20 Setembro 2025
"A recente entrevista de Leão XIV é significativa por reafirmar que todas as pessoas são acolhidas como filhas e filhos de Deus, mas se mostra insuficiente diante dos clamores manifestos na peregrinação jubilar", escrevem Jeferson Batista e Luis Rabello, em artigo enviado diretamente ao Instituto Humanitas Unisinos — IHU.
Jeferson Batista é jornalista, mestre e doutorando em Antropologia Social na Unicamp.
Luis Rabello é geógrafo, especialista em Fé e Política, estudante de Teologia e secretário executivo da Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT+.
Eis o artigo.
A primeira manifestação pública de Leão XIV a respeito da presença de pessoas LGBTQIA+ na Igreja Católica saiu. Neste mês de setembro, o pontífice concedeu uma entrevista à vaticanista Elise Allen. O conteúdo será publicado em livro, mas parte já está disponível no site Crux Now. O papa foi questionado sobre o tema da diversidade sexual, que recebeu bastante atenção durante o pontificado de seu sucessor, Papa Francisco. Sua resposta, marcada pela prudência e pela preocupação em não aprofundar polarizações internas na Igreja, foi dada em um momento decisivo: a primeira peregrinação oficial de pessoas LGBTQIA+ a Roma no Jubileu 2025, realizada nos dias 5 e 6 de setembro.
Ler esse discurso papal à luz da experiência jubilar, com a vigília orante na Chiesa del Gesù, a igreja-mãe da Companhia de Jesus, a celebração eucarística presidida por Dom Francesco Savino e a passagem de mais de 1300 pessoas LGBTQIA+ pela Porta Santa da Basílica de São Pedro, nos permite lançar um olhar crítico do alcance e dos limites da posição de Leão XIV.
Da misericórdia à mediação
O Papa Francisco inaugurou um novo estilo pastoral ao abrir espaço para escuta e inclusão, tornando célebre a frase “Quem sou eu para julgar?” Seus gestos, como encontros com pessoas LGBTQIA+, o apoio às uniões civis e a publicação de Fiducia supplicans, revelaram uma Igreja em processo de abertura.
Leão XIV, por sua vez, assume um tom que reafirma a doutrina tradicional sobre sexualidade e matrimônio, mas insiste que a prioridade é transformar atitudes de exclusão antes de qualquer mudança doutrinal. Além disso, alerta contra uma suposta “obsessão ocidental” com a sexualidade, pedindo que a Igreja universal não se deixe aprisionar por esse foco.
Assim, percebe-se uma evolução de tom: da misericórdia inclusiva de Francisco à mediação cautelosa de Leão XIV, que parece mais preocupado em preservar a unidade eclesial.
A força dos testemunhos na vigília jubilar
Na vigília do dia 5, a Palavra foi rezada a partir das experiências LGBTQIA+. O grito de Bartimeu (Mc 10,46-52) ecoou nas histórias compartilhadas: a de um jovem gay que encontrou no perdão a força de transformar feridas em missão; a de uma mãe que testemunhou o processo de acolhida e renascimento de seu filho trans; a de um casal de mulheres que deu testemunho de fé e amor vividos como dom de Deus, ainda que invisibilizados; além da reflexão de Pe. James Martin, SJ, sobre o ministério aos marginalizados.
Enquanto Leão XIV falava em evitar “ritualizar” bênçãos para casais homoafetivos, os testemunhos evidenciam a urgência de reconhecimento, dignidade e inclusão plena. Ficou patente o contraste entre a prudência institucional e a força profética das vidas concretas.
A homilia de Dom Francesco Savino: devolver dignidade
Na missa jubilar do dia 6, Dom Francesco Savino ofereceu uma chave de leitura essencial: “A realidade é superior à ideia. Quando preferimos a realidade aos preconceitos, Deus pode entrar. Quando enfrentamos a realidade com ideias rígidas, essas ideias matam.” Sua homilia apontou que a Igreja não pode se aprisionar em “verdades mortas”, mas deve se deixar tocar pela verdade viva que faz viver.
O momento mais marcante foi quando o bispo afirmou que a missão da Igreja é “devolver dignidade às pessoas”, palavras que provocaram intensa comoção e aplausos espontâneos dos fiéis presentes. Ali se percebeu que o clamor por reconhecimento não é apenas uma demanda política ou cultural, mas um grito espiritual por vida plena no seguimento de Cristo.
Entre prudência e profecia
A recente entrevista de Leão XIV é significativa por reafirmar que todas as pessoas são acolhidas como filhas e filhos de Deus, mas se mostra insuficiente diante dos clamores manifestos na peregrinação jubilar.
O risco de paralisar mudanças necessárias em nome da unidade não pode obscurecer a urgência pastoral de oferecer respostas concretas de acolhimento. O Jubileu revelou que não se trata de uma questão restrita a um “Ocidente obcecado pela sexualidade”, mas de vidas reais em todas as culturas, que expressam fé e fidelidade ao Evangelho mesmo em meio a exclusões.
A entrevista de Leão XIV marca um ponto de partida de seu pontificado: acolher sem excluir, mas sem alterar a doutrina. O Jubileu 2025, no entanto, inscreveu na história da Igreja um sinal profético: a presença pública e orante das pessoas LGBTQIA+ como parte constitutiva do povo de Deus. Dessa forma, vale ressaltar que as comunidades católicas formadas por pessoas LGBTQIA+ estão presentes em diferentes partes do mundo, testemunhando com práticas pastorais e teológicas o amor incondicional de Deus. Ao mesmo tempo, essas pessoas clamam para que a Igreja deixe de as considerar como cristãs de segunda categoria, o que confronta diretamente a ideia de que mudanças doutrinárias não deverão ocorrer. Com isso, vale perguntar: é possível criar uma cultura de respeito e acolhimento partindo da ideia que a experiência sexual fora de uma norma não condiz com a doutrina?
O desafio agora é ir além da preocupação com a polarização e deixar-se interpelar pela realidade das vidas concretas. Como lembrou Dom Savino, a Igreja é chamada a escolher entre uma verdade viva que devolve dignidade e faz viver e uma verdade morta que exclui e fere.
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