A figura indígena e mítica está na raiz de um imaginário e da história do Rio Grande do Sul, muito embora jamais tenha sido uma unanimidade entres as elites intelectuais que escreveram sobre o território mais ao sul do Brasil
Seja na magnânima obra O tempo e o vento, de Erico Verissimo, seja em cartas e documentos de cronistas que viveram o período das missões ou até mesmos nas lendas que compõem o imaginário gaúcho, Sepé Tiaraju sobrevive. É um personagem incontornável se quisermos ter uma mínima ideia de como o Rio Grande do Sul foi constituído ao longo de sua história. “Paradoxalmente, Sepé é um ser registrado na história por inúmeros documentos – cartas, diários da época, quer de autoria e perspectiva lusa, espanhola ou jesuítica – de forma tangencial, mas que adquire centralidade a partir da literatura oral (a lenda) ou escrita”, explica a professora e pesquisadora Eliana Pritsch, em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. “A atuação de Sepé pode ser delimitada, no que se refere à Guerra Guaranítica, a quatro momentos básicos: o confronto com a expedição de demarcadores na região de Santa Tecla, em fevereiro de 1753; os ataques ao Forte de Rio Pardo e seus desdobramentos, o primeiro em fevereiro de 1754 e o segundo em abril do mesmo ano; a embaixada entre índios e portugueses e a trégua assinada entre eles, em novembro de 1754; e a escaramuça do dia 7 de fevereiro de 1756” quando foi assassinado, complementa.
“Creio que história e lenda têm como princípio comum a narratividade. E essas narrativas se somam, se complementam, se contrapõem na construção da imagem de Sepé, fazendo com que justamente sejam construções multifacetadas. De certa forma é essa variabilidade que pode constituir um paralelo com a história – também sujeita a versões – do Rio Grande do Sul. A lenda pode constituir-se em elemento histórico? As narrativas orais também? Ou somente os dados documentais podem assegurar a almejada verdade histórica? Que visão de história estaria aí subjacente? Parece-me oportuno lembrar os pressupostos de Le Goff, de documento e monumento, de memória construída”, provoca a entrevistada.
Afora as questões mais históricas, o imaginário ligado ao ideal de gaúcho se conecta a este personagem pelos atributos da bravura, da defesa da terra, da habilidade com cavalos, de tal modo que seria assumido pelo MTG ainda na década de 1940. É na literatura de Alcy Cheuiche que ele vai ser construído como um defensor da terra, cuja imagem passa a ser associada às romarias da terra e, também, ao MST. “O encontro com os portugueses, o episódio de Santa Tecla, o embate pela manutenção da terra e das missões marcam a trajetória de Sepé para além do famoso brado de que ‘Esta terra tem dono!’ É nesse sentido que esse Sepé de Cheuiche interessa à Igreja – às Comunidades Eclesiais de Base – e ao MST, pois esse herói problematiza a questão agrária no Estado e surge como o herói que lutou pela terra, lutou contra as injustiças impostas pelos representantes do poder colonial”, descreve Pritsch.
Eliana Pritsch (Foto: Portal Mescla/Unisinos)
Eliana Inge Pritsch possui graduação em Licenciatura em Letras (Português-Latim) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, mestrado em Letras, área de Literatura Brasileira, pela UFRGS e doutorado em Letras, área de Literatura Brasileira, Literatura Portuguesa e Literaturas Luso-Africanas, também pela UFRGS. Atuou como professora adjunta na Unisinos por mais de trinta anos nos Cursos de Letras e Realização Audiovisual. Foi professora Faculdade Porto-Alegrense – FAPA de 1993 a 2017.
IHU – Pode nos falar o que foi a Guerra Guaranítica e por que ela é um evento central na constituição histórica do Rio Grande do Sul e fundamental para compreendermos quem foi Sepé Tiaraju?
Eliana Pritsch – A Guerra Guaranítica (1752-1756), por assim dizer, é resultado da aplicação do Tratado de Madri, firmado entre as coroas portuguesa e espanhola em 1750, a respeito de questões territoriais, incluindo a demarcação e permuta de terras na região da América mais meridional, territórios hoje pertencentes a Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul. Numa breve cronologia dos tratados regulatórios, o famoso Tratado de Tordesilhas (1494) demarcava como terras portuguesas aquelas localizadas até um meridiano imaginário, partindo de Cabo Verde em direção ao ocidente, de 370 léguas.
A importância da Bacia do Prata para o comércio definiu a fundação da cidadela de Colônia de Sacramento em 1680 pelos portugueses. É ela na Bacia do Prata, em frente a Buenos Aires, motivo de discussão e de idas e vindas entre portugueses e espanhóis sobre o domínio da localidade. Pelo Tratado de Utrecht (1715), a Espanha devolvia para Portugal a cidade. Pelo Tratado de Madri (1750), a Espanha trocava os Sete Povos das Missões pela Colônia do Sacramento. Logo a seguir, o Tratado Anulatório del Pardo (1761) anula o Tratado de Madri, mas Colônia não voltaria mais a ser portuguesa e a região dos Sete Povos acaba por se consolidar, só no início do século XIX, como pertencente a Portugal.
