11 Outubro 2025
Em um mundo que tende a simplificar o complexo, os vencedores do prêmio nos lembram que o verdadeiro conhecimento nasce da criatividade, das lacunas no que sabemos e da cooperação.
O artigo é de Sônia Contera, publicado por El País, 10-10-2025.
Sônia Contera é professora de física na Universidade de Oxford e autora do livro "Seis problemas que a ciência não consegue resolver", que será publicado pela Arpa em 12 de novembro.
Eis o artigo.
Este ano marca um século desde que a física descobriu que, no cerne da matéria, a realidade não obedecia mais às leis do senso comum. Nas minúsculas escalas de átomos e moléculas, o mundo revelou uma lógica diferente, mais sutil e ambígua, que ia além dos moldes estabelecidos por Galileu e Newton. A teoria quântica é famosa por seus paradoxos: partículas também podem se comportar como ondas, podem existir simultaneamente em múltiplos estados — mesmo mutuamente contraditórios — e podem se entrelaçar de tal forma que suas propriedades sejam correlacionadas, independentemente da distância entre elas.
Física do mundo quântico
O Prêmio Nobel de Física deste ano foi concedido a três cientistas — John Clarke, Michel H. Devoret e John M. Martinis — por trazerem um dos fenômenos mais estranhos do mundo quântico, o efeito túnel, para a escala humana.
O tunelamento quântico ocorre quando uma partícula atravessa diretamente uma barreira que, segundo a física clássica, seria intransponível. É como jogar uma bola contra uma parede e vê-la emergir intacta do outro lado, sem que a parede sofra o menor dano. Esse fenômeno, que fundamenta o funcionamento dos transistores — os minúsculos mecanismos que tornam possíveis os algoritmos de inteligência artificial — geralmente desaparece em sistemas maiores. É por isso que não vemos pessoas atravessando paredes no dia a dia.
Entretanto, em uma série de experimentos conduzidos na Universidade da Califórnia, Berkeley, entre 1984 e 1985, Clarke, Devoret e Martinis mostraram que o efeito poderia se manifestar em escalas maiores.
Os três pesquisadores projetaram circuitos eletrônicos baseados em supercondutores, materiais capazes de conduzir corrente elétrica sem resistência. Seus dispositivos, chips do tamanho da palma da mão, continham componentes supercondutores separados por uma fina camada isolante: uma configuração conhecida como junção Josephson, nomeada em homenagem ao físico Brian Josephson, que a propôs em 1962.
Ao medir extensivamente as propriedades desses circuitos, Clarke, Devoret e Martinis mostraram que os elétrons no sistema se comportavam como se fossem uma única entidade quântica, atravessando coletivamente a barreira e preenchendo todo o circuito.
Ao usar a supercondutividade — outra das propriedades mais surpreendentes descobertas pela física moderna — esses cientistas mostraram como, sob certas condições, a natureza pode mais uma vez quebrar as regras do senso comum e dar origem a propriedades emergentes que são impossíveis de explicar com uma lógica simples e reducionista de causa e efeito linear, mas que só podem ser explicadas quando os efeitos coletivos de milhões de átomos são levados em consideração.
Com essas descobertas, a física começou a domar as peculiaridades do mundo quântico e a transformá-las em ferramentas tecnológicas, mas, para isso, utilizou propriedades que seguiam a nova lógica da emergência, do coletivo. Isso lançou as bases para os avanços atuais na computação quântica. Não por coincidência, Devoret e Martinis trabalharam nos projetos de computadores quânticos do Google, cujos chips quânticos são baseados em suas descobertas. O Google conta com cinco ganhadores do Prêmio Nobel entre seus colaboradores e funcionários — incluindo três nos últimos dois anos —, além de figuras como Demis Hassabis, John Jumper e Geoffrey Hinton.
Química para reinventar o espaço
O Prêmio Nobel de Química foi concedido a três cientistas que também ousaram desafiar o reducionismo com uma imaginação capaz de reinventar o próprio espaço em escala atômica: Susumu Kitagawa, Richard Robson e Omar M. Yaghi. A conquista deles reside na concepção de materiais extraordinários, cheios de minúsculos orifícios — nanoporos — que funcionam como esponjas moleculares.
