30 Setembro 2025
"Inesperadamente, aqui estão eles, os filhos da derrota, criados por mães e pais traumatizados, educados no medo, na prudência, na abstenção, na inanidade — aqui estão eles, sendo e agindo. Eles não tiveram mestres; a geração que deveria ter essa tarefa, esse dever, negou-o e tratou de se autoabsolver; eles terão que aprender sozinhos que a revolta moral deve se tornar política para não se dissolver, e realmente não sei como eles irão se virar", escreve Maurizio Maggiani, romancista italiano, em artigo publicado por La Stampa, 29-09-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
O lobo viverá com o cordeiro e o leopardo se deitará com o cabrito? Eu não colocaria a mão no fogo pelo leopardo; para começar, nunca vi leopardos e ouvi falar muito pouco sobre eles. Quanto ao lobo, por outro lado, tenho uma certa expectativa de que o profeta Isaías possa ter tido apenas um sonho estranho. Cheguei a essa ousada conclusão no início da manhã, no momento em que o memorável discurso do presidente Trump na Assembleia Geral das Nações Unidas repercutia na mídia. Nenhuma metáfora, apenas pura e insignificante coincidência temporal.
De fato, quando Alfio – o vizinho insone que, antes mesmo de amanhecer já está trabalhando duro em seu campo – me leva para ver o lobo, eu não estou me infligindo a leitura dos jornais, mas estou no jardim, desfrutando a dádiva de uma esplêndida manhã. Aqui em Borgo Tulipano, essas manhãs de final de setembro são abençoadas pela graça de Deus; claras, arejadas, frescas, promissoras, o sol se liberta das nuvens aurorais e se ergue graciosamente sobre as colinas, grato pelas leis da gravitação universal. Os vinhedos, ainda carregados, começam a espalhar o já saturado cheiro açucarado, e na luz brilhante turbina uma nuvem de mosquitos já meio bêbados. As tâmaras chinesas estão totalmente maduras, e uma simples carícia num galho é suficiente para colher um punhado que adicionará um aroma extra ao café da manhã.
Em meio a toda essa felicidade, Alfio aparece além do portão, com o dedo indicador erguido na ponta do nariz para me silenciar, ordenando-me silenciosamente para largar as tâmaras e o seguir. E ele o mostra para mim, eu vejo o lobo, mesmo sendo meio cego, entre duas fileiras do vinhedo rio abaixo, languidamente estendido, aparentemente tão feliz quanto esta manhã. Entre as patas, segura algo que está lambendo, pode ser um cacho de uva ou o sangue gotejante de um coelho selvagem, não dá para saber, está contra o vento e de frente para o vale, e nós damos uma de batedores Sioux, espreitando; ele não nos percebe, não sente o cheiro ou nos vê, ou consegue nos ouvir, ver e farejar, mas não se importa. Alfio sussurra que é um filhote; eu não entendo muito de lobos, mas ele é entendido; três anos atrás, os lobos chegaram às nossas casas e, numa noite escura, devoraram o velho Ciro de Alfio, seu cabrito preso numa corrente e, desde então, ele se interessa pelo assunto.
Eis o que acontece: somos nós e um lobo, tão próximos que, se ele se dignasse a fazer o seu trabalho, estaria em nossas gargantas em três segundos, e, em vez disso, nada acontece; tudo é capturado pela abençoada imobilidade do alvorecer de uma esplêndida manhã de fim de verão. E nós não fugimos, nem respiramos, não chamamos o guarda-caça, a guarda nacional, o guarda florestal, nada, as cabras de Alfio estão seguras no redil, elas deveriam sentir o cheiro do lobo, sentir sua presença sinistra, mas elas também ficam em silêncio.
Pode ser que talvez estejamos todos tendo o mesmo estranho sonho? E o filhote de lobo lambe uma pata e começa a trotar em direção ao bosque da Cornacchia. Mas sonhos de grupos interespécies não existem, então algo estranho aconteceu, mas não sabemos dizer o quê, nem eu nem Alfio que ainda estamos sentados lá, bancando os Sioux, em silêncio, no silêncio desta manhã abençoada que um atrevido faisão interrompe com sua escalada preguiçosa e desajeitada do ninho no arbusto de sabugueiro. Mas o que poderíamos afinal dizer? Tomamos um café na cozinha e ainda não sabemos o que dizer; e sorrimos, isso sim, e no sorriso dele eu vejo o que espero que ele veja no meu, algo muito infantil, um segredo entre Tom e Huckleberry, tivemos a sorte de viver um instante de assombro.
