27 Setembro 2025
"A Irmã Dorothy não aprisionou o tempo. Livrou-se do supérfluo no pensamento e nas ações. E cultivou o essencial", recorda Felício Pontes Jr., em sua nona carta de memória aos vinte anos do martírio de Irmã Dorothy Stang, que foi celebrado no dia 12-02-2025.
O martírio da Irmã Dorothy Stang será lembrado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU durante os doze meses de 2025. Em cada mês, Felício Pontes Jr., procurador da República junto ao Ministério Público Federal, em Belém, e assessor da Rede Eclesial Pan-Amazônica – Repam, publicará uma carta em memória à religiosa.
Felício Pontes Jr. era amigo da irmã Dorothy e como procurador segue os seus passos, atuando nas causas defendidas pela missionária. Em entrevista à IHU On-Line, em 2009, ao lembrar do trabalho da missionária, ele a classificou como “o Anjo da Amazônia”. “Tudo que ela tentou estabelecer foi o desenvolvimento integral dos povos da floresta. Isso implica também na relação do homem com a natureza”, disse na ocasião.
Eis o artigo.
Binka Le Breton é uma jornalista britânica e foi a primeira a lançar a biografia de Irmã Dorothy em um livro que no Brasil foi intitulado “A dádiva maior: a vida e a morte corajosa de Irmã Dorothy Stang” (Ed. Globo). Após voltar de Anapu, no Pará, colhendo informações para seu livro, ela me disse que acompanhou o dia a dia das Irmãs da Congregação de Notre Dame de Namur. Estava maravilhada com tantas coisas que eram realizadas que, segundo ela, parecia que o dia tinha mais do que 24 horas.
Quando se depara com as realizações de Irmã Dorothy e suas companheiras não se pode negar que o tempo parece passar diferente por lá. Elas estavam na luta pela emancipação do município; na criação do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais; na maioria das escolas construídas; na formação de técnicos agrícolas; na criação de assentamentos rurais; nos grupos de medicina alternativa; na criação da paróquia local; na formação das CEBs; e, na economia solidária – só para ficar em alguns exemplos. Realmente, a escritora tinha razão: ao acompanhar o trabalho, o dia parece ter mais que do que 24 horas por lá.
Certa vez, ao responder à essa curiosidade, Irmã Dorothy escreveu uma carta aos seus parentes. No meio da escrita, ela revelou:
“Se nos despojarmos de todos os nossos supérfluos – que consomem tanto de nosso tempo e de nosso pensamento sobre como cuidar deles – o tempo que nos sobra não será mais contaminado. Aí veremos e entenderemos tudo com mais clareza. Já não será difícil dar uma resposta boa ao Evangelho.”
Salta aos olhos, de início, o foco no essencial: “despojar de nossos supérfluos” talvez seja o mais difícil. A começar por definir o que é “supérfluo” em nossa sociedade de hoje.
Irmã Dorothy usa em seguida uma palavra forte: “contaminado”. Parece querer abrir os nossos olhos para mostrar que o supérfluo nos contamina. E não contamina apenas o tempo. Ensina que o supérfluo contamina também o pensamento. Ou seja, o supérfluo é tão arrasador que nos contamina o corpo, a alma e o espírito. Não sobra espaço, nem tempo, nem pensamento, nem ação para o essencial.
Dom Hélder Câmara, em suas reflexões organizadas pelo Padre Marcos Antônio (Ed. Paulinas), assim define o essencial:
“O essencial a transmitir é descoberta maravilhosa: em todos os recantos da terra, dentro de todas as raças, todas as línguas, todas as religiões, todas as ideologias, há criaturas que nasceram para dedicar-se, para gastar-se a serviço do próximo, dispostas a não medir sacrifícios para ajudar de verdade e, enfim, para construir um mundo mais justo e mais humano.”
Portanto, o essencial para D. Hélder é “construir um mundo mais justo e mais humano”.
A Irmã Dorothy não aprisionou o tempo. Livrou-se do supérfluo no pensamento e nas ações. E cultivou o essencial.
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