23 Setembro 2025
"Espera-se que estes aspectos contribuam para uma atitude mais atenta para consigo próprio, para com os outros e para com o mundo que partilhamos. É aqui que começa a salvaguarda"
O artigo é de Hans Zollner e Peter Beer, publicado por America e reproduzido por 7 Margens, 22-09-2025.
Hans Zollner, S.J., é o diretor do Instituto de Antropologia, Estudos Interdisciplinares sobre Dignidade e Cuidados Humanos, membro do Comité de Proteção da Diocese de Roma e consultor do Dicastério para o Clero.
Peter Beer é chefe de investigação e desenvolvimento do Instituto de Antropologia, Estudos Interdisciplinares sobre Dignidade e Cuidados Humanos na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. De 2010 a 2019, foi vigário-geral da Arquidiocese de Munique, na Alemanha.
Eis o artigo.
A efetiva proteção de menores e adultos que se encontrem ao cuidado da Igreja global é um mandato para todos os cristãos. Contudo, o que significa uma estratégia eficaz de salvaguarda em diferentes contextos pode variar bastante. Em vez de se procurarem estratégias de salvaguarda universalmente válidas, as organizações eclesiais precisam de adotar abordagens diversas e específicas para cada contexto, no plural. Só com esta abordagem podemos esperar e confiar numa proteção eficaz que mantenha as crianças e os adultos vulneráveis em segurança.
Porquê a necessidade de abordagens diversas e específicas para cada contexto?
Por um lado, aqueles que desejam proteger a vida humana não podem colocar indiscriminadamente as culturas em pé de igualdade quando a vida humana é posta em perigo numa cultura por razões estruturais e sistémicas e não noutra. A mutilação genital feminina, o casamento forçado de crianças, o abuso sexual de grupos vulneráveis e a negligência de populações inteiras causada em parte por um sistema de castas não são apenas ultrajantes, mas também intoleráveis.
Por outro lado, a compreensão do que pode ser considerado uma ameaça e, inversamente, do que pode ser considerado segurança é, em si mesma, culturalmente influenciada e, portanto, relativa. O que é classificado como abuso ou como transgressão ilegítima depende, em medida não insignificante, de como a sexualidade é definida e conotada numa determinada cultura ou, mais amplamente, num determinado círculo cultural; de como se normalizam as noções de proximidade e distância; de como se definem as relações de género; e de qual a compreensão prevalecente de família, autoridade, individualidade, dignidade e honra. Isto torna assim difícil combater o risco de abuso com medidas de salvaguarda padronizadas de forma geral.
As discussões sobre tais dificuldades culturalmente determinadas podem ser facilmente mal interpretadas. Por esta razão, afirmemos muito claramente que identificar essas dificuldades não tem a ver com relativizar ou trivializar os abusadores, as suas ações ou o seu encobrimento por parte de pessoas em posições de responsabilidade, que se mostram céticas ou mesmo hostis em relação à salvaguarda. Trata-se, antes, de honestidade intelectual em reconhecer um problema que não pode ser evitado simplesmente por princípios de epistemologia e de teoria da comunicação.
É importante recordar os seguintes fatores ao estabelecer normas de salvaguarda:
Primeiro, existem influências culturais inevitáveis sobre todos os envolvidos, das quais ninguém pode escapar. Estas moldam cada indivíduo de forma específica e, assim, impõem igualmente limitações específicas aos seus encontros e à sua interação com o mundo.
Segundo, as condições contextuais que se acrescentam aos padrões culturais e que, em comparação com estes, tendem a ser mais fluídas (como a pobreza econômica, as guerras civis, as epidemias ou as tensões políticas) resultam frequentemente em diferentes abordagens e formas de lidar com o tema da salvaguarda.
Terceiro, as questões interculturais desempenham um papel quase omnipresente na definição de medidas de salvaguarda. Especialmente no nosso tempo, já não é possível assumir que as culturas são autossuficientes ou fechadas. No que diz respeito às medidas de proteção, a distinção entre “nós” e “eles” está a tornar-se cada vez mais obsoleta. Neste contexto, o nosso primeiro passo deve ser o de nos compreendermos melhor como um “nós” constituído por uma multiplicidade de “outros”.
Por fim, é frequente que a introdução de juízos morais e, ainda mais, da desvalorização moral associada de quem é definido como “outro”, não conduza à mudança, mas apenas a uma posição defensiva e de negação.