Em resumo, são muitas idas e vindas e a importância da Guerra Guaranítica se dá resumidamente por três pontos. Em primeiro lugar, sendo consequência direta do Tratado de Madri e da recusa dos índios guaranis missioneiros em migrarem para o outro lado do Rio Uruguai, a atual Argentina, é uma primeira disputa territorial que não se dá entre Portugal e Espanha, mas sim com os exércitos das duas coroas aliados contra os Sete Povos das Missões, compostos por indígenas guaranis (ainda que atualmente também se discuta se havia apenas guaranis nas Missões) e poucos padres jesuítas. A segunda questão importante são os antecedentes; o tratamento desigual dados pelos Art. XV e XVI do tratado. Os portugueses estabelecidos em Colônia do Sacramento, por exemplo, poderiam permanecer ou ter suas propriedades e bens indenizados, por meio da venda. Aos índios missioneiros, o Art. XVI do Tratado de Madri previa a simples migração, levando os guaranis (e os jesuítas) apenas seus bens móveis e semoventes para outras terras pertencentes à Espanha e devendo entregar as Povoações à Coroa de Portugal, com todas as suas casas, igrejas e edifícios e a propriedade e posse do terreno. Esses dois primeiros elementos – a operação militar conjunta de Portugal e Espanha contra os povos missioneiros e o tratamento desigual das respectivas comunidades – colocam em destaque a questão identitária: quem são esses povos missioneiros? O terceiro aspecto pode ser resumido no aspecto mais bélico, ou na operacionalização do Tratado de Madri: as incursões para demarcação dos limites territoriais, as escaramuças e o massacre. Numa cronologia sucinta: o Tratado de Madri, em 13 de janeiro de 1750; o Tratado Complementar, em 1751; a comitiva para demarcação das terras, em 1752; o episódio do Forte de Santa Tecla, em Bagé, e a proclamação do “Esta terra tem dono” em 1753; as tratativas entre espanhóis, portugueses, jesuítas; as reuniões-comitivas entre lideranças indígenas e o exército português; as escaramuças e os ataques ao Forte de Rio Pardo, em 1754; o ataque programado para 1756, a morte de Sepé Tiaraju (em 7 de fevereiro de 1756), a Batalha de Caiboaté (em 10/02/1756), eufemismo para a chacina ocorrida com o aval das coroas ibéricas, da qual resultaram mortos mais de 1500 índios em apenas 1h10min; a chegada do exército luso à região das Missões, e assim por diante.
Após a Batalha de Caiboaté, os índios sobreviventes dispersaram-se nas matas. A estrutura das reduções jesuíticas estava destruída. Além disso, a Companhia de Jesus continuou a ser alvo da perseguição das coroas ibéricas que determinaram a expulsão dos jesuítas de seus países e de suas colônias. Assim, em 1759, os jesuítas são expulsos do Brasil. Discutir a Guerra Guaranítica (1752-1756) é também reavaliar o papel e a importância das Missões jesuíticas no período colonial. A guerra é um dos marcos finais da grande influência jesuítica na formação econômica, cultural e religiosa do Estado. No entanto, o marco temporal das Missões se estende para um tempo anterior e posterior: todo o período anterior ao Tratado de Madri – de 1609, quando da chegada dos primeiros jesuítas à região – até a real definição dos limites territoriais brasileiros, consolidados efetivamente em 1801 a 1810 e consagrados definitivamente no Tratado de 1851.
A Guerra Guaranítica torna-se um tema central na nossa história não só por trazer a figura de Sepé Tiaraju – que será central só bem posteriormente – mas por evidenciar como, no processo de colonização, os povos originários estão à margem de todas as tratativas. A Guerra Guaranítica acaba por revelar o nome dos guaranis na resistência, mas os interesses são efetivamente ibéricos.
IHU – Aprofundando a questão anterior, qual a importância de Sepé Tiaraju na história do RS no século XVIII e como sua imagem foi se transformando ao longo do tempo?
Eliana Pritsch – A importância direta é pequena no contexto histórico, mas a relevância vai sendo construída a partir de várias associações à sua figura: o guerreiro, a valentia, o índio, o gaúcho (no sentido do cavaleiro). Paradoxalmente, Sepé é um ser registrado na história por inúmeros documentos – cartas, diários da época, quer de autoria e perspectiva lusa, espanhola ou jesuítica – de forma tangencial, mas que adquire centralidade a partir da literatura oral (a lenda) ou escrita. A atuação de Sepé pode ser delimitada, no que se refere à Guerra Guaranítica, a quatro momentos básicos: o confronto com a expedição de demarcadores na região de Santa Tecla, em fevereiro de 1753; os ataques ao Forte de Rio Pardo e seus desdobramentos, o primeiro em fevereiro de 1754 e o segundo em abril do mesmo ano; a embaixada entre índios e portugueses e a trégua assinada entre eles, em novembro de 1754; e a escaramuça do dia 7 de fevereiro de 1756. No que diz respeito aos dois ataques ao Forte de Rio Pardo, Sepé só é mencionado expressamente no segundo desses ataques, em abril de 1754, havendo muitas controvérsias sobre sua atuação no episódio, principalmente, no que diz respeito ao modo como se deu sua prisão e sua fuga e o aprisionamento de 53 guaranis, levados de navio a Rio Grande e mortos nesse deslocamento.
