30 Setembro 2025
Projeto Língua Viva no Direito, do Governo Federal, prevê tradução para as três línguas mais faladas por povos indígenas no país.
A reportagem é Felipe Prestes, publicada por Sul21, 28-09-2025.
“Ẽg kar mỹ ke vẽ kar ti kar tỹ jagma mũj ke vẽ”, assim a Constituição brasileira se refere aos direitos e garantias fundamentais, desde o último dia 19, quando textos constitucionais ganharam uma versão na língua kaingang, como parte de um projeto do Governo Federal. A entrega ocorreu na Retomada Kógunh Mág, da Floresta Nacional de Canela, na Serra gaúcha, onde vivem dois dos cinco tradutores, Jucemari Mīnká da Silva Corrêa e Leonel Kãka Caetano Chaves.
“Foi muito gratificante a gente ter conseguido fazer com que a Constituição fosse traduzida para a língua kaingang, para que os leitores indígenas comecem a ler a lei maior do Brasil na nossa língua. Nós tivemos todo um cuidado para que fique bem claro o que está dizendo cada artigo e inciso”, conta Jucemari. O desafio de traduzir o juridiquês para a língua kaingang foi grande. “A gente procurou saber o significado no latim, ele esclarece um pouco mais para nós”, relata. Também deu trabalho achar palavras em kaingang que correspondessem a certos termos. “Algumas palavras nós já não tínhamos mais tanto conhecimento e aí nós procuramos saber através dos nossos mais velhos”.
Jucemari e Leonel estão acostumados a desafios. O casal, que atua na área da educação, ela como diretora da escola da Retomada Kógunh Mág, e ele como professor, já participou da fundação de seis escolas em retomadas indígenas pelo Estado. “Quando os indígenas vão retomar um território, as crianças ficam desassistidas. Geralmente, não conseguem vagas em escolas não-indígenas, por preconceito, racismo e tudo mais. Isso tocou muito nosso coração e por isso começamos a sair para atender as demandas das nossas crianças”, conta Jucemari, que é pedagoga e faz mestrado na UFRGS.
A diretora detalha que faz o levantamento de dados das famílias, quantas crianças há no território, a idade de cada uma e depois elabora documentos para serem encaminhadas à Coordenadoria Regional de Educação a qual o município pertence. “A gente vai junto com as lideranças, encaminha esses documentos e depois acompanha o processo, porque tem que passar por vários setores até reconhecerem que tem que ter uma escola naquela comunidade. Enquanto isso não acontece, a gente não recebe ajuda do Governo”. As escolas costumam ser bilíngues e, além do currículo escolar comum às demais escolas, ensinam sobre costumes do povo kaingang. “Conhecendo as leis que a gente tem direito, a gente vai ajudar mais nosso povo, esse sempre foi nosso intuito, ajudar nosso povo, buscar conhecimento, para sempre estar na luta, como ativistas do povo indígena”.
A Retomada Kógunh Mág foi selecionada, com apoio da Associação de Difusão Cultural de Canela (Adicuca), em um edital do programa Língua Viva no Direito, uma parceria entre Advocacia-Geral da União (AGU), Ministério dos Povos Indígenas, Ministério da Justiça e organização da sociedade civil Instituto de Direito Global (IDGlobal). “A motivação iniciou após a identificação de que existem três línguas mais faladas no Brasil, conforme o Censo 2022, e que não tinham textos jurídicos traduzidos”, explica Jéssica Zimmer, gestora do programa na AGU.
Os idiomas são o kaingang, com cerca de 26 mil falantes, o tikuna e o kaiowá, ambos com cerca de 40 mil falantes. Segundo Zimmer, havia apenas uma tradução da Constituição Federal para nheengatu, feita pelo Conselho Nacional de Justiça, em 2022.
No dia 12 de setembro, foi feita a primeira entrega aos tikuna, no Alto Solimões. Em 16 de outubro, haverá uma solenidade em território kaiowá, em Dourados, no Mato Grosso do Sul. Os primeiros textos entregues incluem os direitos fundamentais, direitos sociais e direitos dos povos indígenas. Ao final do trabalho, será traduzida toda a Constituição e também os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que trata de direitos dos povos indígenas.
Segundo Jéssica Zimmer, a primeira versão é preliminar. “Nesse primeiro momento, a comunidade mesmo vai promover a disseminação para que o maior número de indígenas leia o documento e diga se faltou compreensão em algum trecho. Feito isso, consolidaremos as versões finais, no primeiro semestre de 2026”, explica. Depois, as próprias comunidades irão definir em que formato desejam receber os textos jurídicos. “Talvez em uma comunidade vá ser um formato audiovisual, em outra será mais físico, vai depender da necessidade da comunidade”.
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