dos poderosos. O pedido de paz ressoa poderosamente nas lágrimas daqueles que sofrem e encoraja a desarmar a vingança com o perdão. Nossa geração deve preparar as condições para que a próxima possa falar de paz com credibilidade. As coisas não mudam sozinhas. Mudam se houver líderes com uma visão que as levam adiante e saibam como unir seus respectivos povos. O ódio que foi desencadeado, que nos invadiu, criou uma profunda ruptura nas relações entre as pessoas. Precisamos dar um salto adiante no diálogo entre religiões, que é um dos pontos do plano de Trump.
O silêncio é um risco?
Em breve a mídia deixará de falar sobre Gaza e, portanto, o mundo deixará de ver a Faixa, mas as pessoas continuarão lá, sem casas, escolas, hospitais, sem nada. E estar presente lá será ainda mais necessário. A ajuda continua escassa. O primeiro objetivo é estabilizar a região. Gaza não pode ser separada da Cisjordânia; são partes do mesmo povo. A Cisjordânia é um polo central. Não devemos ceder à lógica do conflito. Deve ser defendida a possibilidade de falar uma língua diferente daquela das armas.
Leia mais
- De Trump à "reconstrução" de Gaza, do urbicídio à necrocidade. Artigo de Marco Cremaschi
- Custo do carbono da reconstrução de Gaza será maior que emissões anuais de 135 países
- Quem se beneficia com os bilhões prometidos para a reconstrução de Gaza?
- Gaza e a lógica da necrocidade como modelo global: fazem uma ruína e a chamam de desenvolvimento. Entrevista especial com Marco Cremaschi
- "A devastação em Gaza tem sido sistemática. Agora é um deserto", constata relatório da ONU
- Projeto "Riviera" de Trump nas ruínas de Gaza: deslocamento forçado para um centro de turismo e tecnologia
- Blair e Kushner se encontram com Trump. Uma cúpula sobre o futuro da Faixa de Gaza será realizada na Casa Branca
- A "Riviera" de Tony Blair que assusta todo o mundo árabe. Artigo de Fabio Carminati
- Mar-a-Gaza ou Nakba? Transformar a Faixa de Gaza em Riviera é uma indignação para os árabes. Mas há quem sinta o cheiro do negócio
- Do deslocamento palestino à construção na Riviera: tudo sobre o plano de Trump para Gaza. Artigo de Enrico Franceschini
- "Se Trump se distrair, a trégua em Gaza não será mantida". Entrevista com Nasser al-Qudwa
- O Plano Americano: Uma Gaza Livre do Hamas Nascerá Atrás da Linha Amarela
- A intra-história do plano de Trump para Gaza: como o 'dia seguinte' ao genocídio foi negociado nos bastidores
- Todos os pontos-chave do plano de Trump. E o que ele pode fazer com o sonho de um Estado palestino
- "Os EUA participam da guerra em Gaza. O plano de Trump é um projeto neocolonial". Entrevista com Rashid Khalidi
- Os moradores de Gaza olham para o futuro e para o plano de Trump com pessimismo: "As coisas voltarão a ser como eram ou até piores"