IHU – Como os textos setecentistas se referem a Sepé Tiaraju? Há alguma centralidade nele? Como esse material vai impactar na produção textual futura sobre esse personagem indígena?
Eliana Pritsch – Podemos dividir os textos setecentistas em dois grupos: o literário e o não literário, divisão também controversa. Nos dois grupos, entretanto, não há nenhuma centralidade em Sepé Tiaraju; servem os textos, principalmente os diários e as cartas tratadas como documentos, para atestar a sua efetiva existência. As versões dos diários apontam obviamente contradições, principalmente quanto à atuação de determinadas pessoas, incluindo os jesuítas.
Muitos dos episódios não aparecem ligados nominalmente a Sepé, mas esse material pode, sim, ter impactado na construção futura de Sepé como personagem, associando a ele atributos como a valentia, ao confronto em Santa Tecla com a obstrução que os portugueses seguissem adiante para a tarefa de demarcação territorial. As referências que emergem desses documentos podem ser divididas em quatro conjuntos: o episódio de Santa Tecla, as reuniões entre lideranças indígenas e o exército português, os dois episódios no Forte de Rio Pardo e a morte de Sepé. Por exemplo, a fuga do Rio Pardo aparece de forma controversa sobre qual a participação de Sepé, conforme sejam os textos ligados a uma vertente lusa, espanhola ou jesuítica. Alguns tratam como um ato de bravura, de ludibriar os soldados portugueses fugindo a cavalo, outros tratam como de covardia, por ter abandonado os outros prisioneiros lá. O único texto literário setecentista é O Uraguai, de Basílio da Gama. Nesse poema, tampouco Sepé ocupa a centralidade, focada nos feitos dos portugueses, em especial de Gomes Freire de Andrade, tratado como “nosso herói”. No entanto, também aí já se percebem traços da construção da figura de Sepé como um herói.
Por exemplo, o relato do Pe. Juan Escandón S.J., História do Rio Grande do Sul, publicado em 1760, atesta que, no encontro entre os índios e o governador Gomes Freire de Andrade, às margens do Rio Jacuí, coube ao Corregedor da Missão de Conceição (Nicolau Nhenguiru) o famoso afrontamento com as seguintes palavras:
“Beijar eu a mão de teu General?! Por que haveria de fazê-lo? Acaso estou eu em suas terras e não ele nas minhas? (...) Dize-lhe, pois, que não pretendo descer do meu cavalo, nem ainda me rebaixar ao beijo de sua mão!”
“Dize a esse índio que eu digo que ele é um bárbaro!”
“Pois dize-lhe que eu digo que mais bárbaro é ele próprio!”
(ESCANDÓN, 1983, p. 266-267)
Esse episódio, por exemplo, será atribuído, invariavelmente, a Sepé, ainda que este nem estivesse nominalmente presente naquela oportunidade. Tanto Erico Veríssimo, Manoelito de Ornellas, Alcy Cheuiche subvertem essa questão, trazendo para seus textos uma ação que, se de fato ocorreu, foi protagonizada por outra liderança.
Se a documentação histórica não atribui muita importância a atuação individual de Sepé, não personificando na sua pessoa as ações da guerra guaranítica, pouco a pouco, lenda e a literatura começam a apontar para Sepé uma convergência de fatores, configurando-o como o único herói de destaque.
IHU – Poderia falar sobre O Uraguai (1769), de Basílio da Gama, e como Sepé é retratado nele?
Eliana Pritsch – O poema de Basílio da Gama, escrito quase que no calor da hora, em 1769, é composto de 5 cantos, nos quais Sepé figura no Canto II e parcialmente no Canto III, como visão post mortem ao índio Cacambo. Composto para celebrar os feitos portugueses, o poema, no entanto, traz a ambiguidade ao também retratar com heroicidade os índios.
No que diz respeito aos eventos históricos, certamente o poeta mineiro teve acesso a esses textos documentais, principalmente à Relação abreviada, atribuída ao Marquês de Pombal, porque alguns elementos são daí decorrentes. As duas supostas cartas encontradas junto ao corpo de Sepé evidenciam os mesmos argumentos utilizados nos versos do poema, na argumentação de Cacambo, o outro indígena presente nesse encontro com Gomes Freire de Andrade.
Se Sepé não é o herói central do poema, sua atuação está marcada por três episódios: a embaixada dos índios junto ao comandante português, a batalha e morte de Sepé, e a aparição do espectro de Sepé a Cacambo. Em todos os três segmentos, pode-se perceber a construção literária e heroica de Sepé, mesmo na comparação com o outro indígena. Cacambo tenta o diálogo, tenta persuadir Gomes Freire de que o Tratado de Madri não seria a melhor opção para Portugal, porque abriria mão da Colônia de Sacramento. Os presentes dados a Cacambo por Andrade – espada de prata e ouro, um chapéu bordado, panos, capas – demonstram uma ideia de cooptação civilizatória, ao passo que os presentes dados a Sepé são a restituição de sua aljava e suas flechas. Ao longo dos versos, Basílio da Gama já destaca os valores épicos desse herói, porque é valente, tal como o lendário Aquiles. Diz Sepé:
Mesmo sua morte não é aniquilamento, mas está revestida da grandeza épica, a morte é que confere contornos de heroicidade a Sepé. Além disso, a morte de Sepé adquire contornos trágicos, da fatalidade de seu cavalo tropeçar, das flechas, apesar de sua destreza, também não terem atingido o alvo. Em O Uraguai, a morte de Sepé se dá somente pelo tiro, desferido por Viana, governador de Montevidéu. Ainda não se materializara, figurativamente, a associação de portugueses e espanhóis: um soldado português teria disparado uma lança e o governador teria dado o tiro de misericórdia: português e espanhol juntos seriam os responsáveis por sua morte.