Repito porque quero ser claro, sem metáforas, as coisas aconteceram exatamente como eu contei, e não é como se muita coisa tivesse acontecido. Mas ainda hoje, algo de desconcertante permanece, algo menor que um pensamento completo, uma perplexidade com uma pitada de alívio. E se a ordem das coisas pudesse mudar, até mesmo se inverter? E se, finalmente, algo inesperado ainda pudesse acontecer? E se o assombro não tivesse sido completamente apagado da face da Terra? E ainda mais ousadamente, e se o que nos parece ser o fim de tudo o que nos deu alegria, esperança, conforto, ternura e coragem — na verdade, o fim do mundo, pelo menos do mundo que queríamos habitar — não for o fim de tudo. E se a natureza do lobo também incluísse o prazer de lamber o cacho de uva, e na natureza do homem, o prazer de ficar apenas olhando? Existe realmente alguém no mundo que possa reivindicar o poder de já ter escrito O Grande Final? Claro, há aqueles que tentam e o proclamam aos quatro ventos, mas será que tudo já está realmente escrito daqui até a eternidade?
Não estou entre aqueles que veem o alvorecer da revolução no que está acontecendo nas consciências da nova geração, que agora se recusa, em todos os lugares, a assistir impotente ao que está acontecendo na Palestina; provavelmente sou cego demais para ver a revolução, mesmo que sempre tenha reconhecido um lobo a uma certa distância. No entanto, algo inesperado está acontecendo, e quem o está fazendo acontecer são os mais jovens, os garotos dos quais nos livramos, empurrando-as para um canto do multifacetado desconforto e fragilidade conveniente, ou para uma propensão peculiar à estupidez antissocial. Vamos cuidá-los, colocá-los na linha e então ver se poderão resultar de alguma utilidade: bônus psicólogo, reforço das estruturas correcionais, reorganização doutrinária do sistema escolar e, então, vamos voltar ao trabalho sem reclamar.
Esses garotos estão fazendo exatamente o que é mais complicado: estão agindo, e o fazem por um motivo mais do que incômodo, eles, sem nosso conhecimento, se dotaram de uma consciência moral, justamente aquilo que, por pelo menos uma geração, tratou-se ativamente de suprimir, pervertendo-a com desprezo num neologismo, "buonismo" ingênua indulgência. Seria uma revolta moral tal atitude deles? Um impulso pré-político? E estariam, portanto, condenados à rendição quando ao cassetete for adicionado o fracasso na escola, destinados à decepção ao primeiro acordo sujo feito sobre a cabeça de um povo? Eu não os conheço, só posso observá-los e escutá-los, mas quando vejo desfilarem juntos os escoteiros da paróquia e os comunistas revolucionários, descubro que eles também existem, jovens agitprop de uma ideia tão antiga que só pode lhes parecer envolta em mistério, quando os vejo marchando aos milhares em Gênova, na velha e cansada Gênova, não posso deixar de me lembrar da minha juventude e de como minha revolta era tão empolgante quanto a deles, e moral.
Deus morreu nos campos de extermínio, nos carros comprados a prestação, nos falsos mitos da pátria e do herói, na hipocrisia daqueles que estão sempre certos e nunca errados... Vocês também se lembram? A política veio depois, e veio porque houve aquele, na geração anterior à minha, que teve a sabedoria de falar e escrever para que eu pudesse entender, a paciência de raciocinar comigo, de me contestar e se deixar contestar. Queremos chamá-los de mestres? Voltando a Gênova, não conheço aqueles garotos, mas sei quem são. São os filhos da geração do G8, os filhos de outra revolta moral, uma revolta global não violenta que se reuniu em Gênova para ser espancada, brutalizada, torturada e derrotada.
Confesso que até ontem eu tinha certeza de que havia sido uma derrota definitiva. Mas, então, inesperadamente, aqui estão eles, os filhos da derrota, criados por mães e pais traumatizados, educados no medo, na prudência, na abstenção, na inanidade — aqui estão eles, sendo e agindo. Eles não tiveram mestres; a geração que deveria ter essa tarefa, esse dever, negou-o e tratou de se autoabsolver; eles terão que aprender sozinhos que a revolta moral deve se tornar política para não se dissolver, e realmente não sei como eles irão se virar. Só espero que cada um deles tenha a sorte de ser visitado, em alguma esplêndida manhã, por um filhote de lobo e, iluminados pelo assombro, compreendam que na natureza do lobo não existe a crueldade, mas a fome, e que na natureza do ser humano não existe o medo, mas a vida, que um lobo pode até gostar de um cacho de uva e um humano pode ficar perto o suficiente para reconhecê-lo. E isso por si só já poderia ser política.
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