A base
O intercâmbio intercultural só pode ter êxito se as pessoas se tratarem mutuamente com respeito e com uma abertura fundamental em relação a outras culturas. No contexto da salvaguarda, isto significa que se aplica o seguinte princípio: em todas as culturas, a proteção e a promoção das crianças e dos jovens são uma evidência, e a empatia e a compaixão não são conceitos desconhecidos. O fundamento de tal atitude básica alimenta-se, por sua vez, de uma visão positiva do ser humano.
O princípio da empatia culturalmente sensível aplica-se a todos os que se esforçam por viver a interculturalidade — incluindo a Igreja, que se estende por diferentes continentes e está enraizada numa grande diversidade de culturas. Neste contexto, alguns aspetos especificamente eclesiais revelam-se extremamente úteis. Estes derivam tanto da autoimagem da Igreja como de certas premissas teológicas fundamentais.
Deve ser dada especial ênfase, em primeiro lugar, à compreensão da Igreja como comunidade de fiéis e de diferentes Igrejas locais. Ninguém pode colocar-se acima dos outros; todos têm a mesma dignidade e ninguém é mais ou menos valioso do que outro. Enquanto membros distintos do único corpo de Cristo, constituem aquilo que é a Igreja. Com base nisto, cada comunidade eclesial deve proibir a recusa do diálogo e da troca comunicativa, bem como da ajuda e do apoio mútuos, assim como o paternalismo arrogante. Isto corresponde, em essência, ao termo sinodalidade, entendido como conceito orientador do pensamento teológico e da vida da Igreja nos nossos dias.
Quanto às premissas teológicas relevantes para o intercâmbio intercultural, recordemos aqui a doutrina do logos spermatikos dos Padres da Igreja, refletida nos documentos do Concílio Vaticano II, tais como Nostra Aetate, Ad Gentes e a Lumen Gentium [LG]. Estes documentos reconhecem que entre os não-cristãos se podem encontrar elementos bons e verdadeiros (e, portanto, logicamente, também nas suas culturas), enquanto preparação para o Evangelho (LG 16).
Uma nota complementar encontra-se na Gaudium et Spes [GS], onde se afirma: “Pois, tal como o Evangelho assume uma nova forma nas diversas culturas, assim também a Igreja, pela influência da sua mensagem nas mentalidades e nos costumes dos vários povos, enriquece o património espiritual desses povos, aperfeiçoando-o e purificando-o, de certo modo” (GS 58).
Questões interculturais
A troca intercultural só pode ter êxito se estivermos dispostos a questionar-nos continuamente – e se os nossos interlocutores também estiverem dispostos a fazer o mesmo. No que toca à salvaguarda, isto significa sobretudo trocar pontos de vista sobre três temas-chave.
Em primeiro lugar, os elementos fundamentais que constituem a salvaguarda devem incluir a imagem dos seres humanos nas diferentes fases da vida, a compreensão da segurança e da insegurança, a importância do poder e da autoridade, a natureza das relações de gênero e da sexualidade (especialmente no contexto da salvaguarda relativamente ao abuso sexual) e a percepção e configuração da proximidade e da distância. Quem não se debruçar em profundidade sobre estes elementos e não procurar compreender as suas respetivas características acabará por ter com o seu interlocutor uma discussão puramente teórica sobre salvaguarda.
Ambos podem usar os mesmos termos, mas quererem dizer coisas diferentes. É claro que quem discute os elementos da salvaguarda não está a falar da salvaguarda como um tema isolado e autónomo. Está a falar do tecido cultural como um todo. Uma tal discussão “holística” pode, naturalmente, ser desconfortável e exigente.
Em segundo lugar, as nossas tentativas de responder à questão do que constitui uma salvaguarda adequada falham frequentemente devido ao tema controverso de saber se estas medidas devem ser sistémicas – isto é, se devem ter em conta estruturas, processos, indivíduos e espaços sociais. Isto depende, em grande medida, de predisposições culturais. Se a religião for interpretada numa cultura como um domínio absolutamente separado, intocável e autónomo em relação aos outros, não é de estranhar que uma visão sistémica da salvaguarda seja rejeitada como demasiado funcionalista e inadequada para a religião. Neste caso, a salvaguarda pode ser entendida como uma intrusão sociológica na Igreja e na esfera religiosa.
Dilema e conflito
Em terceiro lugar, quando falamos da complexa questão da proteção contra o abuso sexual, deparamo-nos frequentemente com certos tabus. Em alguns contextos, qualquer discussão sobre salvaguarda aproxima-se da admissão de que a salvaguarda é necessária porque a convivência social não está a funcionar devidamente ou, dito de forma clara, porque está a ocorrer abuso e as pessoas estão a sofrer danos e dor dentro do seu próprio sistema social precisamente por causa desse sistema. Numa cultura em que o princípio básico da bella figura, ou de manter as aparências em público, desempenha um papel central na regulação da interação e da comunicação sociais, falar de salvaguarda pode ser visto como um ataque. Isto não significa que a salvaguarda seja impossível nesse contexto cultural. Contudo, obedece a diferentes regras de comunicação que devem ser tidas em conta.