Esses materiais, conhecidos como estruturas metalorgânicas (MOFs), abriram uma nova fronteira entre a química, a física e a engenharia de materiais. São redes cristalinas formadas pela ligação de íons metálicos com moléculas orgânicas (à base de carbono), que se repetem no espaço, criando estruturas semelhantes a gaiolas. Cada uma dessas gaiolas contém um pequeno vazio, um poro perfeitamente definido, capaz de hospedar outras moléculas ou permitir a passagem seletiva de certas substâncias.
O resultado é um material cuja porosidade pode ser quase personalizada: nanocavidades que funcionam como armadilhas, filtros ou catalisadores. Os MOFs já estão em ensaios clínicos para aprimorar tratamentos de radioterapia contra o câncer; estão disponíveis comercialmente para capturar dióxido de carbono de processos industriais, como a produção de cimento, ou para facilitar a geração de hidrogênio; e estão sendo investigados como sistemas para extrair água do ar em regiões áridas, purificar águas residuais, remover poluentes ou administrar medicamentos direcionados dentro do corpo.
Este Prêmio Nobel também tem um impacto profundo no mundo de hoje. Um dos laureados, Omar Yaghi, também ganhou as manchetes por sua história pessoal, que ressoa com as tragédias e o deslocamento humano do presente. Nascido e criado em um campo de refugiados palestinos em Amã, capital da Jordânia, Yaghi emigrou para os Estados Unidos aos quinze anos.
“Cresci em um lar muito humilde”, lembra Yaghi. “Éramos dezenas de pessoas em um único cômodo, que dividíamos com o gado que criávamos. Nasci em uma família de refugiados, e meus pais mal sabiam ler ou escrever... Então foi uma longa jornada, e a ciência foi o que a tornou possível. A ciência é a maior força equalizadora do mundo.”
Medicina de vigilância imunológica
Finalmente, o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina de 2025 foi concedido a Mary E. Brunkow, Fred Ramsdell e Shimon Sakaguchi, três cientistas que fizeram descobertas fundamentais sobre um mecanismo essencial à vida: a tolerância imunológica periférica, o sistema que atua como um freio no sistema imunológico e impede que ele se volte contra o próprio corpo.
Eles também desafiaram a lógica simplista e linear com uma ideia contraintuitiva: para o sistema imunológico funcionar corretamente, não basta reconhecer e destruir células ou patógenos perigosos. Ele também precisa de células responsáveis por garantir que suas próprias defesas não cometam erros; uma espécie de força policial que mantém a ordem dentro do exército imunológico.
Graças às suas descobertas, agora entendemos que o sistema imunológico não é apenas uma máquina de defesa, mas uma comunidade dinâmica de vigilância, contenção e equilíbrio. E nesse delicado pacto entre destruição e autocontrole reside uma lição que transcende a biologia: mesmo nos sistemas mais poderosos, a sobrevivência depende da capacidade de limitar a própria força.
Também vale destacar o perfil de Mary Brunkow — a única mulher a ganhar um Prêmio Nobel de Ciência em 2025 — que contrasta fortemente com o modelo da pesquisadora que acumula publicações e cargos: ela publicou apenas 34 artigos, o que não atrapalhou seu magnífico sucesso científico.
Em diferentes áreas, os vencedores do Prêmio Nobel deste ano celebram uma percepção comum: a de que a realidade, seja quântica, molecular ou biológica, não é governada por linhas retas ou respostas simples. Que a ciência avança não por meio da acumulação, mas pela imaginação. Diante de um mundo que tende a simplificar o complexo, a reduzir a vida a métricas, algoritmos ou hierarquias, essas descobertas nos lembram que o verdadeiro conhecimento nasce da criatividade, das lacunas no conhecimento e da cooperação.
Em uma era marcada pela fragmentação, pela guerra e pela obsessão pelo desempenho, esses prêmios apontam para outra forma de esperança: uma ciência guiada pelo otimismo criativo e pelo bem comum, que olha além do cálculo e ousa imaginar um mundo compartilhado. Porque, como Hannah Arendt, tão relevante hoje, nos revelou, somente quando pensamos e agimos com os outros a inteligência se torna humanidade.
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