30 Setembro 2025
Luís Carlos Guedes Pinto, que ocupou a Pasta da Agricultura no primeiro governo Lula, mostra como setor se tornou potência sem encarar desigualdades e desafios como uso de agrotóxicos.
A entrevista publicada por Folha de S. Paulo foi enviada pela Secretaria Geral do MST, 29-09-2025.
O ex-ministro da Agricultura Luís Carlos Guedes Pinto, 83, continua participando ativamente de fóruns de discussão sobre o agronegócio brasileiro mesmo depois de aposentado.
Testemunha de debates históricos como o da reforma agrária, o engenheiro agrônomo, que foi pró-reitor da Unicamp, ocupou cargos importantes na Embrapa, na Conab e no Banco do Brasil, de onde viu o país nascer e crescer como potência agropecuária.
Guedes, no entanto, aponta as contradições históricas e impasses atuais do setor. "Nossa agricultura moderna é fruto de política pública. Não existiria se não fosse financiado pelo Estado. É extremamente subsidiada", avalia.
A imagem de progresso e potência, diz ele, não reflete todo o setor. Guedes ressalta que o conceito de agronegócio vai além da porteira. "Muitos produtores rurais hoje se veem como empregados das indústrias."
Uma constatação que encontra respaldo em estudo recente da revista Global Food Security, segundo o qual de cada dólar gasto em alimentos apenas 16% ficaria no elo agrícola. "Ou seja, o risco climático e a responsabilidade socioambiental ficam em países como o Brasil, enquanto a maior parte do valor é capturada por aqueles que operam fora da porteira e do país."
A seguir, os principais trechos da entrevista do técnico que, ressalta, foi um dos poucos ou senão o único a ocupar o ministério mesmo não sendo fazendeiro.
Eis a entrevista.
O senhor já esteve com a caneta na mão. Qual seria sua prioridade se fosse ministro da Agricultura hoje?
Sustentabilidade. Criar uma agricultura mais amigável com a natureza e as condições para que isso aconteça. Da mesma forma que o estado foi indutor de uma agricultura produtiva lá na década de 1970 e 1980, que seja indutor dessa agricultura que busque sustentabilidade e inclusão.
O agro está assentado em modelo de produção que provoca impacto enorme na natureza, com uma expansão da fronteira agrícola para Centro-Oeste e Norte feita com enorme destruição dos biomas. Grande parte dessas terras é grilada. São terras públicas invadidas. Primeiro, chegam garimpeiros e madeireiros. Depois, a agricultura. Além da incorporação de novas áreas desta forma, temos o impacto do uso de produtos químicos, sobretudo de agrotóxicos. Somos o maior importador do mundo de adubos e agrotóxicos.
Para continuar a ser celeiro do mundo, o agro brasileiro precisa dar respostas para estas questões ambientais e de saúde pública?
Corretíssimo. Nós temos que mudar o modelo. Esse é o grande desafio para a Embrapa hoje. Prover um novo modelo de produção que não seja tão dependente desses insumos. Promover o que se chama agricultura regenerativa, que não só preserve, mas recupere. Temos que pensar nos nossos filhos, netos, bisnetos. Nós temos lideranças que enxergam dessa forma, como Roberto Rodrigues, que foi meu colega de turma. Mas há outras lideranças representativas de confederações e associações que não têm essa visão. E são as predominantes. Às vezes, têm até no discurso, mas não na prática.
O Estado continua sendo o motor do Brasil como potência agropecuária?
Nossa agricultura moderna é fruto de política pública. Não existiria se não fosse financiado pelo Estado. É extremamente subsidiada. Fiz um estudo sobre crédito rural em 1979. Em 1975, o volume do crédito rural foi maior que o valor da produção agrícola naquele ano, somados os recursos para custeio, comprar adubo, semente, combustível; investimento, basicamente para maquinário; e comercialização, para segurar a produção e obter preços melhores.
O financiamento para comprar máquinas agrícolas era taxa zero. Isso perdurou. Diminuiu um pouco com a crise do petróleo, mas continua até hoje em menor escala. O que permitiu que alguns setores da agricultura brasileira se apropriassem desses recursos, sobretudo os grandes produtores.
É uma lógica de fomento à produção em escala e mecanizada?