Os esforços para clarificar estas questões num contexto intercultural só podem ter êxito se estivermos dispostos a participar em processos de aprendizagem sobre nós próprios e sobre os nossos interlocutores. Estes processos devem ser interculturais por natureza; não podem simplesmente basear-se num monólogo em que os membros de outras culturas não participam. No que toca à salvaguarda, isto significa que qualquer pessoa que queira sensibilizar e capacitar profissionais em matéria de proteção deve reunir membros de diferentes culturas antes que seja possível iniciar um trabalho com verdadeiro significado.
Quem quiser adquirir competências em salvaguarda – e fazê-lo de forma sustentável – não deve encerrar-se na bolha da sua própria cultura nem perder-se indiscriminadamente numa cultura estrangeira. O contacto e a troca com pessoas de diferentes culturas ajudam a uma melhor compreensão de si próprio e dos outros, e a um desenvolvimento tanto a nível pessoal como no que diz respeito ao esforço de salvaguarda.
Implementação interdisciplinar
A cooperação entre culturas não é a única condição necessária para possibilitar e fortalecer os esforços de salvaguarda. É igualmente indispensável procurar a cooperação entre diferentes disciplinas.
Pensemos, por exemplo, na opção preferencial pelos marginalizados e pelos pobres. Se esta condição, tão fundamental e indispensável para a autoimagem da Igreja, não surgir como base da salvaguarda ou não for considerada conceptualmente, então não se trata apenas de um problema para a própria possibilidade da salvaguarda, mas ainda mais de uma questão de evangelização no ambiente cultural em causa. A salvaguarda não pode substituir a catequese; no melhor dos casos, pode chamar a atenção para a necessidade de agir.
Outro caso verifica-se quando a opção pelos mais fracos está certamente presente no contexto de uma Igreja local, mas os responsáveis e titulares de cargos a nível local se recusam a envolver-se em qualquer aspeto da salvaguarda. Isso pode acontecer por razões culturais, mas também pode resultar de complacência, insensibilidade ou outras falhas pessoais semelhantes. Neste contexto, a salvaguarda não pode substituir uma gestão de pessoal qualificada, mas pode fornecer sugestões importantes para intervenções adequadas.
Neste ponto, surgem questões importantes, especialmente num sistema hierárquico como a Igreja: como, por quem e até que ponto é exercida a autoridade de decisão? Num ambiente intercultural, isto é menos relevante para a definição de medidas concretas de salvaguarda do que para a necessidade de um compromisso inequívoco em abordar construtivamente as questões de proteção no respetivo contexto – e de uma disponibilidade para as aperfeiçoar e desenvolver ulteriormente em diálogo intercultural.
Se a salvaguarda for considerada essencial para a própria organização (no nosso caso, a Igreja), é necessária uma política culturalmente sensível de proteção que a própria salvaguarda não pode fornecer. Esta deve ser assegurada por aqueles que ocupam cargos de liderança ao mais alto nível, sem eliminar as diferenças culturais. Isto implica abordar questões de motivação, coordenação, identificação e comunicação no que diz respeito à salvaguarda.
Urgência
Tratar da salvaguarda no contexto da interculturalidade é uma tarefa exigente. Respostas demasiado apressadas e simplistas estão fora de questão. No entanto, há algo que não pode ser esquecido: as vítimas de abuso e as pessoas em risco de abuso devido à sua vulnerabilidade não podem esperar até que os problemas na área da interculturalidade sejam resolvidos.
Neste sentido, o rigor científico e a adequação profissional, por um lado, e a dureza da vida real, por outro, encontram-se numa certa contradição. Aqui, o mandamento cristão de ajudar os necessitados, por si só, confere primazia à ação. Quem sofreu feridas e dor no âmbito da responsabilidade da Igreja tem direito a ser ajudado.
Os envolvidos em iniciativas de salvaguarda recebem também uma série de convites importantes: a possibilidade de tomarem consciência dos enredamentos culturais próprios; de se deixarem inspirar pelos enredamentos culturais dos outros; e de alcançarem progressos de compreensão para si e com os outros. Espera-se que estes aspectos contribuam para uma atitude mais atenta para consigo próprio, para com os outros e para com o mundo que partilhamos. É aqui que começa a salvaguarda.

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