Todavia, outro elemento importante na construção imagética de Sepé não está presente: o lunar na testa. Mesmo assim, há uma atuação post mortem, quando Sepé, já morto, aparece em sonho a Cacambo e convoca o companheiro a ter uma atitude: [...] ah tu, que podes! /E tu, que podes, põe a mão nos peitos/ À fortuna de Europa: agora é tempo [...] O mérito de Basílio da Gama está em ter intuído e antecipado uma ideia que viria a se solidificar somente no século XX: Sepé como herói a defender a sua terra.
IHU – Como Sepé é apresentado na obra de Simões Lopes Neto, especialmente em O lunar do Sepé, publicado no livro Lendas do sul (1913)?
Eliana Pritsch – Dada a construção progressiva da heroicidade de Sepé – seus feitos, sua morte, sua coragem, liderança –, procurarei chamar a atenção para questões mais específicas. A publicação de Simões Lopes Neto tem inúmeros méritos. Em primeiro lugar, reinsere o tema de Sepé, uma vez que nenhum registro escrito (aparente) foi localizado entre O Uraguai, de 1769, e O lunar, em 1913.
A lenda surge com o fortalecimento do mito do gaúcho, uma vez que ganham força no poema valores de honra, força, valentia, luta, além do manejo com o cavalo, animal central para a configuração do gaúcho. No entanto, a observação do autor pelotense de que se trata de um relato oral aponta para uma vertente importante na figuração de Sepé, configurando-o como uma lenda popular.
Os elementos novos acrescentados ao Sepé é, além dos valores já referidos, o sinal físico: o lunar, um sinal físico na testa que já o destacaria: E o lunar da sua testa/ Tomou no céu posição, sinal identificado com a constelação do Cruzeiro do Sul. O elemento místico ganha força inclusive com a ideia de santificação de Sepé.
A literalização do popular, a lenda do lunar, a santificação de Sepé são elementos importantes, ainda que as lendas a respeito de Sepé tenham outras configurações, como a formação de uma fonte de água a partir das lágrimas do herói. Obviamente, as lendas que ligam diretamente Sepé ao cristianismo ganham contraponto importante nas vertentes orais dos guarani.
IHU – Na década de 1950 o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul – IHGRS foi contrário à homenagem a Sepé Tiaraju. Quais foram as motivações e justificativas para esta postura?
Eliana Pritsch – Estamos comemorando 70 anos dessa polêmica específica, 1955-2025. Por ocasião do bicentenário da morte de Sepé Tiaraju, um major do Exército (João Carlos Nobre da Veiga) sugeriu a construção de um monumento em homenagem a esse líder guarani, em São Gabriel, no local de sua morte. O pedido salientava a necessidade de se fazer uma homenagem ao herói desaparecido em holocausto à pátria; por meio da figura de Sepé, louvar-se-ia o passado de lutas, glórias e sacrifícios de todo o povo gaúcho por meio da construção de uma estátua. A proposta foi enviada ao então governador (Ildo Meneghetti) que solicitou que a Comissão de História do IHGRS (Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul) se manifestasse, o que ela fez, em reunião do dia 18 de outubro de 1955, emitindo um parecer contrário, refutando que o sentido de pátria representado por Sepé não era da pátria portuguesa, não podendo, portanto, ser associado ao patriotismo do gaúcho brasileiro.
O parecer contrário está basicamente vinculado às polêmicas sobre a historiografia gaúcha. As correntes lusitanista e platinista da nossa história há muito se alternavam num movimento pendular. Vale retomar o importante trabalho da professora Ieda Gutfreind (A historiografia rio-grandense). Muitos dos membros do IHGRS só aceitavam a visão histórica que rechaça a influência espanhola, o papel dos jesuítas, as Missões em si. Nesse sentido, Sepé é só uma ponta, quase um bode expiatório. Há dois pareceres anteriores que devem ser arrolados. O primeiro deles, de 1948, sobre a possibilidade de se atribuir o nome do padre Antônio Sepp S.J. (1655-1733), fundador da missão de São João Batista, a um grupo escolar. O relator (Othelo Rosa) refuta essa nomeação porque seria de um jesuíta ligado às Missões espanholas. No segundo parecer, de 1954, Moysés Vellinho refuta o título da obra – Os três primeiros mártires rio-grandenses – do padre Luís Gonzaga Jaeger S.J., também membro do IHGRS. Na compreensão da Comissão de História do IHGRS, o título seria inverossímil, pois não se pode usar o nome de Rio Grande para fatos anteriores a 1801. Assim, examinando esses pareceres, é possível compreender as motivações de parte dos membros do IHGRS e a justificativa que, grosso modo, pode ser reduzida com a não aceitação das Missões como pertencentes à história do RS, quer porque vinculadas à coroa espanhola, quer porque esse grande espaço territorial e cultural não pertencia ao Rio Grande, ao Brasil.