Exatamente. Esses produtores foram muito competentes, usaram os recursos, incorporaram tecnologia na produção agrícola, como adubo, fungicida, semente melhorada, máquinas agrícolas. A agricultura brasileira tem se mostrado extremamente eficiente e competitiva.
O nascimento dessa agricultura moderna é resultado de crédito rural, da Política de Garantia de Preços Mínimos, pesquisa e assistência técnica da Embrapa, além da Lei Kandir, que isentou os produtos de exportação de ICMS. Em paralelo, o Ministério da Agricultura melhorou muito a área de defesa sanitária. E os grandes do agro se aproveitaram bem dessas circunstâncias. Tudo obra de políticas públicas. Meu estudo mostrava que 1% dos produtores se apropriavam de mais da metade do crédito rural.
E como fica o pequeno produtor rural?
Uma característica da agricultura brasileira é sua enorme heterogeneidade. Os pequenos agricultores não passavam nem em frente da agência no Banco do Brasil. Segundo o IBGE, há quase 5 milhões de estabelecimentos rurais, dos quais aproximadamente 500 mil não declaram renda. Então, 4,5 milhões geram renda. Segundo o Censo Agropecuário de 2017, 1% dos maiores produtores rurais geram 62,5% da renda. Ou seja, uma parcela de 45 mil produtores. E 90 mil deles, ou 2% do total, geram 70% da renda. De outro lado, 50% dos menores geram 1,5% da renda.
O nascimento dessa agricultura moderna é resultado de crédito rural, da Política de Garantia de Preços Mínimos, pesquisa e assistência técnica da Embrapa, além da Lei Kandir, que isentou os produtos de exportação de ICMS. Todas políticas pública.
E a agricultura familiar é importante para abastecimento do mercado interno, certo?
Há um certo exagero. Eu estava em Brasília, quando alguém criou essa frase: a agricultura familiar gera 70% do alimento que a gente come. Não é. Basta pegar os números. Mesmo porque há uma série de produtos. Arroz também é commodity. São poucas as culturas de alimentação básica que ainda são produzidas pelos pequenos agricultores.
É muito importante a agricultura familiar, mas ela também é heterogênea. O que me preocupa é uma parcela não incorporada. Quais são as políticas de apoio para cerca de 4 milhões de agricultores familiares? Vamos pegar o crédito agrícola, instrumento de apoio à produção mais amplo do país. Exagerando, ele não chega a 2 milhões de produtores.
E o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar?
Melhorou muito. O Pronaf foi criado na década de 1990 no governo Fernando Henrique. Nos dois primeiros governos Lula e no da Dilma, o Ministério da Agricultura Familiar, que havia sido extinto no governo Temer, conseguiu ampliar muito o programa de Aquisição de Aquisição de Alimentos, o PAA, operado pela Conab, no tempo que eu era presidente. O volume de recursos para agricultura familiar então cresceu muito.
Historicamente, o Ministério da Agricultura é patronal. Até se criou o Ministério da Agricultura Familiar, mas não conseguimos, do ponto de vista político, reunir forças para romper com uma questão estrutural de 500 anos. O agronegócio é uma minoria, mas é essa parcela de produtores que monopoliza o debate em torno de um setor estruturalmente desigual.
Esse seria o retrato não só do agro, mas do Brasil?
É a cara do Brasil. Primitivamente, a agricultura não ia buscar nada fora. Ela acontecia dentro da propriedade rural, da porteira para dentro, mas cada vez mais se moderniza e vai buscar fora insumos para a produção até chegar ao consumidor. Na década de 1980, começa a se falar de agronegócio no Brasil, que é oportunizar a agricultura em complexos agroindustriais e cadeias produtivas. Com indústria antes e depois.
A produção agropecuária propriamente dita no Brasil, segundo o IBGE, representa em torno de 6% a 7% do PIB, dependendo do ano. Com essa metodologia de juntar tudo o que vem antes e depois, chega-se a um patamar que varia entre 26% e 30%. Vamos imaginar o "minério negócio", pegando o setor de petróleo e fazendo o mesmo raciocínio. Juntando fábricas de automóveis, postos de gasolina, além das siderúrgicas e tudo o que vem do ferro e do plástico, temos um setor monumental. É o mesmo raciocínio do agronegócio, que soube construir essa ideia de uma forma inteligente, ampliando o peso do setor e explorando isso do ponto de vista político.
Há interesses variados dentro desse pacote do agronegócio?
