A morte e a negação do luto na era do capitalismo acelerado e hiperconectado. Artigo de Sérgio Botton Barcellos

Foto: Ann H | Pexels

05 Setembro 2025

"Diante da morte de JaguarVeríssimoArlindo CruzBira PresidenteMino Carta, dentre tantos(as) outras(as) pessoas e presenças que formaram o Brasil e sua parte no mundo, a crítica factual que se impõe não é apenas sobre o fim inevitável da vida, mas sobre o modo como escolhemos ou deixamos de escolher lembrar, valorizar e continuar o que nos foi deixado. A indiferença à morte, no fundo, é ao mesmo tempo uma indiferença pela vida."

O artigo é de Sérgio Botton Barcellos, doutor e mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Leciona no Departamento de Ciências Sociais e no Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e é colaborador no Programa de Pós-graduação Educação Ambiental da Universidade Federal do Rio Grande (FURG).

Eis o artigo.

Esses dias tive uma orientanda de doutorado que defendeu uma tese sobre a sustentabilidade, educação ambiental e morte. E fiquei pensando algumas situações. Então, me lembrei quando da morte de Belchior, em 2017, estava em João Pessoa, eu senti uma estranheza e uma tristeza profunda. Não sabia explicar. Mas, sentia que alguém importante tinha partido com um legado artístico e que se propôs a questionar o sistema de vida posto, inclusive os modismos.

Uma das figuras centrais da história da música brasileira, cuja obra trazia temas sobre a memória, esquecimento, deslocamento e crítica à modernidade apressada. Belchior morreu quase em silêncio, após anos de reclusão e invisibilidade midiática. Isso, muito antes do modismo de uma suposta esquerda ou estética alternativa embalada pelo slogan usado de forma solta “ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”. Enfim, só senti e refleti, não tinha escrito sobre e nem falado muito nisso.

Hoje analisando, logo após a morte de Belchior aconteceram muitas coisas que foram noticiadas rapidamente. Milhares de pessoas morreram, cada uma com uma história, sua importância e seus legados específicos em seus diferentes contextos de vida. A morte de Belchior, nesse sentido, pode ter simbolizado não apenas a solidão de quem envelhece ou não estava na “hype”, mas também pode representar o fenômeno do esvaziamento do luto diante de uma pessoa que ousou pensar e cantar contra o tempo da pressa, o consumo e a indiferença.

A indiferença diante de tantas coisas, inclusive diante da morte parece ter em certa medida se naturalizado ou se banalizado. A cada semana, perdemos nomes que marcaram outras histórias de vida e a cultura brasileira, como: Mino Carta, Jaguar, Luiz Fernando Veríssimo e Arlindo Cruz. Além deles, há ainda mais e mais mortes, como sete mil feminicídios nos últimos 5 anos, a transmissão ao vivo do genocídio do o povo palestino, algum(a) parente, um(a) amigo(a), um(a) conhecido(a) etc.

Interessante, pois parece que o luto desses falecimentos se dilui rapidamente no fluxo incessante das notícias, nas dinâmicas das mídias digitais turbinadas por dopamina e na exploração do nosso trabalho cotidianamente. A morte, que poderia nos suspender o tempo e nos convocar a uma pausa coletiva de memória, reverência ou mesmo protesto, após poucos minutos de tela nas mídias digitais tem se tornado muitas vezes um acontecimento fugaz, deslocado emocionalmente ou rota de fuga. O luto individual e coletivo muitas vezes tem perpassado pela reação rápida: um emoji de tristeza, um post automático, uma lembrança que desaparece com o próximo escândalo, com a próxima fofoca de subcelebridades ou a próxima tragédia.

Cabe esclarecer que não estou escrevendo sobre se há um pesar triste ou trágico, até porque há sociedades que fazem o luto com celebração e festejos. O que estou ensaiando de forma geral nesse texto é sobre como a sociedade brasileira, vem tratando, elaborando e celebrando mortes de pessoas que estão de alguma forma em nossas vidas.

Esse fenômeno não pode ser visto apenas como insensibilidade individual, mas como reflexo de uma sociedade eivada e estruturada atualmente pela aceleração, pela hiperconexão, pela saturação informativa, ansiedade, pelo consumo descartável de afetos e narrativas como forma de condicionamento e dominação (Byung-Chul Han, 2022). A morte virou um link que se clica, um story que se fecha, uma notícia que já nasce envelhecida pela próxima postagem logo em seguida.

Quando morrem pessoas queridas em nossas vidas ou mesmo ícones da arte, da política, do nosso dia a dia, será que estamos abrindo o espaço adequado para elaborar o luto coletivo e individual? Estamos refletindo sobre seus legados ou reconhecendo a importância de suas contribuições em nossas vidas e onde vivemos?