O surpreendente é que o debate sai das trincheiras do IHGRS e alcança a imprensa, que desde dezembro de 1955 até 1957, publicou semanal e alternadamente artigos vinculados a esses dois grupos, nomeados informalmente por mim de a favor e contra a homenagem. No grupo a favor à homenagem, estavam nomes como os de Pe. Luiz Gonzaga Jaeger, Mansueto Bernardi, Walter Spalding, entre outros; contrários eram Moysés Vellinho, Augusto Meyer, Carlos Reverbel, também entre outros.
A homenagem a Sepé é, portanto, só uma parte do debate, que ainda inclui a ideia de história documental, da “verdade” histórica, sem levar em conta a lenda e a tradição popular.
[Essa polêmica nos jornais foi colecionada pelo Pe. Luiz Gonzaga Jaeger, com recortes, principalmente, dos jornais Correio do Povo e Jornal do Dia, acervo a que tive acesso por intermédio do pe. Ignacio Schmitz, e que estou finalmente revisando a digitação para publicação.]
IHU – Como história e folclore se imbricam na construção da imagem de Sepé?
Eliana Pritsch – Creio que história e lenda têm como princípio comum a narratividade. E essas narrativas se somam, se complementam, se contrapõem na construção da imagem de Sepé, fazendo com que justamente sejam construções multifacetadas. De certa forma é essa variabilidade que pode constituir um paralelo com a história – também sujeita a versões – do Rio Grande do Sul. A lenda pode constituir-se em elemento histórico? As narrativas orais também? Ou somente os dados documentais podem assegurar a almejada verdade histórica? Que visão de história estaria aí subjacente? Parece-me oportuno lembrar os pressupostos de Le Goff, de documento e monumento, de memória construída. Nesse sentido, a lenda, entendida aqui como manifestação de folclore, aponta para uma história oral, para narrativas orais, ampliando o fraco detalhamento da documentação histórica. De qualquer maneira, é possível perceber que as duas vertentes somam-se na construção das diferentes facetas de Sepé.
IHU – Como a consagração mítica de Sepé passa pela literatura, mas em que medida não se reduz a ela?
Eliana Pritsch – A lenda em torno de Sepé Tiaraju certamente deve ter começada nas narrativas orais, atribuindo a ele a intervenção post mortem para de alguma forma incentivar a resistência guarani. Se em O Uraguai o evento é descrito como uma exortação em sonho do índio Cacambo, é em O Lunar de Sepé, de Simões Lopes Neto, que ele é nomeado santo. A partir daí, as várias narrativas reforçam essa questão: São Sepé. Há inclusive, no campo da lenda, outros elementos simbólicos além de seu sinal – o lunar na testa – que são acrescentados às diversas variantes: o galope no céu em um cavalo, a formação de um rio/riacho a partir das suas lágrimas. De qualquer forma, o “santo” popular não seria responsável por ser um santo milagreiro, mas por ser um mártir, um santo basicamente empenhado em exortar e auxiliar seu povo na luta pela sua terra, sua história.
Inclusive essa canonização popular foi formalmente pleiteada junto ao Vaticano. Na primeira oportunidade, em torno de 2005, sob o comando do já falecido frei Antônio Cecchin, ligando fortemente Sepé à Teologia da Libertação e ao gauchismo. Na continuação, em 2017, com o bispo de Bagé. Em entrevista, em 2021, a Viviane Werner, frei Luiz Carlos Susin da PUCRS explica que esse pleito se assenta em três pontos:
1- Na passagem dos eventos historicamente ocorridos à memória que é sempre interpretação e, sobretudo em eventos significativos, a sua “mitificação”, há uma resistente memória popular e literária em que Sepé Tiaraju emerge como “São Sepé”, não apenas um herói político, mas como alguém que morreu de forma violenta para defender o direito de seu povo, sob o signo e a invocação da sua fé cristã. Essa memória é encontrada de múltiplas formas, e não é o caso agora trazê-la;
2- Há um ressurgimento interpretativo desta memória nos movimentos populares religiosos ligados à terra e à identidade cultural. Por exemplo, as Romarias da Terra, começadas em São Gabriel-RS, que se espalharam por todo o Brasil; o MST, com assentamentos portando o nome de São Sepé.
3- A consulta e assinatura de centenas de pessoas de diferentes segmentos sociais, intelectuais, políticos, religiosos, etc.
O processo ainda está em andamento, mas, em 2017 mesmo, Sepé já recebeu pelo Vaticano o título de “servo de Deus”.
Afora o campo religioso, por ocasião dos 250 anos da Guerra Guaranítica, foram sancionadas leis comemorativas. A Lei Estadual 12366, de 3/11/2005, que institui o dia 07 de fevereiro como data oficial e Sepé Tiaraju como herói guarani missioneiro rio-grandense e a Lei Federal 5516, de 2/12/2005, que inscreve o nome de Sepé no Livro dos Heróis da Pátria.
Creio que esses dois pontos, além da quantidade crescente de alusões a Sepé em músicas, poemas, textos, em nomeação de ruas, bairros, escolas, CTGs, demonstram essa vitalidade de Sepé para além da literatura (formalmente escrita).