De alguma maneira, isso desloca o debate de minifúndio e latifúndio e das desigualdades. Cria-se essa imagem de progresso e de potência que não reflete todo o setor, nem a realidade socioeconômica brasileira.
Essa ideia do agronegócio tem uma contradição interna: os interesses que se conjugam na indústria antes e na indústria depois. A maior parte da liderança da agricultura não enfrenta essa questão de que o risco da produção fica com os produtores rurais. Muitos se sentem empregados das indústrias. Eles consomem fortemente insumos e máquinas. E entregam seus produtos para gigantes como Bunge e Cargill.
Uma pesquisa recente da revista Global Food Security sobre o crescimento da desigualdade nas cadeias agroalimentares globalmente entre 1999-2020 mostra que os países do Sul Global produzem cerca de 80% dos produtos agropecuários do mundo, enquanto a renda se concentra em insumos, varejo, serviços financeiros e imobiliários, seguros. E a maior parte dela vai para paraísos fiscais e países do norte global.
De cada dólar gasto em alimentos apenas 16% ficaria no elo agrícola. Ou seja, o risco climático e a responsabilidade socioambiental ficam em países como o Brasil, enquanto a maior parte do valor é capturada por aqueles que operam fora da porteira e do país.
Essa ideia do agronegócio tem uma contradição interna: os interesses que se conjugam na indústria antes e na indústria depois. A maior parte da liderança da agricultura não enfrenta essa questão de que o risco da produção fica com os produtores rurais
Os produtores rurais correm os riscos e geram a riqueza para quem fornece os insumos e as máquinas e comercializam a sua produção. Não por acaso a Associação Brasileira de Agronegócios fica na Avenida Paulista e é comandada pela indústria. Esse conceito cria uma sombra perante a sociedade. O tal do agro pop se apresenta como um segmento moderno, mas não revela os problemas internos. É essa minoria de 2% dos produtores rurais que são representados no Congresso Nacional, com suas lideranças históricas. Os mesmos nomes e famílias de sempre.
Por que a gente vive a polarização também na agricultura, numa área tão vital para o país?
Eu vivo isso intensamente, e fico surpreso pelo grau. Historicamente, o agro é reflexo da ocupação do país, da grande propriedade monocultora escravista. A estrutura agrária brasileira nunca foi rompida. Só para dar um exemplo: Abraham Lincoln, quando há a libertação dos escravos nos Estados Unidos, aprova uma lei da propriedade familiar. Todo cidadão, americano ou não, tinha direito a ocupar 67 acres. Na Lei Áurea no Brasil, esse tema nem foi levantado.
O agro brasileiro continuou fundamentado na grande propriedade, e até hoje é ele que controla o poder. O agro tem uma representação política muito maior do que ele é. Elege porque controla currais eleitorais. Então, há uma continuidade grande de poder político.
Do ponto de vista agrícola, temos tido um enorme sucesso. Por isso, alguns estudiosos, separam a questão agrária, relativa à propriedade da terra, da questão agrícola, relativa à produção e às relações trabalhistas.
A discussão da reforma agrária foi ultrapassada?
Dificilmente a gente vai conseguir chegar lá. Lamentavelmente, é uma história de fracasso, que acompanho desde estudante. O Incra foi destruído. A principal liderança que batalhou pela reforma agrária no Brasil foi o José Gomes da Silva, que escreveu um livro sobre as quatro derrotas. Ele chegou a presidente do Incra, participou da Constituinte, onde o mais polêmico debate foi o parágrafo de reforma agrária.
Está lá: a terra que não cumpre a função social deve ser desapropriada para reforma agrária. Ela deve atender, simultaneamente, quatro requisitos: ser produtiva, respeitar o meio ambiente, proporcionar condições de vida satisfatória aos produtores e cumprir a legislação trabalhista. Embaixo vem um parágrafo que diz que terra produtiva não será desapropriada. A bancada ruralista venceu: não se diz o que é terra produtiva. Essa é a grande questão. Acabou.
Também participei bastante dessas discussões. No governo João Goulart foi criada a superintendência da reforma agrária. É curioso que vem o golpe de 1964, e surpreendentemente é aprovado o Estatuto da Terra. Entretanto, ficou na lei, enquanto vários países fizeram reforma agrária. Não vou falar de União Soviética, Cuba e outros países socialistas, mas de Itália, Espanha, Coreia do Sul e Japão.
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