O mercado da atenção, regido por algoritmos e publicidade incessante, nos traz novidades que não tem nada de novo e muitas vezes o fazemos em troca de vivenciar um tempo para processar dores emocionais, não se permitir ao tédio e ao silêncio que são condições humanas necessárias para o descanso, a elaboração emocional e a construção de memórias.

Há aqui mais uma condição: vivemos em um tempo de culto às celebridades e superexposição da vida privada. A morte que deveria ser o limite e um convite a elaborar sobre nossa própria finitude, se banaliza e é tratada em conteúdo a ser consumido. O luto se torna breve, quase protocolar, muitas vezes substituído por posts genéricos ou mensagens automáticas de condolências. Será que estamos vivendo o que se poderia chamar de “fast-food do luto”? Tipo, em que a despedida é consumida no mesmo ritmo de um meme, post ou supostamente preenchida com a compra de algo em algum site de compras.

Interrogar-se sobre como lidamos com a morte é também questionar nossa relação com o tempo, com a memória e com a própria humanidade. Talvez seja preciso recuperar a dimensão ética da morte: reconhecer que cada perda, sobretudo a de pessoas que nos legaram afeto, cultura, beleza e crítica, exige não apenas lembrança, mas também compromisso. O compromisso de não permitir que a pressa nos roube o luto e a memória, antes que a hiperconexão nas redes sociais nos condene à superficialidade, ao individualismo e ao sofrimento constante recalcado.

A pandemia de Covid-19 deixou no Brasil um rastro de mais de 700 mil mortes, segundo dados oficiais, sem contar até hoje as subnotificações. Foi uma das maiores tragédias da nossa história, e ainda assim muitas dessas vidas foram tratadas como números, não como histórias. No auge da crise e dos adoecimentos, a morte se transformou em estatística de boletim noturno, em curva de gráfico, em dado usado para disputa política. Milhares de famílias não tiveram direito ao luto coletivo: velórios foram proibidos, despedidas se deram por telas de celulares, corpos foram sepultados em valas comuns. As cenas transmitidas das covas abertas em quase todo o Brasil se tornaram símbolo de um país que naturalizou algo absurdo.

Essa naturalização foi também alimentada por um discurso político marcado pela indiferença. Quando se minimiza a pandemia chamando-a de “gripezinha”, quando se incentivou aglomeração em nome da economia, quando se zomba das vítimas dizendo “não sou coveiro”. Ou seja, estamos diante do que Hannah Arendt denominaria de banalidade do mal: a morte transformada em gesto trivial, administrada por burocracias insensíveis e discursos que reduzem o sofrimento humano a detalhe. Não foram apenas os vírus que mataram, mas também a negligência, a desinformação, a opção consciente por não cuidar. Enquanto sociedade optamos em não conversar e refletir a fundo sobre esses traumas todos que aconteceram. Sem comentar a impunidade com quem gestou o caos sanitários, no caso de Bolsonaro (ele não está sendo julgado por isso), empresários e seus asseclas.

A extrema-direita e os projetos políticos de viés fascista lidam com a morte de maneira ainda mais perversa: eles a instrumentalizam. A morte dos “outros” (supostos inimigos, adversários, populações marginalizadas etc.) não apenas é aceita, mas é deliberada como demonstração de força, disciplina e purificação social. A retórica fascista constrói a morte como uma escolha entre quem deve viver e morrer, ao mesmo tempo em que transforma os que morrem em números ou em estigmas, destituindo-os de humanidade (Ricci, 2022). Nessa lógica, a morte deixa de ser acontecimento trágico para se tornar parte do funcionamento banal da política, racionalizado como “dano colateral” ou como preço necessário para a manutenção da ordem capitalista.

Hannah Arendt (1999), ao analisar o julgamento de Eichmann, em livro lançado em 1963, analisou que o mal não se manifestava necessariamente por figuras monstruosas, mas pela normalização da violência no cotidiano, pela obediência cega e pela burocratização da morte, isto é, eliminar vidas sem sequer reconhecê-las como tais. Essa lógica reaparece atualmente em discursos autoritários que minimizam mortes nas pandemias, em chacinas em favelas ou em massacres em territórios de guerra.

O protofascismo em curso na atualidade, em suas múltiplas formas, reafirma essa banalização, promovendo a indiferença coletiva como estratégia política e corroendo lentamente a sensibilidade ética diante da vida e da morte. É tipo uma banalidade do mal em versão 2.0, turbinada por redes sociais, streamings, algoritmos de desinformação e transmissões ao vivo.