IHU – Como Tiaraju (1945), de Manoelito de Ornellas, apresenta esse personagem tão marcante da literatura do RS e como este livro impacta a construção de um “ideal de gaúcho” a partir da fundação do Movimento Tradicionalista Gaúcho – MTG?
Eliana Pritsch – A importância de Tiaraju de Manoelito de Ornellas está em inaugurar uma outra forma narrativa – o romance – para Sepé, uma vez que os dois outros textos literários anteriores foram compostos em verso. Na criação fictícia de Ornellas, novos elementos são acrescentados: a infância, a adolescência, a iniciação sexual, as relações afetivas. Pode-se criticar essa ficcionalização de elementos que, por óbvio, não apareciam nos textos setecentistas, mas também pode-se perceber a intenção da construção de uma vida da personagem para além da guerra.
A associação de Sepé com o ideal de gaúcho já estava dada por elementos como a bravura, a defesa da terra, a habilidade com cavalos, etc. Era possível resgatá-lo para reforçar essa idealização do gaúcho. Mas Sepé não é prontamente assumido pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho – MTG.
Fundado em 1947, o MTG surge como uma solução nostálgica, para os filhos dos estancieiros recordarem as lidas do campo na cidade, a hierarquia campeira e para os não-proprietários servia como projeção idealizada do passado. Sepé ainda era visto como um elemento estranho à história do Rio Grande. O tradicionalismo assume um comportamento duplo; por um lado, com a criação de inúmeros CTGs e outros órgãos com o nome de Sepé, obviamente amparado nos costumes campeiros, na defesa da terra gaúcha; por outro lado, por uma adesão à corrente lusitanista, que excluía “vida” antes da chegada dos portugueses ao Rio Grande, e à corrente militarista – muitas lideranças do MTG e de CTGs eram militares –, que centraliza a história do RS nas campanhas militares. É interessante resgatar as manifestações do CTG 35 à ocasião da homenagem a Sepé em 1956, tangenciando o assunto ao reafirmar que é preciso primeiramente homenagear aqueles fundadores do Continente de São Pedro, como Rafael Pinto Bandeira, etc.
A associação do gauchismo a Sepé não foi, portanto, imediata, dá-se paulatinamente e mesmo o Tiaraju de Ornellas acaba um pouco ridicularizado por parte de uma elite cultural. No entanto, é um sentimento crescente de Sepé ser “herói gaúcho e missioneiro”. E Manuelito empresta seu renome ao tradicionalismo, participando diretamente, por exemplo, do 1° Congresso Tradicionalista do Rio Grande do Sul, em 1954, em Santa Maria. [A cada ano, o MTG organizava, em cidades diferentes, esses congressos.]
IHU – O tempo e o evento, de Erico Verissimo, é uma das grandes obras da literatura gaúcha (talvez a maior). Como Sepé aparece na mais remota origem da Família Terra?
Eliana Pritsch – Antes da possível ligação de Sepé com a narrativa em si, é preciso considerar a importância de Erico começar a história do Rio Grande do Sul nas Missões, num tempo anterior ao próprio Tratado de Madri. Assim pôde recuperar elementos da vida nas Missões, confrontando, no campo da literatura, a corrente historiográfica lusitanista, para a qual nossa história não é anterior à chegada dos portugueses. Tendo em vista essas discussões, não é de menor importância a escolha de Erico Verissimo, uma vez que muitos criticaram o autor por retroceder à narrativa ao tempo e espaço missioneiros.
O fundador do clã dos Terra-Cambará é Pedro Missioneiro, personagem do episódio de “A Fonte” da primeira parte (O Continente) da trilogia O tempo e o vento de Erico Verissimo. Na ficção Pedro nasce nas Missões, filho de uma índia violentada por um português e que chega ainda grávida ao local. Na Missão de São Miguel, Pedro cresce e imaginava-se um guerreiro como o corregedor, o alferes real Tiaraju, que era o homem que ele mais admirava na redução.
Sepé é detalhadamente descrito:
Sabia ler e escrever com fluência, tinha habilidade para mecânica, e conhecia a doutrina cristã [...] Ninguém melhor que ele domava um potro ou manejava o laço; poucos podiam ombrear com ele no conhecimento e trato da terra; e aquela guerra mostrava que ninguém o suplantava como chefe militar e guerrilheiro. [...] Resolvia problemas judiciários com um equilíbrio e um senso de justiça que fariam inveja aos magistrados das cortes europeias.
A construção narrativa de Sepé também recupera elementos de outros textos, evidenciando acontecimentos como o encontro de Sepé com Gomes Freire de Andrade. A importância de Sepé no capítulo “A Fonte” não reside na sua caracterização intrínseca, mas nas relações que a personagem pode estabelecer com outras questões importantes, tanto nas relações internas dentro da obra em si – a vinculação de Sepé com o pai de Pedro, com São Miguel, com o próprio Pedro – como nas relações que o Sepé de Verissimo estabelece, num panorama externo, com os “outros” Sepés evidenciados pelas obras históricas e literárias.
Entretanto o protagonista do capítulo é Pedro, Tiaraju é mencionado apenas em poucas oportunidades, enquanto Pedro assume destaque no decorrer de outros capítulos de O Continente. Mas os elementos da cultura missioneira são levados adiante em O tempo e o vento. Pedro reforça esse “movimento de canonização” do guerreiro na ficção em questão. Dessa forma, Sepé é como um segundo protagonista, visto que sua importância não é maior que a de Pedro.
Dois pontos ainda merecem destaque: a santificação de Sepé e o surgimento da lenda, das narrativas populares. Quanto ao primeiro, Pedro associa a cicatriz na testa de Sepé a um lunar, considerando-o um sinal divino. As insinuações de Pedro sobre a santidade de Sepé são frequentes no texto. O guerreiro parece ser quase uma obsessão para Pedro, que divide suas impressões com todos: “José Tiaraju é o Arcanjo São Miguel” (Verissimo, 2002, p. 56). No episódio da morte de Sepé, amplamente narrado pela visão de Pedro, o menino informa ao padre que “Deus botou também na testa da noite um lunar como o de São Sepé”, surpreendendo o padre: São Sepé? – repetiu o padre, meio estonteado” (Verissimo, 2002, p. 81-82).
O lado místico, a canonização popular é justificada porque “Os índios tinham uma imaginação rica, eram supersticiosos, e estavam sempre prontos a invocar o milagre para explicar as coisas que não compreendiam” (Verissimo, 2002, p. 55). É também Erico Verissimo que intui como essa lenda deve ter circulado, além de associar, Ricardo Amaral, fundador da fictícia cidade de Santa Fé a Sepé, na medida em que a personagem se vangloria de ter participado da Batalha de Caiboaté (10/02/1756) e que “Contava-se até que fora Ricardo Amaral quem numa escaramuça derrubara com um pontaço de lança o famoso alferes real Sepé Tiaraju, a respeito do qual corriam tantas lendas”. (Verissimo, p. 165). A possibilidade de inferir como a lenda deve ter circulado em final do século XVIII é outra contribuição importante de Verissimo.
Dizia-se que esse guerreiro índio tinha na testa, como sinal divino, um lunar luminoso, e os crentes afirmavam que depois de morto ele subira ao céu como um santo. Pelo Continente corriam de boca em boca lindos versos cantando as proezas de São Sepé. E quando alguém perguntava ao coronel Ricardo: “Então, é verdade que foi vosmecê que lanceou Sepé Tiaraju?”, o velho torcia os longos bigodes brancos e com sua voz grave e sonora respondia, vago: “Anda muita conversa-fiada por aí...” E sorria enigmaticamente, sem dizer sim nem não. (Verissimo, p. 165)
IHU – Em Alcy Cheuiche Sepé deixa de ser tratado com um herói épico e se transforma em um símbolo de defesa da terra. Como isso acontece literariamente e como isso se conecta à biografia deste personagem?
Eliana Pritsch – Ainda que se possa discutir justamente esses conceitos de “herói”, de “épico”, creio que o romance de Cheuiche acaba por trazer um herói mais romanesco, mais problemático. Explorado mais profundamente, e não só em função dos acontecimentos mais belicosos como em O Uraguai, é um personagem mais complexo, que tem sentimentos contraditórios como raiva e medo. Ao contar a infância e juventude de Sepé, traça um arco temporal muito mais amplo, com um primeiro casamento e a morte da primeira esposa no parto, com um segundo casamento, deixando a esposa grávida quando da sua morte. Há ainda uma nítida passagem de um herói épico que busca a guerra para um guerreiro que defende sua oprimida nação indígena.
Como o próprio autor comenta, quando inseriu ficcionalmente uma viagem de Sepé a Buenos Aires, há a nítida ideia de contrapor Buenos Aires e as Missões, a cidade desordeira e “bárbara” com a civilização quase idílica missioneira.
Fui cauteloso por se tratar de um romance e somente “inventei” a viagem a Buenos Aires (usando nos diálogos trechos de cartas do próprio Sepé, para que o leitor comparasse São Miguel, limpa e ordeira, sem mendigos nem brutalidades, 10.000 habitantes na época, com Buenos Aires, 15.000 habitantes, sujeira, miséria, exploração) (Cheuiche, 2004)
O chamado progresso civilizatório não está associado à colonização europeia laica, mas a essa civilização jesuíto-guaranítica. As oposições se reforçam ao longo da obra na exaltação da civilização missioneira com seus valores de progresso, cultura e desenvolvimento em oposição ao retrocesso (em relação às Missões) da proposta colonial luso-hispânica.
Com isso se reforça principalmente a defesa da terra. O encontro com os portugueses, o episódio de Santa Tecla, o embate pela manutenção da terra e das missões marcam a trajetória de Sepé para além do famoso brado de que “Esta terra tem dono!” É nesse sentido que esse Sepé de Cheuiche interessa à Igreja – às Comunidades Eclesiais de Base – e ao MST, pois esse herói problematiza a questão agrária no Estado e surge como o herói que lutou pela terra, lutou contra as injustiças impostas pelos representantes do poder colonial. Essa concepção mais atualizada de Sepé, oriunda da criação de Alcy Cheuiche, transforma o líder missioneiro num líder social atual, que passa a ser invocado por movimentos atuais, o que também se pode ver em outra obra do autor – Ana sem terra.
IHU – Mais recentemente Luiz Gatto, com desenhos de Plínio Quartim, publica Sepé Tiaraju: o índio, o homem, o herói (2010). O que essa e outras novas versões trazem de novo sobre este indígena tão caro à história do RS?