E quando essa lógica se expande para além do espaço íntimo, a banalização da morte se torna geopolítica. Gaza é um exemplo cruel e recente: imagens de crianças mortas, de hospitais destruídos, de populações inteiras soterradas passam pelas telas como se fossem apenas mais um dado estatístico, mais um registro em meio ao caos informativo. A indignação se dissolve rapidamente e dá lugar à indiferença, como se fosse possível conviver com massacres cotidianos sem que isso corroa a própria noção de humanidade. As cenas em Gaza não são tão distantes, pois são o espelho radical de uma mesma lógica que naturaliza chacinas e violência letal em periferias, nos conflitos no rural brasileiro e em corpos de jovens negros(as) assassinados(as) (Becker, 2016).

Essa escolha social se revela também quando observamos a morte de pessoas negras no Brasil. O Atlas da Violência - 2025 nos traz que, em 2023, do total de 45.747 de homicídios, 35.213 foram de pessoas negras. Essa não é apenas estatística: é o reflexo de uma sociedade que decide, consciente ou não, quem pode viver e quem pode morrer sem a devida atenção. Elza Soares, uma diva que nos deixou em 2022, cantou essa ferida: “a carne mais barata do mercado é a carne negra”. A frase, tão dura quanto poética, é mais que metáfora: é a radiografia de um país onde a morte negra é tão banalizada pelo racismo estrutural que já não comove.

O luto que muitas vezes não estamos fazendo seria, em tese, um espaço psíquico necessário: trata-se do processo em que elaboramos a perda, desprendendo a libido investida no objeto perdido e reinvestindo-a em novas formas de ressignificar a vida sem a pessoa que morreu. Quando esse trabalho, essa elaboração, não acontece, seja porque a sociedade acelera o tempo do luto, seja porque o nega em nome da produtividade ou da indiferença coletiva, cria-se o risco da melancolia. Diferente do luto, que reconhece a ausência e permite transformá-la, a melancolia pode paralisar, pois o sujeito carrega o morto dentro de si, em um estado de fixação e autodestruição. Como lembra Freud, em Luto e melancolia, (1917), recusar-se ao luto pode significar adoecer em silêncio - ainda mais em meio a superestimulação que estamos expostos - transformar a dor em ressentimento, em sintomas difusos e em uma incapacidade de simbolizar a própria finitude.

Assim, diante da morte de Jaguar, Veríssimo, Arlindo Cruz, Bira Presidente, Mino Carta, dentre tantos(as) outras(as) pessoas e presenças que formaram o Brasil e sua parte no mundo, a crítica factual que se impõe não é apenas sobre o fim inevitável da vida, mas sobre o modo como escolhemos ou deixamos de escolher lembrar, valorizar e continuar o que nos foi deixado. A indiferença à morte, no fundo, é ao mesmo tempo uma indiferença pela vida.

Mas há ainda outro aspecto social a ser considerado: a solidão dos moribundos (Elias, 1982). É cada vez mais comum terceirizarmos o cuidado ou isolá-los. Morre-se, muitas vezes, sem a presença dos próximos, cercado por aparelhos e protocolos hospitalares, enquanto familiares seguem a rotina incessante do trabalho e das telas.

O medo da sociedade envelhecer é também o medo de olhar para a morte de frente. Evitamos os corpos frágeis, os rostos enrugados, a lentidão, como se fossem espelhos indesejados do nosso futuro. E nesse movimento de afastamento, vamos normalizando a escolha por não cuidar, por não se responsabilizar, por não acompanhar. Performar que se importa, com um post, com uma mensagem no zap está se tornando um padrão. É uma escolha que se diz involuntária, como se ninguém estivesse escolhendo, mas que está sendo feita.

O que está em questão é mais do que noticiar e postar nas redes a morte de pessoas consideradas públicas ou anônimas, é como a sociedade contemporânea está desejando lidar com a morte e elaborar os lutos coletivos e individuais. Elias já alertava que a repressão do medo da morte, em vez de nos proteger, nos torna mais solitários e menos humanos. A indiferença cotidiana, à morte de um ídolo cultural, de um moribundo anônimo, de uma criança negra em uma comunidade ou de uma família soterrada em Gaza, não é apenas esquecimento: pode ser uma escolha, é desejo. Na psicanálise desejar é sobre o que se quer e sobre o que se diz que não quer mas também de alguma forma se deseja. É sobre escolhas cotidianas influenciadas pelo sistema capitalista atual, por seus algoritmos, sobre exploração e o impulso constante de ter mais e mais algum tipo de coisa ou qualquer coisa para nos sentirmos saciados ou preenchidos.

Essas escolhas, ainda que sob o pretexto de automatismo ou cansaço, podem corroer nossa capacidade de sermos humanos, nos afastar da pausa, evitar o silêncio, e de desejar não ter um tempo para refletir e dialogar. É tipo uma fuga de nós mesmos. Tornam-nos mais individualistas, menos solidários e menos capazes de celebrar a vida. Ou seja, vivendo desse jeito, sem nem vivenciarmos sequer o luto, tendencialmente estamos rumando sorrateiramente para a nossa gradual autodestruição.

Leia mais