Eliana Pritsch – Há sempre novas narrativas sendo publicadas, inclusive a de Luís Rubira, em 2012, intitulada A luta de cada um: Sepé Tiaraju e a Guerra Guaranítica, que procura, por meio de pesquisa em textos setecentistas, trazer excertos de cartas e diários para compor a narrativa. No entanto, a escolha de um diário ou outro já determina, por exemplo, a versão diferenciada que se pode ter do episódio do ataque ao forte de Rio Pardo e os famosos 53 prisioneiros. No fundo, também a história é versão, é narrativa.
O que distingue a publicação de Luiz Gatto são pelo menos dois aspectos que se destacam: é uma história em quadrinhos – portanto, a ilustração responde também por parte significante da história – e o segundo elemento é a sua explícita intencionalidade e o público leitor pretendido. Sepé Tiaraju: o índio, o homem, o herói é uma obra digital, publicada pela Câmara dos Deputados em Brasília, numa série de obras comemorativas, intitulada “Personalidades”. Esse aspecto é decisivo no caráter didático, procurando um alcance nacional no sentido de explicar e ilustrar as Missões jesuíticas, sua organização espacial – com a igreja, a escola, a praça, etc. –, a guerra e seu dinamismo. Percebe-se claramente a intenção de responder a uma demanda da Lei Federal 5516, de 2/12/2005, Câmara dos Deputados, que inscreve o nome de Sepé no Livro dos Heróis da Pátria: tornar Tiaraju um nome conhecido nacionalmente.
Em termos narrativos, apresenta uma inovação interessante de trabalhar com dois tempos cronológicos: na atualidade, em Porto Alegre, pai e filho guarani estão no Brique da Redenção, tradicional Feira Livre aos domingos na capital. É aniversário do filho, que ganha de presente uma espécie de amuleto pertencente a Sepé, oportunidade em que o pai conta toda a história de Sepé no século XVIII, tornando os guarani de hoje descendentes direto de Sepé. Inclusive, o elemento da noiva/esposa de Sepé ter ficado grávida quando da morte do herói abre também essa possibilidade.
De forma geral, as novas narrativas somam-se ainda na manutenção de abordagens discrepantes e muitas vezes fantasiosas, residindo, a meu ver, a principal delas na questão da ocidentalização/europeização/cristianização de Sepé e das Missões, alijando a importância guarani nessa construção.
IHU – Em que sentido e por que a história do RS pode ser, paralelamente, comparada à de Sepé Tiaraju?
Eliana Pritsch – Não me parece ser possível estabelecer esse paralelo de forma cabal, justamente devido à construção de diversas imagens de Sepé. O que se pode perceber é como essa apropriação foi respondendo a momentos e ideologias diversas. Um exemplo claro pode ser como, em 2003, na região de São Gabriel tanto o MST quanto a Farsul se apropriavam da frase “Esta terra tem dono”, confrontando movimentos opostos: a ideia de propriedade privada ou a função social da terra. Idêntica questão territorial e cultural se dá em relação à região da Missão de Santo Ângelo e os guaranis.
Só faz sentido comparar Sepé e a história do RS se pensarmos nas diversas construções possíveis: é um guarani, evidenciando tanto a existência de povos originários aqui radicados antes da chegada de portugueses, quanto traços culturais claramente passíveis de serem associados aos indígenas. É missioneiro, trazendo para a história um espaço geográfico só posteriormente incorporado ao RS, e com isso o quanto culturalmente pertencemos ao que Angel Rama nomeou como comarca pampeana. Essa possibilidade de entender a América com fronteiras outras que não as políticas. É gaúcho no sentido dos hábitos culturais, portanto, passível de ser incorporado pelo MTG. Transforma-se em herói pela defesa da sua terra, ainda que obviamente não houvesse a noção de RS, uma terra também ligada aos movimentos sociais. Mesmo o sentido religioso do RS apareceria duplamente representado: com uma ligação com a igreja católica – herança das próprias missões jesuíticas e legitimada pela pretensão de canonização de Sepé como mártir em defesa da religião e do seu povo – e como manifestação da crença popular nos milagres e intervenções de Sepé.
Sepé se compara ao RS na medida em que já não é possível pensar em uma história, nem dele próprio, nem do RS.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Eliana Pritsch – Em fevereiro de 2026 serão 270 anos da morte de Sepé e da Batalha de Caiboaté. As diferentes abordagens continuam a se somar. Em relação ao livro de Luiz Gatto, lembrei de outra questão importante: a iconografia. Como representar imageticamente Sepé? Foi essa questão inclusive tema de debate do Comitê do Ano de Sepé em 2005. Mais indígena, mais cristão, mais sofrido, mais glorioso e valente? A cavalo? A pé? Com ou sem lança? Se cada versão literária apresenta suas peculiaridades, cada representação de imagem também, além de estar ideologicamente vinculada a uma “criação”. É preciso também pensar nelas, desde o show de Luzes que ocorre junto às ruínas em São Miguel, com a voz condutora de Sepé, até a representação em desenhos, histórias em quadrinhos. Noutro campo também correlato, o ENART (Encontro de Artes e Tradições Gaúchas), vinculado ao MTG e que ocorre anualmente, tem dado espaço para danças coreográficas sobre as Missões e sobre Sepé.